Desde o princípio, a ideia das vértebras sempre foi cruzar leituras, uma tentativa de encontrar relações inusitadas e não-explícitas entre obras literárias, expandindo seu universo narrativo para o campo das artes visuais, do cinema, da fotografia e do que mais fizesse sentido. P., a editora de todas elas, retornava às minhas suposições com referências e provocações que, ao longo de todo o processo de edição, serviam para embasar e endossar minhas teses, sugerindo outros pontos de onde se avistar as problemáticas propostas. Assim, foram publicados nove textos, cada um deles operando como um catálogo vivo de conexões que encerrasse um mundo cujos alicerces fossem a minha visão do lado talvez mais obscuro dos trabalhos abordados. Essa forma de escrever, costurando fios aparentemente inconciliáveis, vai ao encontro do meu gosto por uma certa “infomarginalidade”, quero dizer, o interesse pelo que está à margem, subliminar, sugerido, quem sabe apenas rabiscado às pressas no pé da página.
Faço esse balanço inicial nesta décima vértebra justamente porque, dessa vez, encontro mais dificuldade que o normal em cruzar leituras, e por uma razão bem clara.

Há três meses eu vinha lutando com a leitura de Solenoide, livro de 2015 do escritor romeno Mircea Cărtărescu, publicado ano passado na esteira das apostas do Nobel de Literatura, pela Editora Mundaréu, com tradução de Fernando Klabin. Não é por acaso que escolho o termo “livro” no lugar de “romance”, da mesma forma como não uso o verbo “lutar” para dizer que não é bom ou que a leitura não tenha sido prazerosa – pelo contrário. Solenoide tem passagens memoráveis, uma atmosfera cuidadosamente construída, um domínio impecável de cada um dos centenas de temas que explora. Pessoalmente, prefiro suas narrativas históricas, que elegem para personagens sujeitos como o matemático Charles Howard Hinton e o psicólogo Nicolae Vaschide, em uma fauna que faz lembrar o gosto por ocultistas e cientistas de Benjamin Labatut, às desventuras relatadas em forma de diário pelo narrador, um professor de romeno da rede pública de ensino de Bucareste, que mora em uma casa construída sobre um solenoide e vive uma vida assombrosa e mágica, com direito a seres de outras dimensões o visitando na cama e estátuas gigantescas que ganham vida para esmagar homens como se fossem baratas. Em todo caso, minha opinião sobre o livro não importa muito – desde sua publicação, as quase 800 páginas do catatau romeno renderam à Cărtărescu diversos prêmios internacionais, entre eles o International Dublin Literary Award, onde foi descrito como “extremamente inventivo, filosófico e lírico, com passagens de grande beleza.” Por aqui, a Editora Mundaréu tem feito um belo trabalho de divulgação da obra de Cărtărescu, o mais importante escritor romeno da contemporaneidade, uma personalidade de destaque da literatura do leste-europeu, um semi-desconhecido em língua inglesa e praticamente um anônimo no Brasil. Em 2018, a editora publicou Nostalgia, híbrido de romance e livro de contos, que fora publicado em 1989 com outro título – Visul, “O Sonho” –, quando então foi proibido pela censura, e finalmente relançado em 1993 com o título que passou a ser traduzido para várias línguas europeias.

Foi a leitura de Nostalgia que me instigou a ler Solenoide, mas, ainda que ambas as obras guardem numerosos pontos de contato – a fascinação por imagens grotescas, o gosto por gabinetes de curiosidade, taxidermia e infectologia, o estilo barroco das descrições, as memórias confusas da infância, e, principalmente, o ódio por Bucareste –, os livros não poderiam ser mais diferentes. Se em Nostalgia a estrutura do livro é protagonista, em uma malha metalinguística que faz com que as histórias narradas se cruzem umas com as outras de maneira inesperada, utilizando para isso a própria consciência dos personagens, que entendem a si mesmos como parte de uma obra literária, em Solenoide o que temos é um livro que prescinde da ideia de forma: com efeito, é como se estivéssemos dentro da intimidade da mente doentia do narrador. Histórias iniciadas nunca retornam, episódios se repetem, contradições proliferam, e por isso eu – junto a grande parte da crítica internacional – tenho dificuldade em classificá-lo como um “romance” e, ao longo da leitura, estive tantas vezes perto de abandoná-lo. Mas, em cada uma delas, decidi avançar. Por quê? Com certeza não foi pela prosa sedutora de Cărtărescu: o autor é prolixo, parece deslizar termos técnicos propositalmente para travar a leitura, se prolonga por páginas e mais páginas na descrição de elementos que depois não são relevantes e dificulta o tanto quanto pode qualquer tentativa de fruição por parte do leitor. Ele mesmo declarou ter escrito o livro em um único rascunho e que nunca o leu novamente. Uma luta, enfim.
A beleza de Solenoide, penso eu, está relacionada a algo que remonta a obras audiovisuais como Empire, de Andy Warhol, The Clock, de Christian Marclay, e Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman – projetos que, em comum, dilatam a percepção de tempo narrativo de tal forma que ela parece se fundir com a temporalidade do espectador. O livro, tal como ocorre com esses trabalhos, passa a funcionar como um espelho: quem o lê é forçado a encarar a si mesmo, a se perceber como o corpo que o segura e a mente que concatena sua narração hermética, a confrontar seus impulsos de distrair-se e desistir. E, ainda que seja a forma que provoque este efeito, o conteúdo ajuda – em Solenoide abundam reflexos e duplos; o próprio narrador faz-se entender como um desdobramento de Cărtărescu, o doppëlganger esquecido em tenebrosos corredores bucarestinos. Há reincidências e associações fractais entre as cenas, momentos em que a narrativa se dobra e se encontra consigo mesma, de maneira parecida à que ocorre com o leitor. Eu classificaria Solenoide, na falta de um termo melhor, como uma obra fisiológica, pois convoca todo o corpo para a leitura. A fisiologia, aliás, exerce um papel importante: descrito no The New York Times por Dustin Illingworth como “um clássico instantâneo da literatura body horror”, o livro é também uma homenagem às vísceras, uma carta de amor à escatologia, uma ode às secreções e aos sucos gástricos.

Assim, mais do que por retratar o cotidiano por trás da Cortina de Ferro e expor as consequências de um imaginário moldado pela hiper-racionalização do jugo soviético, Solenoide é um livro político no sentido de que atua como uma pièce de résistance em um mundo em que a capacidade de concentração da população decai a cada ano e é um livro contemporâneo à medida que, a despeito do que dizem aqueles que condenam, por exemplo, o uso da Inteligência Artificial, demonstra que, se existe algo verdadeiramente humano, não é a imprevisibilidade, tampouco a espontaneidade ou a compaixão, e sim a perversão, ou melhor, uma inconsciente câmara obscura, gestada em nossos órgãos internos, que, não importa quantos sonhos anotemos ou a quantas sessões de auto-enforcamento nos submetamos, nunca poderemos acessar.
A pergunta, como sempre, é a mesma formulada por Philip K. Dick em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? – terão as máquinas, ou, que seja, essas novas formas de inteligência, a capacidade de acessar em si mesmas aquilo que elas próprias desconhecem? Terão ferramentas para atravessar o espelho? Se, de fato, elas tiverem sido criadas à nossa imagem e semelhança, penso que não. Basta ver como têm sido frustradas nossas tentativas nesse sentido. Cărtărescu é uma testemunha ativa disso. Sua preocupação maior é o fracasso da espécie. E é este fracasso que nos permite avançar, tranquilos, donos de nossas verdades e de nossas ilusões, e depois recostar a cabeça no travesseiro e dormir e ter pesadelos – sejam eles prenúncios ou não – que também serão ignorados. É pelo caminho do erro, da derrota e do pavor que Solenoide se estabelece como um livro fundamentalmente humano em um mundo repleto de espectros.
