A 11ª Bienal de Berlim, intitulada em sua última fase The Crack Begins Within (A Fenda Começa de Dentro), terminou no domingo 1/11 após um ano de programação pública com caráter pedagógico, político e performático, dividida em três capítulos-experiências e um Epílogo – a exposição coletiva final, por sua vez instalada em diferentes instituições, de acordo com quatro blocos temáticos: A Anti-Igreja, Vitrine para Corpos Dissidentes, O Museu Invertido, O Arquivo Vivo.
O projeto curatorial de Maria Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Augustín Perez Rúbio começou em 2019, privilegiando o tempo lento das trocas de saberes e experiências processuais entre artistas, ativistas, educadores, pesquisadores e públicos, para construir exibições de teor íntimo, visceral e discursivo ao longo do processo, que evocaram reflexões sobre nosso sistema-mundo em crise aguda. Conceitualmente, a curadoria enfatizou a crítica decolonial somada a questões do Antropoceno, capitaloceno, eco-feminismo, eco-queer e a vontade de pensar sobre pedagogias radicais para escapar à captura subjetiva do capitalismo neoliberal. O recorte geopolítico-estético enfoca sobretudo o Sul Global, com maior presença de criadores da América Latina. O Epílogo trouxe uma profusão de visualidades e discursos artísticos que destrincharam decadentes narrativas modernas hegemônicas e seu duplo: a herança do patriarcado colonialista, que silenciou vozes operando genocídios, extrativismos, repressão de desejos, subjugação de formas de viver e pensar. Contra esse sistema de pensamento normativo de coação é que se deu a crítica geral da 11ª Bienal de Berlim.
Como aponta o grupo de curadoras, o projeto “(…) explora as fendas. Rachaduras nas histórias das nossas vidas. Rachaduras na nossa sociedade. Rachaduras que nos dividem. Mas também fissuras que nos ligam”. Contudo, o desejo de promover ações de ligação-reconexão entre indivíduos, coletividades e modos de pensamento foi atravessado pela pandemia, que restringiu o contato físico e transportou a comunicação e convivência para o plano virtual remoto. O crash pandêmico e as mudanças de paradigmas do convívio, forçou uma bienal de encontros e trocas a adequar-se a exigências anti-sépticas, de deslocamentos vetados, gerando um vácuo que, de certo modo, encaixou-se no cenário de mal-estar contemporâneo apontado no projeto. Portanto, se a crise sanitária golpeou o lado relacional da Bienal, ela foi também a confirmação da tese de que atingimos um pico de crescimento insustentável que nos exige pensar novas práticas de cuidados com a memória, a vida e eco-sistemas-mundos.
A Bienais, com suas escalas e expectativas, são engrenagens da indústria cultural que exigem produtividade de seus trabalhadores. Nesse sentido, pensar um tempo lento e próprio para o evento foi um paradoxal objetivo das curadoras, algo que tensionou críticas a muitos modos operacionais dentro e fora da instituição arte. Apesar de prestar homenagem a Flávio de Carvalho e seu ímpeto experimental vanguardista, a proposta curatorial é anti-modernista e aboliu visões de progresso maquínicas e de acumulação enquanto vitória da civilização sobre a barbárie. Assim, priorizou estéticas de atravessamento radical dos cânones iluministas – algo que ganha peso estando-se na Alemanha, com sua tradição filosófica racionalista cientificista do século 18.
A 11ª Bienal de Berlin ainda reverbera nas redes com a boa documentação on-line que permite conhecer propostas artísticas, performances pré-pandemia, conversas entre artistas e curadores, visitas comentadas e outros. Há também significativa quantidade de textos das curadoras, além de ensaios de autoras feministas como Rita Segato e Maria Llopis. A conversa-ato entre Lisette Lagnado e a artista e psicóloga Castiel Vitorino Brasileiro é um grande destaque na plataforma digital da 11ª Bienal, assim como a performance musical e coreográfica de Dorine Mohka. Vídeos e imagens podem ser vistos em https://11.berlinbiennale.de/media configurando assim o posfácio de um monumental Epílogo.