Na semana em que a maior parte do Brasil enfrentou dias de calor extremo com índices muito baixos de umidade do ar e os focos de queimadas no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia superaram valores históricos, recebemos na Redação da celeste os três curadores do 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus. Dado que a exposição com 34 artistas e coletivos de 16 estados brasileiros seria inaugurada um mês depois, em 5/10, no MAC-USP, a conversa com os curadores Thiago de Paula Souza, Germano Dushá e a curadora-adjunta Ariana Nuala girou em torno do conceito da mostra. Foi, portanto, uma conversa especulativa sobre uma exposição ainda não materializada, pertencente ao plano das ideias. Mil graus – a temperatura máxima instransponível, oposta ao zero absoluto, cuja incidência resulta numa agitação molecular total, capaz de derreter qualquer matéria existente – é uma ficção. Assim como o zero absoluto, que corresponde à ideia de uma temperatura próxima a -273,15ºC, na qual a entropia atingiria seu valor mínimo. Servindo ao grupo curatorial como “ponto de imaginação para pensar contextos com alta taxa de variação ambiental e situações envolvendo processos de combustão, eletricidade e atrito”, o conceito expande-se também ao escopo desta entrevista, de forma a resultar em uma agitação molecular total, capaz de derreter as identidades dos curadores, que se convertem em uma só voz. O resultado é um diálogo especulativo, em que os três curadores se somam e transmutam em Mil graus, essa entidade ardendo em todo o seu calor, que é com quem se desenrola, afinal, esta conversa.
Celeste: O mapa do Brasil, hoje, mostra um país em chamas. Há mapas do calor. Mas o que está depois da temperatura máxima intransponível não pode ser mapeado. O que o 38º Panorama quer mapear?
Mil graus: Um Panorama é sobre urgência. Impossível não falar do agora pelo viés da questão climática, ambiental, mas, como instrumento curatorial, é o calor que interessa, como um índice, um catalisador de uma transformação radical, iminente, de um destino incontornável, de algo que está em vias de acontecer, é imediato.
Como o calor irradia nos trabalhos artísticos?
Há artistas que lidam com a transformação radical da matéria: o barro, o ferro, a matéria orgânica. Há artistas transformando coisas com conceitos e ideias. São todos artistas – e outros agentes – muito diferentes, de contextos muito diferentes, práticas muito diferentes, vitalidades muito diferentes, mas que estão discutindo essa textura de quando as coisas estão se transformando e que, colocados em contexto, podem comungar de um chão comum e mobilizar transformações. Calor é energia em movimento, que transforma. É claro que o fogo aparece de maneira literal: na roda de fogo na obra da Melissa de Oliveira, no Jayme Fygura, que era ferreiro, trabalha com o elemento do fogo e tem na mostra três pinturas que são seres vindos de algum elemento, de um fogo anterior, de um centro da Terra. No Antônio Tarsis, que tem uma instalação que lida com a evaporação instantânea de gotas d‘água que pingam de uma estalactite de carvão e caem numa chapa quente. No Fred Filipe, em um trabalho sobre o arco do desmatamento, então, obviamente, é sobre queimada, sobre a metade do Brasil pegando fogo. A infusão de energia pode ser material, de fato, ou pode ser uma emoção, uma coisa intangível.

(2023), de Jayme Fygura [Foto por Ding Musa]
O fogo mitológico, o fogo espiritual, está em Dona Romana, José Adário dos Santos, ou em Joseca Mokahesi Yanomami, que tem uma obra sobre o mito do fogo. Fala sobre como os Yanomami, que viviam sem fogo, se apropriam dele quando descobrem que o jacaré guarda o fogo na boca. O fogo é inerente à mudança. Tudo que o fogo toca muda. No Tocantins, há a chama espiritual do centro da Terra no campo escultórico de Dona Romana. A líder espiritual tem na sua vida a própria ideia de mudança, ao estar ali esperando e reorganizando um lugar na Terra para quando a Grande Hora chegar. A documentação fotográfica da obra de Dona Romana entra no Panorama como um portal que se abre entre a exposição e o Sítio Jacuba.
Como a arte pode tensionar as categorias do humano? Como conceitos e formas de pensamento do não humano ganham materialidade por meio da arte?
Vários vocabulários realizam isso por diferentes vias: um ferreiro dos Orixás, uma Líder Espiritual, um Cajumbá de Bumba Meu Boi, um escultor de pedra de Mato Grosso do Oeste. As questões do não humano aparecem em hibridismos e relações entre interespécies em Labo & Rafaela Kennedy, nos Akroá Gamella, cuja participação se chama Rop Cateh – Alma pintada em terra de encantaria. Uma vez por ano eles fazem um grande ritual, uma refundação da identidade, do território, que é o ritual de Bilibeu – esse santo padroeiro sincrético, entre um catolicismo e uma religião indígena, e também, obviamente, de outras matrizes –, no qual incorporam uma figura canina, um cão preto. Eles se pintam com jenipapo e ao longo de 12 horas andam mais de 30 quilômetros, demarcando o território com os próprios pés, performando uma série de coisas. Tem uma alta carga de dramaturgia, com a onça, o gato maracajá, os cachorros de Bilibeu. Eles vão de casa em casa da comunidade e essas pessoas oferecem uma caça a Bilibeu, uma oferenda. Pode ser uma cachaça, o conhaque de alcatrão e jogam a galinha. Os cachorros vêm e devoram a galinha ali na hora e depois elas vão ser incorporadas. No Maranhão, a grande religião é a Encantaria. E esse encantado se chama João Piraí. Ele é um metamorfo do rio, um caboclo do rio, um caboclo d’água.
Metamorfo?
É, metamorfos são essas figuras que podem virar um peixe, um sapo, um velho da lagoa, um ser. Aqui entra a transformação do vocabulário, até o verbo se transforma e eles dizem: “Bora correr cachorro”. E eles se transformam em uma manada de cachorros correndo. Jonas Van & Juno B. vão discutir o Pavão Misterioso como uma máquina do tempo que te leva pra uma jornada de transformação radical. E Marlene Almeida, que é uma artista de 82 anos, da Paraíba, tem uma relação muito direta com as pedras. Ela pinta a partir de pigmentos e geotintas que faz a partir de expedições, como ela chama, em vários territórios. A casa dela, ela chama de Museu das Terras Brasileiras, porque são mais de 300 potes de terras de vários territórios. O interesse dela não é simplesmente estar ali para a pintura, digamos assim, ou para as instalações que ela faz. Não é sobre simplesmente a textura e a formação estética, de como isso se organiza, mas é sobre um entendimento sobre o que seria ser pedra a partir de um processo de temporalidade. É sobre a pedra, esse elemento que perpassa e atravessa um tempo muito específico. Ela vai falar sobre isso para entender sobre o processo de territorialização, falar sobre a ideia de posse, por exemplo, como é que você tem um território e entender que esse território é vivo e faz parte de uma contação de história. Então, relações interespécies acontecem tanto dentro da ecologia conhecida, a ecologia material, quanto de uma ecologia espiritual.
E como o âmbito não humano se coloca nos campos da arte digital, do pensamento e da inteligência artificial?
Tá mole ou tá duro? É barro ou é argila? É ferro ou é um mineral puro? Nesse momento em que o bicho tá pegando, em que a coisa vai ter de se transformar num grau muito profundo, em que a gente não sabe o que tá acontecendo, não sabe o que é que a gente tá virando, a tecnologia ajuda a olhar para outra ecologia, que você fala que está no campo do não humano. Artistas como Gabriel Massan, Adriano Amaral, Jonas Van & Juno B., Zahy Tentehar trabalham nesse campo que integra uma materialidade e um imaginário tecnológico. O problema é que, ao usar qualquer um desses termos, não humano, pós-humano, transumano, a figura humana está no centro no palco. Então, o calor como ferramenta curatorial é uma tentativa de tirar o humano do centro dessa discussão, deslocar esse olhar antropocêntrico. Assim, não ficamos presos à ideia de que a arte tenha de ter uma função, tenha de fazer algo. Mas que apenas exista. E aqueles corpos, aqueles trabalhos naquele espaço expositivo, agora no Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP), vão espelhar o território brasileiro e todos esses fluxos de energia que circulam nesse território. É uma micropaisagem, um retrato de uma micropaisagem sintética.

E a dimensão erótica do calor?
Ela está em todo lugar. A energia erótica não pode ser simplesmente vista como uma energia sexual, mas é a energia do encontro, de desejo entre partículas e corpos. Pensar as tensões entre as matérias como uma energia erótica. Dois corpos, com a mesma temperatura, não geram calor. Vamos pensar que os trabalhos dessa exposição são corpos de diferentes temperaturas, que nunca vão chegar num equilíbrio térmico. Isso fica mais concreto se a gente traz para os trabalhos que têm uma conexão mais urbana. O Mexa traz a voracidade da rua de São Paulo, do centro, pra exposição. O Gabriel Massan olha muito pro fervo do baile funk, das festas. Ele está fazendo uma nova versão de um filme que se chama Baile do Terror. Os bailes de favela e a tensão, a diversão e o perigo: uma festa que acontece num lugar basicamente em guerra, na iminência de que algo pode acontecer. O risco. O assombro.
Se o futuro é incógnito, cabe fabular o presente? Como a fabulação especulativa circula nesse Panorama?
A parada da emergência aconteceu em muitas gerações. Aconteceu na iminência de uma guerra nuclear, na Guerra Fria. De tempos em tempos, nossa espécie tem de lidar com essa dúvida, se vai ter um amanhã. Essa dúvida, ela se reconfigura, por diferentes razões, em um lance mais espiritual ou algo muito concreto, como a geopolítica. Seja em um Mercúrio retrógrado multiplicado por mil ou em más lideranças políticas, ou na reorganização de uma ordem global. Não estamos propondo narrativas de futuro, mas Mil graus parte de uma ideia de ficção, uma temperatura máxima instransponível é uma especulação. Mas também existe como realidade física – ou sentido figurativo – quando está na boca como uma gíria das periferias.
O próprio conceito da exposição é, então, uma ficção especulativa?
Sim, usamos de uma ficção para entender o que acontece hoje. Os textos do catálogo vão compor um livro de ficção real, criando, dentro desse labirinto, dessa atmosfera onde esses trabalhos-ebulições convivem, um vocabulário, inclusive de repetições, para entender como esses mecanismos estão ali juntos. E não podemos esquecer de Rafael RG, que também parte de uma ficção. Ele vai investigar os escritos da Pedra do Ingá, na Paraíba, e da Sociedade Secreta Abakuá, em Cuba. Vai partir de inscrições que se originam de princípios cosmológicos, para reescrever a partir de uma caligrafia que ele mesmo cria, numa pedra tirada de Minas Gerais, criando uma relação entre o que é céu e o que é terra. São tempos que a gente nem consegue conceber, vidas que a gente nem consegue ver, mas que são escritas.
E Jayme Fygura, faz uma ficcionalização de si mesmo?
Fygura construiu a própria mitologia andando pelas ruas de Salvador. Ele ficou muito conhecido pelos capacetes – ninguém nunca viu o rosto dele –, as armaduras, as esculturas, mas era um baita pintor também. Em uma das pinturas, ele desenha essa figura dele, um arquétipo que ele desenvolveu, meio punk, com chifres, saindo de um grande fogo, acompanhado por dois cães de fogo. Ele era um Exu, intensidade máxima, encarnação completa dos 1.000 graus.