“A Alemanha declarou guerra à Rússia.– À tarde, natação.”¹, anotou Kafka em seu diário no dia 2 de agosto de 1914, do que me lembrei logo nas primeiras semanas do ano, quando desenvolvi um novo hábito: o de nadar.
Em menos de dez palavras, trata-se da síntese perfeita da forma-diário. Nessa anotação veloz, vemos a tensão entre as forças do mundo exterior, que não podemos controlar, e o estado da experiência mental que, neste caso, traduz-se na apatia que deu o tom do temperamento ocidental do último século. Não me ocorre, contudo, que o escritor tcheco de língua alemã tivesse consciência disso quando escreveu a frase em seu caderno sem pauta. Não: a natação – junto a outras atividades físicas, ainda que sem dúvidas a mais acentuada – ocupava um lugar central em seu cotidiano. Dividido durante grande parte da vida adulta entre o emprego de corretor de seguros e seu compromisso com a literatura, arrisco dizer que a natação, para ater-me ao léxico aquático, foi o que o ajudou a manter a cabeça fora da água. “Mergulhei e logo já me orientava”, anota ele em seus Diários, da mesma forma como ao longo dos doze cadernos – que, apesar do testamento de seu autor, Max Brod não incinerou –, são numerosas as referências às piscinas públicas às margens do Rio Moldava e à Escola Civil de Natação de Praga. Vale ainda citar a memória do vestiário masculino que Kafka evoca em sua Carta ao Pai – “Às vezes nos despíamos juntos numa cabine. Eu magro, fraco, franzino, você forte, grande, largo.”² – e a reação do escritor, contida numa carta à sua noiva Felice Bauer, à recomendação do médico que, visando frear a deterioração de seu quadro tuberculoso, o pedira para parar de nadar – “impossível”³. Resumindo, tudo indica que não é acertada a voz que a escritora norte-americana Lydia Davis constrói para seu narrador no conto “Kafka Prepara o Jantar”, do livro Tipos de Perturbação, quando diz “Não sou elegante, afinal. Alguém disse uma vez que nado como um cisne, mas não era um elogio.”4
Não cabe a mim investigar se a natação teve influência no uso que Kafka fez da linguagem, se os exercícios de respiração e a sincronicidade dos membros encontravam reflexos na sua forma de ordenar vocábulos, compor imagens e tudo mais, embora a inversão que ocorra debaixo da água, onde o som é mais rápido que a luz e, portanto, todo o mundo se espelha, me pareça um princípio kafkiano, remetendo ao que, a respeito de sua obra, Walter Benjamin chamou de “as deformações quase incompreensíveis da existência.”5 Só o que sei é que a relação entre literatura e natação não é de hoje.

A ARTE DA NATAÇÃO
Em 1997, convidado a realizar uma conferência em Buenos Aires com patrocínio da Associação Psicanalítica Argentina, o escritor Ricardo Piglia apresentou o texto O Melodrama do Inconsciente, que, um par de anos mais tarde, apareceria em seu premiado livro de ensaios Formas Breves sob outro título – “Os Sujeitos Trágicos (Literatura e Psicanálise)”. Os dois textos são praticamente idênticos, com a diferença de que o segundo se aprofunda sobre algumas das problemáticas propostas. Mas isso não importa. O que importa é que, em ambos, há um intertítulo nomeado “A arte da natação”. Em meio a um texto dedicado a esmiuçar a relação nem sempre harmoniosa entre literatura e psicanálise, fazendo um balanço do que um campo pode dever ao outro, o escritor de Respiração Artificial anota: “De fato, a psicanálise e a literatura têm muito a ver com a natação. A psicanálise é em certo sentido uma arte da natação, uma arte de manter à tona no mar da linguagem pessoas que estão sempre fazendo força para afundar. E um artista é aquele que nunca sabe se vai poder nadar: pôde nadar antes, mas não sabe se vai poder nadar da próxima vez que entrar na linguagem.”6
São nestas mesmas águas caudalosas que Piglia rememora a famosa interação entre Jung e Joyce a respeito da condição da filha do escritor dublinense, conhecido, tal como Kafka, por escutar sem medo o canto sinistro e sedutor das sereias. “Joyce era muito atento à voz das mulheres”, escreve Piglia. “Escutava as mulheres que lhe eram próximas: escutava Nora, sua mulher, uma mulher extraordinária; escutando-a, escreveu muitas das melhores páginas do Ulysses, e os monólogos de Molly Bloom têm muito a ver com as cartas que Nora lhe havia escrito em diversos momentos da vida […] Enquanto estava escrevendo o Finnegans Wake era sua filha, Lucia Joyce, quem ele escutava com muito interesse.” O interesse, no caso, vinha do fato de que Lucia sofria de transtornos mentais, razão que levou Joyce a procurar Jung, a fim de mostrar-lhe as páginas que a filha havia escrito sob seu incentivo, como uma tentativa de sublimar o intenso sofrimento psíquico. “Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é o mesmo que eu escrevo”, disse Joyce ao médico suíço – vale lembrar que Finnegans Wake é a experiência-limite da linguagem literária do século 20 –, que então teria respondido: “Mas onde você nada, ela se afoga.” Lucia Joyce faleceu em 1962, internada em uma clínica na Suíça.
Questão, portanto, de nadar ou morrer. A natação como uma forma de manter-se respirando, a cabeça fora da água, e uma forma de avançar. Algo parecido com a metáfora dos rios, dos córregos, seus afluentes e o que representam em termos de narrativa: um fluxo que alimenta a si mesmo, recaindo infinitamente sobre o impulso de sua própria energia. Melhor colocou Magalí Sequera em seu artigo El Relato-Río: La Gauchesca en La Ciudad Ausente, dedicado a investigar a influência do gaucho argentino na obra de Ricardo Piglia, do qual pinço alguns trechos refrescantes: “Acaso el río no es también una misma agua en constante movimiento y siempre renovada? […] El río no es solo esencial para el relato, sino que es el relato mismo […] No obstante, el río es también una forma de vivir el presente recordando el pasado […] El relato es un camino de agua, un camino sin fronteras que se tiene que emprender.”7

Outro texto que se firma sobre a premissa da natação como vontade de viver – e, consequentemente, de escrever –, é O Diário da Piscina, do escritor capixaba Luís Capucho. Publicado em 2017 pela editora É selo de língua, de São Paulo, o livro narra a rotina de um homem que, no inverno dos anos 2000, no Rio de Janeiro, decide começar a nadar. De saída, subentende-se que a natação surge em sua vida como auxílio na recuperação de uma doença. Trata-se de uma obra autobiográfica que, segundo as palavras do autor, “revela o funcionamento cotidiano de minhas aulas de natação para recuperação de sequelas motoras ocasionadas por neurotoxoplasmose, adquirida por HIV.”8 Além disso, é um registro selvagem da cidade sob a ótica de quem está indo nadar. “O caminho até a piscina é de enlouquecer de bonito. Eu sei que imaginar os canais internos da cidade, onde homens e mulheres forjam relações de poder e onde inventam os artifícios necessários para que pessoas sejam mantidas miseráveis enquanto outras usufruem de uma vida farta e bela, é uma visão terrível, infernal mesmo. Mas olhá-la de fora – e, ao mesmo tempo, o cartão postal por dentro – vista do caminho que faço para chegar à piscina, faz dela magnífica paisagem, maravilhosa e boa.”9 Ou seja, assim como na anotação feita por Kafka em seu diário de 1914, aqui também temos, partindo da natação como registro íntimo, uma busca pelo equilíbrio entre dentro e fora e como, por meio da respiração – da troca – estes dois campos podem interagir. Em Capucho, essa busca se revela como uma retomada de território, seja este território o corpo em recuperação ou a vista dos morros que, da janela do ônibus em movimento, erguem-se sobre a Baía da Guanabara.
O terceiro pilar da estrutura do Diário da Piscina, que vem arrematar a tensão entre interior e exterior da maneira talvez mais potente, é o erotismo. Todos os personagens do livro têm nomes extraídos da onomástica romana clássica (Troia, Domicila, Lúcio), e, de fato, os homens que frequentam a mesma piscina que o narrador – Cláudio – se comportam como deuses, ou assim lhe parecem. “Tenho a impressão de que rola uma tensão ou ansiedade em nós que coincidimos de nos encontrar nessa hora no banheiro, porque, mesmo que nosso traje de nadar seja mínimo, no banheiro, ficamos definitivamente nus. E, uns, por serem tímidos, não gostam de ter o tamanho do pau à mostra, sujeitos à comparação de grossura, peso, cor e modelo. Outros, gostam da exposição, assim, escaldados, gostam de ver e mostrar.” A análise do comportamento social, feita desde um estado de vulnerabilidade, aponta para algo da ordem do uso da linguagem, a aplicação de códigos como forma de organizar a experiência inacessível à razão, impressão que se intensifica quando Cláudio nos diz que “vir aqui no Diário da Piscina é um pouco o exercício de me ver” e explode nas palavras de Capucho sobre o livro: “É como se reaprendêssemos o nado, o andar, o ler e o escrever.”
Tanto para Kafka quanto para Capucho, passando por Joyce e Piglia, nadar não deve nada ao ato de escrever ou ler. Melhor: nadar é uma forma de ler. Isso talvez explique porque passagens memoráveis da obra do cronista mineiro Fernando Sabino sejam aquelas contidas no livro O Encontro Marcado, em que ele se dedica a falar sobre sua relação com o esporte: “Era uma espécie de êxtase: fazer de simples prova de natação, a que ninguém o obrigava, uma disputa em que parecia empenhar o destino, fazer da arrancada final uma luta contra o cansaço, em que a vida parecia querer prolongar-se além de si mesma.”10 Talvez explique porque, passados tantos anos desde que o li, me lembre com tamanha nitidez do conto “A Equipe de Natação”, do livro É Claro que Você Sabe do que Eu Estou Falando, de Miranda July, em que a narradora conta para seu ex-namorado, em uma carta, sobre a época em que vivia na cidadezinha de Belvedere, na Califórnia, e como, de maneira inesperada, se tornou instrutora de natação para um grupo de idosos, com um único detalhe: em Belvedere não havia nenhuma concentração de água, nem nenhuma piscina, o que a obrigou a improvisar, dispondo tigelas de água morna com sal sobre o chão de seu apartamento para que os alunos pusessem o rosto e simulassem a respiração de lado. “Admito que aquelas não eram as condições ideais para se aprender a nadar, mas, observei, era assim que os nadadores olímpicos treinavam quando não havia uma piscina por perto. Eu sei, eu sei, eu sei, era mentira, mas precisávamos daquilo porque éramos quatro pessoas deitadas no chão da cozinha, chutando-o como se estivéssemos zangadas, como se estivéssemos furiosas, como se estivéssemos desapontadas e frustradas e sem medo de demonstrar isso. ”11 É um conto hilário, cheio do estilo perplexo e sarcástico com que July magnetiza seus leitores e seus entrevistados (pensemos no livro O Escolhido Foi Você, em que ela vai fazer visitas às pessoas que anunciam tralhas as mais diversas nos classificados do jornal), e que termina com uma frase inesquecível. Frase que, com uma ou outra alteração, poderia ser a continuação da anotação de Kafka: “Eu devo ser a professora de natação mais triste de toda a história.”
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Quando comecei a nadar, lembrando-me do diário de Kafka e, em conseguinte, de tudo que se seguiu nesse ensaio, passei a me perguntar o que é que existe nessas atividades físicas, para além da produção de endorfina, que nos atrai tanto. Lembrei então de algo que Piglia escreveu já no final da vida, uma anotação em seu próprio diário, disparada pela decisão de seus alunos em lhe presentear com um Kindle. “Lemos igual apesar das mudanças? Que é que persiste nessa prática de longuíssima duração? Tendo a pensar que o modo de ler não mudou, para além das mudanças de suporte – papiro, rolo, livro, tela –, da postura do corpo, dos sistemas de iluminação e das mudanças na diagramação dos textos. Ler sempre foi passar de um signo a outro. Esse movimento, assim como a respiração, não variou. Lemos na mesma velocidade que no tempo de Aristóteles.”12
Após o exercício de aproximar dois atos aparentemente díspares – a natação e a leitura –, posso afirmar que o que me atrai na primeira é a mesma coisa que me atrai na segunda. Se, como postulou Piglia, a transferência entre signos, qualquer que seja o suporte, não se altera, algo semelhante ocorre com o exercício físico: por mais que evoluam os gadgets, por mais fino que seja o tecido das vestimentas, por melhor que os óculos prendam à cabeça ou por mais reforçado que seja o silicone da touca, o corpo e o espaço que dialoga com este corpo seguem sendo os mesmos, assim como são as mesmas a resistência das águas e do ar e a elasticidade do tecido de seus pulmões.
“A parte mais bonita do seu corpo é para onde ele está indo”13, escreveu o poeta vietnamita-americano Ocean Vuong. E penso que é por esse caminho que segurar um livro, assim como se atirar na água e começar a nadar, podem ser o princípio de uma revolução.
1 Franz Kafka, Diários (1909 – 1923), trad. Sergio Tellaroli. São Paulo, Todavia, 2021
2 Franz Kafka, Carta ao Pai, trad. Modesto Carone. São Paulo, Companhia das Letras, 1997
3 Franz Kafka, Cartas a Felice, trad. Robson Soares de Medeiros. Rio de Janeiro, Ã Anima Editora, 1985
4 Lydia Davis, Tipos de Perturbação, trad. Branca Vianna. São Paulo, Companhia das Letras, 2013
5 Walter Benjamin, Kafka em Quatro Retratos-Relâmpago, trad. Gustavo de Carvalho. Ed. 100 Cabeças, São Paulo, 2024.
6 Ricardo Piglia, Formas Breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
7 Magalí Sequera, El Lugar de Piglia: Critica sin Ficción, org. Jorge Carrión. Barcelona, Editorial Candaya, 2008.
8 Luís Capucho, disponível em https://www.luiscapucho.com.br/diario-da-piscina.
9 Luís Capucho, Diário da Piscina. São Paulo, É Selo de Língua, 2017.
10 Fernando Sabino, O Encontro Marcado. Rio de Janeiro, Record, 1983.
11 Miranda July, É Claro que Você Sabe do que eu Estou Falando, trad. Celina Portocarrero. Rio de Janeiro, Editora Agir, 2008.
12 Ricardo Piglia, Um Dia na Vida: Os Diários de Emilio Renzi, trad. Sérgio Molina. São Paulo, Todavia, 2021.
13 Ocean Vuong, Céu Noturno Crivado de Balas, trad. Rogerio W. Galindo. Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2019.
