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Ilustrações de Nina Lins sobre fotografias de Ian Uviedo e P.
Postado em 06/11/2024 - 7:38
08 – sincronizar

14/10/2024 – 23h22

Em um dos últimos textos que escreveu na vida, Um Dia Perfeito, espécie de epílogo do terceiro tomo de seus diários – Um Dia na Vida –, Ricardo Piglia lançou um desafio que, até onde tenho notícia, ninguém se dispôs a encarar. Logo no primeiro parágrafo, sob a vaga indicação de “sexta-feira”, ele anota:

“Alguém lembrou que o entardecer não existia como tema poético para os gregos. Todo o mérito era para o amanhecer e suas muitas metáforas: a aurora, a alvorada, o despertar. Foi só em Roma, com o declínio do império, que Virgílio e seus amigos começaram a celebrar o ocaso, o crepúsculo da tarde, o fim do dia.
Haveria então escritores do amanhecer e escritores do ocaso? Essas são as listas que eu gosto de fazer. Mas, em vez disso, agora que a noite cai e me ilumina uma velha luminária, gostaria de rememorar um sentimento ligado ao pôr do sol. Como poderíamos definir um dia perfeito? Talvez fosse melhor dizer: como eu poderia narrar um dia perfeito?
É para isso que escrevo um diário? Para fixar – ou reler – um desses dias de inesperada felicidade?”¹

O desafio, é claro, consiste na elaboração de tal lista. Me lembrava desse trecho e há meses nutria a vontade de escrever um ensaio que pelo menos servisse para esboçá-la. Achei que o tema se encaixava dentro da proposta das vértebras, estes textos que publico mensalmente no site da revista celeste, mas, quando compartilhei a ideia com P., minha editora, sua resposta – e isso é comum – acabou ampliando as possibilidades e o campo de referências por onde eu poderia me lançar. Seu retorno me inquietou e comecei a sentir – o que também é comum – que talvez eu não estivesse à altura do texto que queria escrever, até que, hoje de manhã, abrindo o livro de Piglia como quem recorre a um oráculo, compreendi que, se esse texto fosse mesmo existir, ele teria que existir como um diário, quero dizer, em uma forma-diário, esta que se estabelece no instante em que eu inscrevo, no topo da página, a data e o horário em que estou escrevendo.

É verdade que a forma não é nova para mim. Além de estudar os diários do escritor argentino, eu mesmo mantenho meu diário e reflexões a respeito do gênero. A prática de registrar o transcorrer dos dias, delineando episódios significativos em uma linha cuja finalidade é seu próprio desenvolvimento e o fim é impossível de delinear, acaba se aproximando da bolsa que Ursula K. Le Guin visualizou na Teoria da Bolsa da Ficção, no sentido de que é um texto que pode acolher o que quer que seja, uma “história-vital” onde todos os sentidos se encontram reunidos ao redor do fato de que estão em conjunto. O interessante, e também novo neste caso, será transformar o espaço que me cabe na revista, pelo menos por alguns dias, em meu diário, algo como um músico que troca de instrumento apenas para evitar que os dedos viciem, seguindo a trilha de escalas mais óbvias.

Começo a descrever, então, a realidade que me cerca: estou em casa, sozinho como sempre, após ter voltado a pé da editora, onde tive um dia cheio de trabalho e demandas. Havia garoa na atmosfera, mas nada que impedisse a caminhada. Passei rente ao muro do cemitério do Araçá e percorri floriculturas acesas. É uma noite mansa de segunda-feira, meio fria. Agora, quebro o silêncio colocando Perfect Day, do Lou Reed, para tocar.

Lou Reed, vale dizer, fez sua aparição na mais recente vértebra, quando me dediquei a escrever sobre artistas que tiveram o trabalho e a vida alterados pelo contato com a filosofia zen. Esse tema despertou o interesse de P. e consistiu em grande parte de sua resposta à ideia da lista proposta por Piglia, ela mesma me remetendo outras listas, de outras naturezas. Mas não nos precipitemos.

É tarde. Sinto que a escrita avança com dificuldade, estou sem cigarros. Antes de fechar a janela, escovar os dentes e ir me deitar, não queria deixar de anotar que, de manhã, enquanto eu lia o livro de Piglia no metrô, na edição da Anagrama que P. trouxe da Espanha, eu percebi a força com que este texto começava a se formar. Era como eu pudesse vê-lo diante de mim, já finalizado, no intervalo entre duas baldeações sonolentas.

15/10/2024 – 08h32

Se o verbo que dá título a esta vértebra é “sincronizar”, grande parte disso se deve ao fato de que P. e eu estamos em fuso-horários diferentes, ela cinco horas avançada no tempo em relação a mim. Desde o início de setembro, minha editora está em uma residência artístico-literária em Lofoten, um arquipélago na Noruega já perto do Polo Norte, e têm sido curiosas nossas tentativas de acertar os relógios para que possamos encontrar um ao outro durante aquele específico intervalo de tempo em que estamos, os dois, acordados e trabalhando. Agora mesmo, por exemplo, em que escrevo essa entrada após ter levantado, feito a barba, escovado os dentes e deixado tudo pronto para sair para a editora, são quase duas horas da tarde em Lofoten, e é interessante pensar que estou escrevendo um texto para alguém que está no futuro. Sei que é sempre este o caso, o leitor projetado no futuro, mas na maioria das vezes, enquanto escrevemos, os leitores não estão lá ainda.

Logo no primeiro dia que chegou em Lofoten, depois da corrida maluca por uma série de aeroportos e escalas internacionais, P. me enviou a foto de uma água-viva rosa ao lado de suas galochas na areia negra da praia. O que mais me impressionou na imagem, sem dúvidas, foi a luz, a luminosidade do hemisfério norte, a mesma que tantas vezes vi refletida nos filmes europeus que assisti ao longo da vida. A tantos quilômetros de distância, o mundo é tocado de outra maneira pela luz e, na lógica dominante do velho continente, somos ensinados a enxergar a realidade desta maneira; essa luz, porém, não é nossa, não pode ser encontrada nos trópicos, e a partir daí comecei a me perguntar quem contava as histórias da nossa luz, desse enlouquecido facho cor de giz que rebate contra a parede da casa vizinha e se derrama sobre o chão do apartamento.

15/10/2024 – 21h26

Caso alguém um dia me perguntasse se eu sigo alguma “linha” ao escrever um diário, eu responderia que sim, que sigo a linha de Mario Levrero, autor uruguaio cuja publicação póstuma de seus escritos pessoais o alçou ao posto de escritor incontornável após uma vida mais ou menos obscura. Eu diria isso porque vem de seu Romance Luminoso essa tendência de anotar não só a data, como também o horário em que cada entrada está sendo escrita. Li o livro há um par de anos, mas vez ou outra me pego voltando a ele de maneira oracular, e posso afirmar que a opção (ou a necessidade) de Levrero por anotar as horas deve muito à sua perturbada rotina de sono, a insônia crônica que o torna, indubitavelmente, um escritor do amanhecer. O amanhecer de Levrero, porém, não é o amanhecer das esperançosas metáforas gregas. Não: o amanhecer de Levrero é estático, perdura na imobilidade ambígua das coisas que não aconteceram nem podem mais acontecer. Suas manhãs são deslocadas, é verdade, mas seria impossível classificá-lo como um escritor de entardeceres, visto que o crepúsculo de Montevidéu o encontrava sempre dormindo. Se analisarmos seus escritos para além da obra-prima que a escritora argentina Tamara Kamenszain descreveu como “um cadáver aberto em 500 páginas”, pegando, por exemplo, o texto La Ciudad, de 1970, percebemos que essa atmosfera de não-resolução contribui para o aspecto melancólico e impotente de seus personagens. Penso que não é por acaso que a epígrafe do livro seja de um texto de Kafka que fala sobre uma cidade que não é “nada más que algunos contornos imprecisos en la niebla”². É possível que a densa luz vislumbrada pelo tcheco, para Levrero, tivesse alguma semelhança com aquela vista por ele no Uruguai.

Este ano, lendo o livro Conversas com Mario Levrero, reunião de e-mails que o autor trocou com seu aluno Pablo Silva Olazábal, me deparei com uma ideia no mínimo curiosa. Os dois estão discutindo a respeito de um conto específico de Levrero, investigando como ele havia construído determinadas passagens, quando ele diz: “Às vezes, para sair de alguma depressão, invento de ir para a rua com ‘o olhar de artista plástico’; procurar ver o mundo como espaços, formas e cores, sem discriminar mais nada”³. Aficionado por sistemas de computação, jogos matemáticos e romances policiais, tratava-se de um homem obcecado por “formas puras”. A dimensão plástica de seus relatos – ou de seus “romances compactados”, como dizia – é fundamental para a construção de um estilo em que a composição climática configura o próprio conflito. Se é verdade que Levrero saía ao mundo com esse olhar, arrisco dizer que o que tirou disso não foi nada parecido com uma pintura de representação figurativa; seu universo narrativo se aproxima mais do que vemos em Giorgio de Chirico, para não dizer do campo das esculturas abstratas. Tanto é assim que, após algumas tentativas frustradas de ir à rua com “o olhar de artista plástico”, chegando a abandonar o conselho por completo, só fui me lembrar dele enquanto lia a Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, coletânea de escritos pessoais (diários e cartas) e entrevistas da artista francesa Louise Bourgeois, livro que, aliás, quem me emprestou foi P.

Ontem escrevi aqui sobre um músico que, para expandir suas possibilidades técnicas, decide trocar de instrumento, e acredito que vem também daí minha vontade de ler textos escritos por não-escritores. Tenho interesse em verificar o que artistas que não se baseiam na palavra alcançam quando enveredam pelo caminho da escrita. No caso de Bourgeois, me deixam em estado de assombro as breves anotações que acompanhavam livros de gravuras como He Disappeared Into Complete Silence ou She Lost It – anoto um exemplo: “Figura 3: Certa vez um homem contava uma história, uma história bastante boa, que o deixou muito contente, mas ele a contou tão rápido que ninguém entendeu.”4 – e criavam junto às imagens uma tensão tão poderosa que mesmo diante de fac-símiles experimentamos um estado crescente de claustrofobia. Folheando o livro, reparo em um grifo que deixei para mim mesmo. Trata-se de uma instrução para melhor fruição da pintura Natural History, de 1944: “O quadro deveria ser contemplado sob uma luz muito forte.”

Louise de Bourgeois é uma artista do amanhecer ou do entardecer? Se fosse me basear no que ela escreveu sobre He Disappeared Into Complete Silence – “É uma descida… uma descida à depressão. Mas eu acredito na ressurreição na manhã seguinte” –, a resposta seria nítida, mas não acho que seja tão simples, sobretudo quando penso em algumas passagens de seu diário de 1973, como “Não mereci ser amada; ser amada significa ser morta, ser fodida significa ser morta.”

Do alvorecer ou do ocaso, o fato – palavra forte, mas não me ocorre outra (talvez P. ajude) – é que Louise Bourgeois foi uma artista do vazio, uma dessas criadoras que alcançou, na definição do inglês Sylvester Houédard sobre diversos artistas do século 20, “o material como revelação do invisível”5.

A razão de eu citar Houédard, poeta concreto que há poucos dias eu nunca tinha ouvido falar, é porque ele aparece em um texto de Guy Brett que, entre outras coisas, aborda como o conceito de vazio está presente na obra de vários artistas, muitos deles brasileiros. Chamado Ativamente o Vazio por conta de uma declaração da artista plástica Mira Schendel, quem o remeteu a mim foi P., e aqui, feito um velho relógio cujos ponteiros voltam a funcionar, essa vértebra começa a se aproximar daquilo que vislumbrei no metrô, o texto em sua forma final.

Mas agora, outra vez, é tarde. Outra vez, rompo o silêncio com a linda canção de Lou Reed. “Just a perfect day, you made me forget myself.” São quase 4h30 da manhã em Lofoten, o que significa que são quase 23h30 da noite aqui. Após um dia cheio na editora, tanto meu corpo quanto minha mente – como se essa distinção fosse possível – pedem por descanso. Como sempre, voltei caminhando, e antes de vir para casa passei no mercado para comprar legumes e cigarros Camel de filtro branco. O tabaco ajuda no fluir da escrita, tem algo a ver com o gosto forte na boca. Lembro então das conversas que tive com P. há alguns meses, quando decidi parar de beber e ela enfrentava uma batalha parecida com a nicotina, e daí passo a rememorar as fotos do céu noturno de Lofoten que ela me mandava nos primeiros dias em que chegou lá, do espetáculo de luzes que, de tão belas, pareciam ameaçadoras.

16/10/2024 – 10h10

– Achei curioso que é um texto que fala pouco de você, das suas experiências – disse J. quando nos encontramos semana passada, referindo-se à última vértebra –, você não se coloca ali.

Tínhamos nos encontrado em um pequeno restaurante coreano para jantar e colocar a conversa em dia, como se diz, e, diante do prato de bibimbap e do copo de cerveja sem álcool, respondi que, para mim, era justamente o contrário – ao ocultar meu universo íntimo e abrir espaço para que as referências tecessem suas associações de maneira quase orgânica, eu falava mais sobre mim, sobre o estado da minha vida, do que poderia relatar em qualquer texto de caráter autobiográfico. Seu comentário, no entanto, me inquietou, e talvez tenha sido outro disparador importante para a experimentação deste texto, em que, pela primeira vez, mesclo a realidade imediata ao gênero ensaístico.

A escrita tem o poder de influenciar a realidade? Tenho minhas dúvidas, mas as deixo de lado por um instante ao constatar a noite de insônia que acabo de atravessar logo após ter escrito sobre um autor que não conseguia dormir à noite. Tudo começou com um mosquito, até aí tudo bem, normal, mas rapidamente o inseto tornou-se um portal para sensações a cada instante mais estranhas, difíceis de descrever, localizadas todas neste estado entre o sono e a vigília. Talvez tenha a ver com a temperatura, com a alimentação, com a ansiedade, com as mensagens que deixei de responder, com os fantasmas, não sei, seria preciso ainda outro texto, em outra forma, para eu conseguir expor a problemática que enfrento desde sempre em relação ao meu sono. O que importa é que agora são 10h30 da manhã, quase 16h em Lofoten, e por aqui o céu está muito branco, indefinido. Se me dissessem que agora são 18h30 da tarde, eu acreditaria.

A luz do céu de hoje me lembrou do e-mail que P. me enviou quando ainda estávamos entendendo como seria esta vértebra. Anexo à mensagem, havia o vídeo de uma conferência que Guy Brett realizou na Tate Modern em 2012, se estendendo sobre os temas abordados em Ativamente o Vazio. “O que fica mais claro para mim ao ouvir a palestra”, escreveu P. no corpo do e-mail, “é a exposição de que o vazio (void) é um conceito paradoxal: é tanto vazio (empty) quanto cheio: ‘the full side of the void; the full that comes from nothing and returns to nothing afterwards’”. Igualmente, lhe chamava atenção que, avançada a conferência, Brett citasse um evento conduzido por dois artistas ingleses (entre eles Houérdad) chamado “The Beginning and the End” – o começo e o fim. O amanhecer e o entardecer.

16h da tarde em Lofoten. Preciso começar a me aprontar para sair para a editora. Antes de ir, anoto aqui parte de minha resposta ao e-mail de P.: Escrever é alvorecer, editar é crepuscular?

16/10/2024 – 23h41

Releio o que escrevi até aqui e estaco na frase “a escrita tem o poder de influenciar a realidade?” Ainda que mantenha minhas dúvidas, os eventos parecem querer provar que sim. Como que avisada que eu escrevia a seu respeito, J. me enviou uma mensagem perguntando se eu já havia lido o texto Del Sentimiento de No Estar de Todo, de Cortázar. Respondi que não e perguntei se ela havia pensado em mim por algum motivo específico. Ela disse que o ensaio lhe fizera lembrar das conversas que tínhamos na época em que morávamos juntos, longas madrugadas que passamos falando sobre essa sensação de deslocamento. Comecei a ler o texto no metrô e é claro que encontrei relações com o que venho desenvolvendo aqui, principalmente quando ele fala sobre a forma como lidamos, por meio da linguagem, com experiências extraordinárias, reduzindo-as às formas da arte ou da loucura.

Todas as vértebras escritas até agora, penso, foram conduzidas a partir de um desejo compartilhado entre P. e eu de não perder essas experiências de vista, pelo contrário, mantê-las o máximo possível sob a luz e buscar maneiras de comunicá-las aos leitores. São muitas as idas e vindas que envolvem a escolha daquele ou de outro termo dentro de um texto, uma obsessão que busca, no contexto da elaboração, se aproximar do tom em que as coisas foram percebidas. Foi o respeito a este mesmo impulso, e o reconhecimento de que tratava-se de tarefa muito árdua, que fez com que Levrero mantivesse o projeto do Romance Luminoso parado por tantos anos e, mais tarde, que tivesse que escrever um diário-prefácio de 500 páginas para explicá-lo. Se narrar consiste em trazer à luz objetos antes ocultos pela neblina do cotidiano, encarregando a estes objetos a função de representar o mundo ao qual acabaram de se elevar, como proceder quando esta neblina é toda a sua vida, a totalidade de suas experiências? Esta é a pergunta que nos mantém escrevendo, perseguindo a exatidão.

Está aí uma palavra importante – exatidão. Apesar da seriedade que sugere, ao que mais ela me remete agora é ao humor. Na última vértebra, escrevi sobre como, no pensamento zen, muitas vezes o conhecimento é transmitido por meio de anedotas, e foi também por essa razão que P. me enviou o texto de Brett, afinal, ele lista ali alguns artistas que se movimentaram por este espaço entre o vazio e a ironia: Klein, Manzoni, Fontana, Takis, Medalla, Soto, Tobey, Newman, Cage, os irmãos Campos, Lygia Clark, Oiticica, Camargo, Houédard, Li Yuan-chia, Mira Schendel. A exatidão, neste caso, é da ideia aplicada à forma. Endossa essa visão o próprio Levrero: “A estrutura do conto é, para meu gosto, exatamente igual à da piada”, diz ele para Olazábal.

Agora são 00h28, a folha virou no calendário, escrevo já no dia 17 de outubro. Suponho que em Lofoten a luz esteja começando a entrar pelas frestas da noite. A verdade é que, há quarenta minutos, eu estava pronto para ir me deitar após um dia ainda mais cansativo por conta da insônia, quando um caminhão transportando um trator veio estacionar debaixo da minha janela com o motor ligado, emitindo roncos inquietantes. Se P. pudesse ver isso, ela daria risada, pois sabe que o ruído me persegue. Há um par de meses, quando ela passou por aqui para pegar um livro, se deparou com cena parecida, a algazarra mecânica empesteando o ar.

Então, privado de sono, avanço. Acendo um cigarro e avanço.

Nesses dias todos fiquei me perguntando se Lou Reed seria um artista do amanhecer ou do entardecer. Estou até agora mais inclinado à primeira opção, até porque me lembrei da sequência inicial do filme Os Belos Dias de Aranjuez, de Wim Wenders, onde observamos o amanhecer da cidade de Paris enquanto Perfect Day toca até a última nota. Penso que faz sentido lembrar de Wim Wenders, ainda mais considerando que seu último filme – Dias Perfeitos – mostra a rotina de um homem solitário que alcança o satori em seu ofício de limpador de banheiros públicos em Tóquio. Onde foi que li sobre o satori mesmo? Ah, sim – foi no texto de Brett: “Os usos do vazio por artistas contemporâneos reportam-se a um antigo dilema filosófico: o de que no ato de definir e nomear a realidade acaba-se, de algum modo, por reduzi-la. Perde-se o que Rabindranath Tagore chamou de ‘o valor etéreo do divinamente indefinido’. O zen-budismo, em particular, desenvolveu este paradoxo em suas técnicas espirituais, tais como na prática do satori, o repentino despertar para a ‘vida’ por meios disparatados.”

17/10/2024 – 21h22

Pensando bem, talvez o desafio proposto por Piglia fosse outro. Talvez tivesse menos a ver com uma lista de amanheceres e entardeceres do que com a pergunta “como eu poderia narrar um dia perfeito?” A narração de um só dia, como nos mostrou James Joyce e toda a literatura que se seguiu à sua, já é um trabalho tão duro – imagine a de um dia perfeito: impossível. Ainda mais quando este dia está dividido em duas partes por um corte lateral de cinco horas, como é o caso aqui, em que tentei sincronizar minhas palavras com o tempo de P. na Noruega. Um “dia perfeito”, me parece, deveria ser composto por um único instante. Aquele momento, talvez um segundo antes da meia-noite, que altera e dá sentido a tudo que o precedeu.

Semana que vem é o aniversário de P. Me ocorreu enviar-lhe a primeira versão do texto na data, como um presente que refletisse minha alegria por tudo que temos realizado juntos, mas sei que o melhor presente que eu poderia lhe dar é entregar a vértebra com uma folga no prazo, aumentando assim o tempo que teremos para nos debruçar sobre ela, a observando de todos os ângulos, aparando algumas arestas e afiando outras, como gostamos de fazer.

E, para me despedir, cito o poema que a enviei há duas semanas, essa joia de Eileen Myles que ela pregou sobre sua mesa de trabalho como se, no lugar de um poema, eu tivesse lhe remetido um relógio, e, no lugar de sua mesa de trabalho, não existissem cadernos, anotações, canetas destampadas e xícaras de chá, mas a superfície ora plana, ora rochosa, de um planeta ainda desconhecido:

Sem nome

não ensaie
faça
de primeira

de repente
uma nuvem
azul
está no
céu

e depois
ela é o
céu”6

Está aí, P. Essa é para você.

***

1 Ricardo Piglia, Um Dia na Vida, trad. Sérgio Molina. São Paulo, Todavia, 2021
2 Mario Levrero, Trilogía Involuntaria. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Debolsillo, 2020
3 Pablo Silva Olazábal, Conversas com Mario Levrero, trad. Gabriela Petit. Porto Alegre, Editora Coragem, 2024
4 Louise Bourgeois, Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, trad. Álvaro Machado e Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo, Cosac & Naify, 2000
5 Guy Brett, No Vazio do Mundo: Mira Schendel, trad. Alberto Alexandre Martins. São Paulo, Marca d’Água, 1996
6 Eileen Myles, Por Qual Árvore Espero, trad. vários. São Paulo, Edições Jabuticaba, 2019.