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Chantal Akerman, fotografia da filmagem de Les Rendez-Vous d’Anna, 1978, Collections CINEMATEK & Fondation Chantal Akerman, (copyright) Babette Mangolte, (copyright) Adagp, Paris, 2024, intervenção gráfica de Yuri S. com ilustração de Nina Lins
Postado em 03/10/2024 - 4:50
07 – acolher

Em sua Teoria da Bolsa da Ficção, a escritora norte-americana Ursula K. Le Guin defende que aquilo que entendemos por “história da civilização” trata-se, na verdade, da história da violência. Alimentada por milênios pela crônica da caça e dos assassinatos, que estabeleceu a lança e demais objetos fálicos e pontiagudos como fundadores da ideia de cultura, essa visão sempre pareceu ignorar que tais artefatos não serviriam de muita coisa se não houvesse uma cesta, uma bolsa, digamos, um recipiente onde armazenar e transportar aquilo que não podia ser consumido imediatamente. Além disso, a caça de animais como os mamutes era comum na região do Ártico, mas hoje sabemos que outras comunidades do período possuíam muito mais intimidade com o que viria a se tornar, sob a ótica das lanças e das estacas, a agricultura: sementes, raízes, tubérculos, ervas e por aí vai.

Por que, então, a imagem de homens armados ocupa nossa mente tão logo pensamos nos humanos pré-históricos? Por que a narrativa do perigo e da conquista triunfou sobre a do cuidado? Segundo Le Guin, porque “essa história não tem somente Ação, ela tem um Herói. Heróis são poderosos. Antes que você possa perceber, os homens e as mulheres no campo de aveia silvestre, bem como suas crianças, e as habilidades dos criadores, e os pensamentos dos que pensam, e as músicas dos que cantam, tudo isso se torna parte do conto do Herói e fica a serviço desse tipo de narrativa. Mas essa não é a história deles. É a história do Herói.”¹

Tal visão se incorpora à forma do texto, onde a palavra “herói” aparece com capitular em maiúscula. É difícil dizer se por hábito ou como um jeito de reforçar de que forma essa figura foi trabalhada em nosso imaginário ao longos dos séculos – o fato é que, aqui, o uso da caixa alta demonstra como esse ente se individualiza e se destaca, à parte da comunidade.

Avançando em seu ensaio, a autora detecta a persistência dessa concepção narrativa em um arco que vai das pinturas rupestres ao desenvolvimento da linguagem até desembocar no romance, ou melhor, na forma-romance, onde a história-assassina [killer story] prevalece sobre a história-vital [life story], em grande parte porque essa segunda é tão mais complexa de representar. Distante dos grandes feitos e das imagens impactantes, a história-vital é uma ode à sutileza, ao cuidado e ao acolhimento. Dirige o olhar para o perecível, o fugaz. Não precisando se firmar na dinâmica da linearidade combativa que vai de um ponto a outro carregando competição, estresse e luta tanto no conteúdo quanto na forma, um romance vital se pareceria menos com uma lança e mais com “um patuá guardando coisas numa relação particular e poderosas umas com as outras e conosco”². O conflito, tão central no romance para aqueles a quem Le Guin denominou legisladores, poderia ser uma dessas coisas; o recipiente pode contê-lo, claro, mas resumir a prática da narração ao conflito é absurdo, considerando a enormidade de experiências que podem compartilhar este espaço de maneira ora conflituosa, ora harmoniosa, já que seu objetivo não é o êxtase ou a resolução, e sim o processo contínuo.

Publicado pela primeira vez em 1989 no livro de ensaios Dancing on the Edge of the World: Thoughts on Words, Women, Places, o texto afirma, referindo-se à típica narrativa heroica, que “algumas vezes parece que essa história está se aproximando do seu fim.” Não seria descabido supor que tal impressão estivesse ligada à aceleração da vida, à artificialização das comunicações nos grandes centros urbanos, muito acentuadas a partir dos anos 1970, e a uma série de artistas e obras que, nesse contexto, adotavam um outro modo de entender o fazer artístico, sobretudo no que se refere à sua relação com o tempo.

Philippe Chancel, Chantal, © Adagp, Paris 2024

Em 1975, a diretora de cinema e artista belga Chantal Akerman lançava o filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelle, que, ao prescindir de clímax, a um só tempo denunciava o tédio que ocupara o cotidiano de mulheres operárias da Europa pós-guerra e criava um espaço revolucionário em que os elementos pareciam não desenvolver-se, mas estarem dispostos para a sedimentação interpretativa de um tempo contemplativo. “Tudo que você tem é o tempo”³, diz Akerman em uma entrevista. “Nos meus filmes, você está ciente de cada segundo que passa. Através do seu corpo. Você está diante de si mesmo. Você está cara a cara com o Outro. É a partir desse face a face fundamental que seu senso de responsabilidade se inicia. Essa é a minha ideia de ética. É por isso que busco igualdade, sempre, entre a imagem e o espectador. Ou a passagem de um inconsciente para o outro.”

Aqui, acredito que o uso da caixa alta para se referir ao “outro” exerce uma função diferente daquela trazida por Le Guin. Claro, é possível dizer que a alteridade ostensiva mascara a tentativa europeia de sanar sua culpa por ter-se colocado como civilização dominante por tanto tempo, mas, no caso de Akerman, confio em sua generosidade. Afinal, quem está diante do outro é o espectador defronte da tela. O Outro, portanto, é a própria artista.

Contribui para a sensação de transferência de inconscientes a opção – ou a necessidade – de utilizar o chamado “eixo frontal”, que, segundo Claire Atherton, montadora e colaboradora de diversas obras de Akerman, é um tipo de plano que “não descreve, não designa, mas cria um espaço de percepção e reflexão.” São memoráveis em Jeanne Dielman as cenas em que acompanhamos os gestos mais banais, de preparar bifes à milanesa a tomar um banho de banheira, em toda sua temporalidade e crueza metódica. Da mesma forma, ainda que com propósitos diferentes, marcadamente líricos em vez de críticos, vemos isso em Je, Tu, Il, Elle, o primeiro longa metragem, de 1974, que, em sua aparente lentidão revela as texturas do desejo, do humor e da expressão. Esses filmes tornam-se, então, um convite para que o espectador retorne ao seu próprio ritmo e lhe dá todo o tempo necessário para que alimente a sensação de que, por trás das imagens, existe muito mais do que aquilo que está sendo mostrado.

Diretora e montadora se conheceram em 1984, ou seja, cinco anos antes da publicação do ensaio de Le Guin, em ocasião da adaptação cinematográfica de uma peça baseada nos diários de Sylvia Plath, que viria a se tornar o filme Letters Home, de 1986. O que em Akerman brotava de forma espontânea, para Atherton era o resultado de seus estudos aprofundados sobre cultura chinesa e, principalmente, taoismo. “No pensamento chinês”, diz ela em entrevista conduzida por Ivone Margulies na revista Camera Obscura, “particularmente para os taoistas, você não força as coisas, você as deixa vir. Você cria um movimento, e a vida é esse movimento. O movimento está ligado a outro conceito importante no taoismo, que é o vazio. Vazio é o lugar onde ligações entre coisas diferentes podem ser feitas, e o significado pode emergir.” Para Atherton, a construção de um filme se assemelhava à fundação de uma casa. É em sua elaboração, à medida que o trabalho apresenta seus termos, que o sentido se revela. A montadora negava o modus-operandi clássico, em que a montagem de uma obra cinematográfica precisava se concentrar primeiro na estrutura e no significado para depois ganhar um ritmo. Em sua visão, o ritmo era a condição para que a narração pudesse emergir.

Chantal Akerman, frame do filme D’Est, 1993, (copyright) Fondation Chantal Akerman/Capricci, (copyright) Adagp, Paris, 2024

Antes por contingência que por estética, da primeira vez que trabalharam juntas, Akerman e Atherton utilizaram o sistema U-matic, equipamento de fita sem timecode e que, portanto, não permite correções ou mudanças ao longo do processo de edição. Uma vez cortada determinada cena, não havia como voltar atrás, e as duas gostaram disso, pois se parecia com um salto sem rede de segurança, sem nada para se apoiar além da própria intuição. Nas seguintes produções que realizaram em conjunto, perceberam como, aos poucos, as conexões entre os elementos iam surgindo de forma natural. Partiam do entendimento de que imagens são coisas vivas, que contêm seus próprios segredos e que basta não confiná-las para que elas te conduzam por um caminho de significados formado por luzes, linhas e cores, partiam disso para conseguir acolher o que, em francês, é denominado hasard – o acaso.

O terceiro pilar de sustentação da cinematografia de Akerman está na figura de Babette Mangolte, a diretora de fotografia em obras como Jeanne Dielman, Letters Home e Hotel Monterey, cuja visão quase coreográfica da concepção de um filme foi determinante para a escolha de caminhos. É interessante notar que a obra da artista belga deve-se, em grande parte, também à noção de práticas coletivas e de saberes compartilhados, sugerindo a horizontalidade das partes no lugar do conflito muitas vezes incitado pela figura autoritária do diretor.

De alguma maneira, a narrativa das lanças e da guerra foi determinante na vida de Chantal Akerman, afinal, sua mãe havia sobrevivido aos campos de concentração e essa experiência a marcara de maneira tão brutal que, quando sentada diante de uma parede branca e indagada pela filha sobre o que estava vendo, ela respondia “você sabe o quê.” O silêncio de sua mãe, uma quietude protetiva contra os traumas do passado, confrontado com o aceleracionismo feroz que encontrou em Paris e, mais tarde, em Nova York, fez com que Akerman concebesse uma obra que, avessa aos psicologismos, se tornou uma das maiores referências quando falamos em investigar os desejos, os medos e os sonhos de uma sociedade embrutecida – e amedrontada – pela violência.

Chantal Akerman, fotografia da filmagem de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1975, Collections CINEMATEK, (copyright) Fondation Chantal Akerman/Capricci, (copyright) Adagp, Paris, 2024

Ainda que tenha feito um cinema baseado em planos longos e câmera estática, sua carreira não pode ser resumida a uma fórmula. A exposição dedicada à artista pelo museu parisiense Jeu de Paume, atualmente em cartaz, por exemplo, chama-se Travelling e o percurso da mostra acompanha o deslocamento do cinema de Akerman para o espaço, na forma de instalações multimídia, entre as quais apresenta-se D’Est, Au Bord de La Fiction. Foi com Claire Atherton, aliás, que a artista adaptou, em 1995, seu longa-metragem D’Est, lançado um par de anos antes, para múltiplas telas.

Um aspecto da personalidade de Akerman que Atherton não cansava de ressaltar, talvez por que imaginasse que isso se perderia no processo de sacralização da artista, falando dele sempre que possível em entrevistas, conferências e homenagens, era seu senso de humor. “Sim”, diz ela durante a homenagem a Chantal Akerman na Cinémathèque Française em 2015, “Chantal era engraçada. Nós nos esquecemos disso às vezes. Engraçada e livre. Incomum”. Igualmente, é factível supor que esse aspecto específico do temperamento da artista chamasse tanto a atenção de Atherton por sua conexão com o pensamento chinês clássico, onde, muitas vezes, os grandes ensinamentos são transmitidos por meio de uma piada.

Lembro de um professor de arte conceitual, especializado em livros de artista, que um dia me disse que aqueles que não possuem senso de humor dificilmente se interessam por arte contemporânea. O compositor John Cage, que foi adepto do zen-budismo durante grande parte da vida, realizou um trabalho, pelo qual é muito conhecido, em que não acontece nada. Minto – sim, acontece algo: o músico fica parado diante de seu instrumento durante quatro minutos e trinta e três segundos. O silêncio. O vazio. Uma revelação. Uma piada. E a lista de artistas continua. Lou Reed faleceu em posição de lótus no colo de sua companheira, Laurie Anderson, cuja obra deve muito aos seus estudos e práticas budistas. “Foi a liberação de todo o amor” – ela disse.

Se o romance-vital é uma ode à sutileza, ao cuidado e ao acolhimento, não consigo deixar de pensar em John Berger, escritor inglês fundamental nas transformações da crítica de arte europeia da segunda metade do século 20. Seriam necessárias muitas vértebras para me debruçar o quanto eu gostaria na obra de Berger e em sua decisão de, no fim da vida, partir para viver nas montanhas, mas nesta quero falar sobre um livro específico, uma preciosidade chamada Fotocópias, que consiste em 28 pequenos relatos – a palavra “contos” me parece excessiva – de momentos fugazes que, em sua simplicidade, sugerem visões complexas da experiência humana. Neste livro, oculto sob o título de “Um homem mendigando no metrô”, há um perfil do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, que, do alto de seus 86 anos, apoiado no batente da janela de seu apartamento em Paris, afirma “a única coisa da fotografia que me interessa é a mira, o ato de mirar” e pergunta a Berger se ele conhece o tratado zen-budista sobre a arte do tiro com arco. É ao livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen que ele se refere, obra que leu por intermédio do pintor  Georges Braque, que um dia lhe presenteou com um exemplar. “É um estado d’alma, uma questão de abertura, do esquecimento de si.”4 Algumas páginas depois, Bresson conta como recusou um prêmio em homenagem à sua carreira criativa como fotógrafo, dizendo que não acreditava numa carreira criativa de fotógrafo, que fotografar é apenas apertar o dedo no momento certo. “Nada se perde, tudo que você já viu fica sempre contigo.” A flecha de Bresson não é feita do mesmo material da lança do Herói – ela atinge, é verdade, mas apenas porque se compreende a si mesma como parte de um todo que a envolve tanto quanto envolve seu alvo.

Diante das muitas perguntas de Berger, que busca compreender melhor no que consiste o tal momento decisivo, o fotógrafo encerra a conversa citando uma frase contida na carta que Albert Einstein enviou à Hedwig Ehrenberg, esposa do físico Max Born, em 1944: “Tenho tamanho sentimento de solidariedade com tudo que é vivo que não me parece importante saber onde termina ou começa o indivíduo.” Declaração um pouco infeliz, é verdade, considerando que trata-se do cientista cujas teorias ajudaram a construir a maior arma de extermínio em massa de todos os tempos. Porém, se pegarmos um pouco do que o escritor chileno Benjamin Labatut sintetizou em seu livro MANIAC, é possível entendê-la como um comentário sobre como novas formas de pensamento – como, por exemplo, a proposta por Le Guin – não se limitam apenas ao campo do romance, isto é, da arte em geral, mas dos conhecimentos humanos como um todo, incluindo aí a política, a religião e, por que não, a ciência.

Artistas e pensadores como Chantal Akerman, Claire Atherton, John Cage, John Berger e Henri Cartier-Bresson, penso eu, fazem parte da história da civilização proposta por Ursula K. Le Guin, isto é, de uma historiografia que opta não pela lança, mas pela bolsa como ponto de partida para entender o comportamento humano e sua necessidade de estabelecer relações entre si. Na obra deles, não importam os objetivos, importam os caminhos, as conexões. Conexões. A mesma coisa que importava, talvez, para aquele humano a quem a escritora francesa Marguerite Duras dedicou As Mãos Negativas, filme-ensaio sobre este humano solitário nas grutas magdalenianas da Europa Sul-Atlântica que, obedecendo a um impulso para sempre perdido, um dia marcou presença ao imprimir a forma de sua mão espalmada contra a pedra.

“Tu que tens um nome e uma identidade” – sussurra Duras para ele, nos deixando ouvir –, “eu te amo.”5

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¹ Ursula K. Leguin, A Ficção Como Cesta: Uma Teoria, trad. Priscilla Mello. Rio de Janeiro, Cognitio Revista de Filosofia, 2023

² Ursula K. Leguin, A Teoria da Bolsa da Ficção, trad.Luciana Chieregati; Vivian Chieregati Costa.São Paulo, N-1 edições, 2021

³ Chantal Akerman, Tempo Expandido, trad. vários colaboradores. Rio de Janeiro, Editora BEI, 2019

4 John Berger, Fotocópias, trad. Roberto Grey. Rio de Janeiro, Rocco, 2002.

5  Marguerite Duras, As Mãos Negativas, trad. Érica Zingano e Marcela Vieira. Presente em rafaelbougleux.wordpress.com

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Serviço

Chantal Akerman: Travelling
até 19/1/2025
Jeu de Paume, 1 place de la Concorde, Jardin des Tuleries, Paris 1er
jaumedepaume.org

Chantal Akerman, frame do filme Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1975, (copyright) Fondation Chantal Akerman/Capricci, (copyright) Adagp, Paris, 2024