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Still de A Substância (2024), de Coralie Fargeat, com intervenção gráfica de Nina Lins
Postado em 05/12/2024 - 11:53
09 – mudar

Suponho que eu não seja o primeiro a escrever cercado pelas caixas de uma mudança. A imagem não é das mais originais, mas é verdadeira: às minhas costas, no momento em que escrevo estas palavras, estão todos os meus livros encaixotados, um par de malas, sacolas com utensílios domésticos e quadros encostados na parede [1].

Abandono meu posto de observação às margens do Rio Água Preta, na Pompeia, que tanto figurou nas vértebras e tão pouco se parece com a lava do Vesúvio, que petrificou todos os instantes. Pelo contrário, o rio muda e é testemunha de uma série de mudanças.

Nesta hora suspensa, em que tenho à minha esquerda apenas uma estante vazia, me apoio na lembrança de um verso do poeta norte-americano Philip Whalen que diz “O que não muda/ é a vontade de mudança.” Também vem à mente uma das belíssimas Cartas Revolucionárias, de Diane di Prima, onde lemos que “A mudança é rápida, mas a revolução/ vai demorar um pouquinho/ A América ainda nem começou/ Este continente é uma semente” e uma passagem hilária do livro A Vida Privada das Árvores, de Alejandro Zambra, em que Julian, após sua mudança, recebe com certa falta de jeito os presentes de uma amiga – incensos e esferas de cristal –, visto que a casa nova não possui nem mesmo copos ou cortinas.

Se não fosse pelo fato de a estante estar vazia e dos livros estarem empilhados em caixas de plástico, inacessíveis, eu poderia me estender ainda mais sobre trechos de livros que, de algum modo, abordaram as mudanças da vida – “Como a vida muda/ como a vida é muda/ como a vida é nula/ como a vida é nada”, sussurra Drummond de dentro de uma das caixas –, mas a proposta dessa vértebra não é catalogar autores que refletiram sobre a torrente avassaladora do tempo. A ideia aqui é outra.

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Se tem algo que todos nós parecemos concordar, dos mais céticos (penso em pesquisadores do campo da Inteligência Artificial) aos mais místicos (astrólogos alardeando a entrada de Plutão em Aquário), é que o mundo está mudando. Na verdade, é possível que venhamos concordando com isso desde que o mundo é mundo: tudo está em mutação, a transformação material e conceitual do todo é uma regra primária das leis universais do movimento, até mesmo a história se transfigura em histórias. Essa compreensão é exponencial: quanto mais muda o mundo, mais rápido ele muda, e uma vida torna-se pouco para apreender a quantidade de novas informações disparadas por um dínamo cuja manutenção é feita pela sua própria energia.

Sim, tudo está mudando – e pronto: o consenso termina aí. Todo o resto, digamos, a razão de porque isso acontece, como devemos nos portar diante disso, se devemos fluir ou resistir, são o motivo de o planeta se parecer com uma zona de guerra permanente. Aqui, lembro do discurso de Kurt Vonnegut ao receber cadeira-cativa na Universidade de Indiana, quando, logo depois de fazer todo o público do auditório se manifestar à provocação “levante as mãos quem aqui acha que a Mona Lisa é um quadro perfeito”, diz: “É muito bom que possamos todos concordar com isso. Só tem um problema, que é o problema de quase todas as coisas com as quais concordamos unanimemente: não é verdade.”

Vonnegut terá que me perdoar, seu livro está em alguma das caixas e cometo a imprudência de citá-lo de memória, mas é apenas para firmar a ideia de que nós – humanos? – não conseguimos concordar em nada. Que, mesmo as coisas que parecem perfeitas, mais hora, menos hora, revelarão seu esqueleto desconjuntado sob a superfície de veludo.

Tomemos como exemplo o último filme que dividiu opiniões entre aqueles cuja fruição artística só se completa após o ato de opinar: A Substância. Observei, em um intervalo de poucas postagens no Instagram, a fábula grotesca de Coralie Fargeat ser definida como “genial” e como “o filme mais absolutamente idiota de todos os tempos.” Embora eu tenda a concordar mais com a primeira definição, me abstenho por ora de defender o filme. O que gostaria de dizer é que discordo da noção de que trata-se de uma obra “sobre” o envelhecimento, a sociedade do espetáculo ou o domínio de uma ideia patriarcal-hetero-normativa legislando sobre corpos lidos como femininos. Estes temas estão presentes, claro, mas me parecem apenas a superfície enganosa de um discurso tão mais complexo e absurdo – a mão que distrai a multidão enquanto a outra articula algo oculto, algo que guarda relação com a natureza das mudanças e de nossa postura diante delas.

Para começar, o filme toma o partido irônico de apresentar personagens justamente sem “substância”, isto é, personagens planos, quase arquetípicos – uma atriz famosa, um executivo de televisão canalha e por aí vai –, cujo passado se deixa entrever em objetos insignificantes (um globo de neve com purpurina dourada com a miniatura da atriz quando jovem). São entes fabulares, sem interioridade, deliberadamente representativos de instituições sociais demarcadas, o que acaba dando à atmosfera uma demão opaca: as ruas são povoadas por espectros, as pessoas se escondem por detrás dos automóveis, Hollywood não passa de um diorama mal fabricado. Quando, ao sair do hospital, onde o jovem enfermeiro lhe entrega subrepticiamente a chave que direcionará a narrativa, Elisabeth (Demi Moore) esbarra por acaso com um antigo colega de escola, que lhe diz algo como “você continua sendo a menina mais bonita do mundo”, ela demora a entender, como se o passado não fosse seu, e sim a história de outra pessoa [2].

Durante todo o filme, o velho colega representará um recurso narrativo curioso: a realidade que tenta se infiltrar, mas não pode. Entramos em outro campo, as regras mudaram, o filme se revela uma farsa [3]. Endossa essa sensação o fato de que todo o conflito – o descompasso de Elisabeth em relação ao seu clone mais jovem e saudável (Margaret Qualley), sua incapacidade de respeitar o equilíbrio, única e exclusiva regra do estranho experimento a que se submete – remonta ao mais conhecido tropo das tragédias gregas: a húbris, ou hybris, que pode ser traduzida como “tudo que passa da medida” e é o motor de diversos mitos em que os heróis se prejudicam por tentar se aproximar, ou superar, os deuses. Os caminhos a partir daí são múltiplos, praticamente infinitos, mas nem mesmo a ficção científica body horror da cineasta francesa consegue disfarçar que a trama se baseia em uma das primeiras problemáticas humanas – a insatisfação. Insatisfação consigo, com o outro, com o mundo, pouco importa: basta tentar fugir dos limites para que forças ocultas, sejam elas deidades olímpicas ou misteriosas soluções químicas, operem para lhe aplicar o castigo.

Não é de hoje, diga-se, que a metamorfose corporal é entendida como um castigo. Considerado por muitos o primeiro romance latino, Metamorfoses ou O Asno de Ouro, de Lúcio Apuleio, do século segundo depois de Cristo, narra a história de um jovem que, por conta de seu comportamento leviano e lascivo, é condenado pela Providência a transformar-se em um burro, [4] o mais baixo dos animais, forma sob a qual pode testemunhar a grande comédia humana. Algo semelhante ocorre em um arco que vai desde a mudança de gênero de Tirésias, na mitologia grega clássica, até a metamorfose kafkiana, o ungziefer em que Gregor Samsa se transforma, embora não saibamos muito bem por quem ou porquê. O mérito de Kafka está em retirar a moral da trama, nos deixando apenas com a sensação de que, na era moderna, as motivações dos castigos também mudaram, tornando-se tão mais complexas e incompreensíveis do que jamais sonharia qualquer Deus do Velho Testamento.

A noção de “oculto” também é fundamental no filme. A dinâmica à qual Elisabeth é inserida em relação à substância, em que tudo ocorre da maneira mais impessoal e misteriosa possível, me parece apenas um pequeno exagero da forma como lidamos, hoje, com os espectros científicos que povoam listas de ingredientes em produtos alimentícios, manuais de instrução de aparelhos digitais e bulas de remédio. Assim como Kafka retira a moral de sua trama punitiva, expondo o horror em que começava a se transformar a experiência comum de cidadãos à beira do colapso bélico, Fargeat, ao suprimir o advento da publicidade da experiência com a substância, revela a completa escuridão em que nos metemos perante aquilo que consumimos. No filme, o produto sai do fornecedor diretamente para a veia do usuário, e o fato de Elisabeth ser identificada pelo número 503 no armário em que retira os insumos de sua transformação dá a entender que os “transformados” são muitos, e, principalmente, podem ser qualquer um – seu chefe, seu amante, seu melhor amigo, o velho moribundo que senta à sua frente em um café vazio. Todos estamos metidos nisso – cada vez mais.

Stills de O Homem Elefante (1980), de David Lynch, e Carrie (1976), de Brian De Palma, com intervenção gráfica de Nina Lins

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A Substância só poderia mesmo ser dirigido por uma mulher. Em sua Teoria da Bolsa da Ficção, Ursula K. Le Guin demonstra o porquê da intimidade natural das mulheres com a ficção científica, o que também pode ser aplicado ao seu pioneirismo no campo da música eletrônica e da radioatividade, quero dizer, das coisas que estão além do visível, muitas vezes sequer do concebível para a cultura geral. No entanto, e aí está um dos méritos da obra, a diretora usa e abusa do male gaze pornográfico da linguagem publicitária, aí sim muito presente, não vinculada ao produto em si, mas à apreciação da própria imagem, para apresentar Sue, o doppelganger sexy e bizarro que literal e midiaticamente “surgiu do nada” – como todos os outros personagens.

Estes takes, que parecem extraídos de um comercial da Coca-Cola dos anos 1990, compõem o mosaico de referências desse filme que funciona, em parte, como um grande catálogo de citações cinematográficas. O léxico visual de A Substância passa pela Mulholland Drive, de David Lynch, na forma sombria como a capital do cinema é representada, mergulha em um cronenbergiano pesadelo de agulhas e aberrações, e insere ainda muitos fragmentos a esta colagem até desembocar na sequência final, que a crítica internacional tem consentido em entender como uma homenagem à Carrie, A Estranha, adaptação do livro de Stephen King feita em 1976 por Brian de Palma, com sua chuva de sangue em uma catarse que não alivia ou, se preferir, uma redenção que não redime. É possível pensar ainda no Homem Elefante, também de Lynch, no final de Ondas do Destino, a comédia religiosa de Lars von Trier, na forma como a aberração é acuada e perseguida pela multidão, ou na pele falsa com que outro médico, Robert Ledgard, tenta suprir uma ausência afetiva em A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar. A poética do monstro.

É significativo que a cena final seja em um baile de ano novo. (Aliás, foi também por isso que escolhi abordar o filme nesta vértebra, a última do ano). A eclosão da narrativa, a hybris devidamente castigada, a ilusão esgarçada aos limites do sofrimento, os vestidos de gala, os smokings, as expectativas, tudo encharcado de sangue e horror à meia-noite – é este o futuro que nos aguarda.

Tal recurso, o de estabelecer o réveillon como prenúncio de uma nova era, me fez lembrar de um dos meus contos favoritos de Vonnegut, uma história de duas páginas intitulada Soldado Desconhecido. Nela, um professor afro-indígena norte-americano relata um concurso televisivo que buscava premiar com uma série de benesses extravagantes a primeira criança nascida na virada do século 20 para o 21. Logo de saída, ele expõe a falha no sistema de julgamento: “Para começar, o terceiro milênio, como inúmeras pessoas haviam apontado, só começaria em primeiro de janeiro de 2001. Falando em termos do planeta como um todo, o ano novo já tinha seis horas de idade quando a nossa filha nasceu, já que havia começado mais cedo no observatório real de Greenwich, na Inglaterra, onde o tempo começa.” Isso é só o princípio de sua crítica à campanha, que possui ares elitistas e se mostra disposta a manipular a informação, afinal, “ela [a criança] deveria simbolizar o quão saudáveis e encantadores seriam os próximos mil anos.” A filha ganha todos os prêmios, protagoniza os jornais nova-iorquinos por alguns dias e aos poucos a notícia se desgasta. Então ela morre quando tem apenas seis semanas de vida. Sua morte não é noticiada em nenhum lugar do mundo, a própria emissora que organizara o concurso se limita a enviar um representante menor ao seu funeral, nem sequer uma celebridade. “Quem quer assistir ao enterro dos próximos mil anos?”

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Sei que há outras formas de abordar A Substância e nem é do meu feitio escrever tão longamente sobre um filme que, poucos meses após o lançamento, já conta com centenas de milhares de resultados após a pesquisa de seu nome no Google. É verdade que algumas dessas formas me interessam, sobretudo aquelas que crescem em direção às modificações corporais por meio de hormônios, abordadas por Paul B. Preciado em seu Testo Junkie, ou às monstruosidades, estéticas tranimais, à pajelança e ao hibridismo com a natureza das “Themônias”, esmiuçadas por Rafa Bqueer no texto Themônias: Montação e Ativismo LGBTQIA+ na Amazônia, onde entramos em contato com a ideia de libertação por meio do desconforto.

Todas essas abordagens apontam para um mesmo lugar: a mudança. Não a mudança cooptada por discursos, sejam eles otimistas ou pessimistas, “falsos” ou verdadeiros”, não a mudança como truque de campanha eleitoral, nem mesmo as minhas mudanças de endereço, a possibilidade de escrever poemas apenas com os números dos CEP’s das casas onde morei nos últimos anos ou a corrente ininterrupta do Água Preta sob meus pés. Não: as mudanças que acontecem o tempo todo, à nossa revelia, enquanto eu escrevo, enquanto você me lê, as mudanças incognoscíveis que operam no mundo enquanto lá fora, pela janela, os dias parecem todos iguais.

Stills de Crimes of the Future (2022), de David Cronenberg, e A Pele Que Habito (2011), de Pedro Almodóvar, com intervenção gráfica de Nina Lins