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Interwoven (2020), de Melvin Moti, vídeo que integra a itinerância da 34ª Bienal em Belém-PA [Foto: Cortesia do artista]
Postado em 27/09/2022 - 1:37
34ª Bienal de São Paulo em solo amazônico
A Imagem Gravada de Coatlicue e Hiroshima Mon Amour, dois enunciados da mostra, chegam a Belém do Pará junto com a procissão do Círio de Nazaré

Entendendo a importância de celebrar e preservar a cultura de um país que atravessa tempos sombrios e, ao mesmo tempo, que existe luz e canto na expressão estética, Belém recebe, a partir do dia 29 deste mês, um recorte da 34ª Bienal de São Paulo – Faz Escuro, mas Eu Canto. Pela primeira vez, o programa de itinerância da Bienal chega ao Norte do Brasil, escolhendo como sede desta estreia a cidade que é considerada a principal metrópole da Amazônia, Belém do Pará. O programa pertencente à Fundação Bienal tem como objetivo percorrer cidades do Brasil, passando também por Santiago do Chile, com abertura prevista para o dia 1º de outubro, no Centro Nacional de Arte Contemporáneo Cerrillos. 

A exposição acontece no Solar da Beira, edifício histórico, construído no século 19 em estilo neoclássico, visto como patrimônio da cidade, uma vez que integra o conjunto arquitetônico do Ver-o-Peso – a maior feira de gênero alimentício, entre outros itens, da América Latina. A mostra é composta por trabalhos de nove artistas: Alice Shintani (Brasil), Claude Cahun (França), Gala Porras-Kim (Colômbia), Haris Epaminonda (Chipre), Jungjin Lee (Coreia do Sul), Melvin Moti (Holanda), Naomi Rincón Gallardo (Estados Unidos/México), Uýra (Brasil), e o Mercado Ver-o-Peso abriga a escultura de néon de 10 metros de diâmetro da artista italiana Marinella Senatore, que foi destaque na expografia em São Paulo, coroando o percurso pelo pavilhão de Oscar Niemeyer, no piso superior.  

Obra de Marinella Senatore, que será exposta no mercado Ver-o-Peso [Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo]
“É a primeira vez que levamos o programa de mostras itinerantes da Bienal de São Paulo para a região Norte do país, e nos alegra muito que isso se dê justamente com a 34ª Bienal – edição que contou com um número nunca antes visto de artistas indígenas, alguns deles da região amazônica. Por meio da colaboração com a Prefeitura de Belém, chegamos ao Solar da Beira, patrimônio histórico localizado no coração da capital paraense, consolidando a Bienal como um evento que não é apenas do sudeste do país, mas de todos os brasileiros. Além da exposição, acontecerão também ações educativas e de difusão na cidade, fortalecendo nossa missão de integrar cultura e educação, e alcançar, cada vez mais, novos públicos, olhares e vivências”, afirma José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal.

A exposição em Belém é organizada a partir de dois dos 14 enunciados que nortearam a concepção da Bienal em São Paulo – A Imagem Gravada de Coatlicue, e Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais –, ao redor dos quais agrupam-se obras que dialogam com questões como alteridade e opacidade, sendo este último um conceito do martinicano Édouard Glissant, uma das referências teóricas desta edição. O filósofo também dá importância aos diferentes tipos de diálogos, assim como a maneiras de pensar relacionais. Já o título, Faz Escuro, mas Eu Canto, vem de um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, publicado em 1965. 

A curadoria fica por conta de Jacopo Crivelli Visconti – que foi o curador-geral da 34ª Bienal de São Paulo, além de curador do pavilhão do Brasil na 59ª Bienal de Veneza, para o qual selecionou o artista alagoano Jonathas de Andrade este ano. Autor da tese Novas Derivas, o curador aposta em seleções e abordagens, entre artistas e pensadores, que possam estimular o grande público a visitar a mostra — independente de qualquer conhecimento prévio sobre arte –, e reflete sobre o recorte escolhido para a mostra em Belém na entrevista a seguir. 

O que você pretende transmitir ao público de Belém do Pará com este recorte específico da Bienal de São Paulo?
O intuito é transmitir um pouco do que fizemos na 34ª Bienal de São Paulo. Sinto que, na maioria dos estados do Brasil, o público ainda esteja muito distante da arte contemporânea, assim como de questões urgentes que a Bienal aborda como propósito. Espero que ela seja um tijolo que possamos colocar para a contribuição cultural no estado do Pará.  

As obras de arte que você está trazendo para o Pará são especificamente para esta exposição ou já foram apresentadas em outros locais das itinerantes?
Há ajustes específicos para cada lugar, assim como também seria impossível resumir uma exposição que ocupou em São Paulo quase 30 mil metros quadrados em lugares que têm no máximo mil metros. Então, o que fizemos foi levar um ou mais dos enunciados que já estavam em leituras na Bienal de São Paulo. Os enunciados são elementos que vêm de outros lugares – ainda que não sejam obras de arte, mas que permitem fazer leituras específicas das obras organizadas ao redor deles.  

A 34ª Bienal de São Paulo partiu do conceito de “relação” inspirada nas reflexões de pensadores como as do filósofo Édouard Glissant. Em que contexto sua filosofia pode vir a abordar a arte indígena?
Várias culturas que ele aborda, por exemplo, a brasileira, formaram-se a partir da miscigenação, da mistura de culturas diferentes. Ele as considera mais interessantes e ricas do que as que ele denomina “de raiz única”. E, obviamente, por causa de fenômenos históricos mais tensos e violentos que resultam da fusão e choque delas, pelo fato de serem diferentes, enxergando também nesse aspecto um lado mais positivo e instigante. 

Em um dos enunciados a Bienal aborda o cineasta francês Alain Resnais, por meio do tema do filme “Hiroshima Mon Amour”, falando de amor e morte quase 15 anos após o bombardeio atômico que vitimou mais de 160 mil pessoas. O que motivou o desenvolvimento deste tema?
O que nos interessou mais foi a maneira como o filme e o roteiro demonstram que existe algo, principalmente nos museus históricos como o de Hiroshima, de que não se consegue dar conta (no caso de Hiroshima, do que foi o bombardeio) — existem coisas nos escombros que não adianta a gente tentar descrever em textos ou transmitir de uma maneira que passe pelo racional. trata-se de entender que existem coisas que estão nas obras ao redor deste enunciado e no da Coatlicue que não podem ser explicadas. 

Self Portrait in Cupboard (1932/1995), de Claude Cahun [Foto: ©Jersey Heritage Collections / Divulgação)
A Bienal traz a Belém obras da artista Claude Cahun, que em 1928 realizava uma performance do “self” da qual emerge a defesa social de outras sexualidades, como hoje é corrente no movimento LGBTQIA+. De que forma você está trazendo este questionamento da artista para o mundo atual?
Como você disse, ela já apontava questões urgentes lá atrás. Além de precursora, Claude Cahun tem esta particularidade de conseguir encarnar a ideia do “self” nas suas obras, assim como vários de seus “personagens” possuem um lado irônico, lúdico, em muitos casos divertido. As fotografias da Claude me parecem muito instigantes e esta capacidade que ela tem de falar de uma maneira leve sobre este tema se perdeu um pouco.

Como é abordada na Bienal a temática descolonial?
Entendo como positivo e enriquecedor poder sentir como as obras podem ecoar e dizer coisas diferentes em contextos diversos. É sempre lícita qualquer outra manifestação em relação às obras, tirando excessos, mas interpretar uma mesma obra de maneiras diferentes, para mim, muitas vezes é um sinal de que ela nunca acaba de dizer o que tem para dizer. E isso é um sinal de riqueza e de força.  

Falando ainda sobre a violência colonial, o que determinou, na curadoria, o convite à artista colombiana Gala Porras-Kim?
Gala é um ótimo exemplo para entender uma obra de forma mais rica, pois ela aborda a história de uma língua que foi totalmente aniquilada por causa da colonização espanhola. Neste sentido, todos os trabalhos de Gala Porras-Kim possuem uma reflexão sobre o papel que as instituições culturais deveriam ter.  

Existe um reconhecimento maior ou menor do europeu em relação à arte indígena?
Acho que a Bienal chegou na hora certa, porque se inseriu em um movimento que já estava começando a acontecer. O Jaider Esbell é o primeiro nome que me vem à cabeça entre os agentes trabalhando para alavancar o discurso da arte indígena. Não digo que lá fora possa vir a existir uma repercussão maior ou menor, porque ainda não senti isso. Acredito que o público brasileiro esteja prestando muita atenção neste tema, finalmente.  

Nas mostras itinerantes, haveria um certo otimismo de pensar que o brasileiro possa vir a frequentar exposições com mais frequência?
Então, como mudamos isso? A única maneira de mudarmos o quadro de que muitas pessoas não frequentam exposições no Brasil, como um todo, é  proporcionarmos, em lugares com ofertas menores, exposições e eventos que acreditamos ter valores e conteúdos. Pouco a pouco, vamos mudar este cenário — não perdi as esperanças. 

Mas muita gente não se interessa em visitar uma exposição de arte por não entender sobre o assunto. Como esse público leigo poderia ser estimulado a ir?
Acho que uma das obrigações principais de uma Bienal como a de São Paulo é exatamente a de conseguir dialogar com todos os tipos de públicos, sobretudo os que não têm familiaridade com a arte. E, para isso, o Glissant foi e é uma ferramenta importante porque, de fato, ele fala que tudo se define pelas relações – entre pessoas, mas também as relações que se estabelecem entre uma pessoa e uma obra de arte. E, lógico, esta relação nunca vai ser igual, porque mesmo que sejam pessoas que entendem de arte e que acompanham com frequência as exposições, de qualquer maneira, cada uma chega de um jeito diferente para ver uma obra ou ver uma exposição. 

O artista da Martinica Victor Anicet terá suas cerâmicas expostas em Santiago do Chile, que é o próximo lugar a receber a itinerância da Bienal. Na Amazônia, existe a arte marajoara, da Ilha do Marajó, no Pará, e, além disso, o artista invoca questões quilombolas. Ou seja, são duas histórias que reverberam na Amazônia. Como você enxerga os quilombos espalhados nela, e qual é a leitura que espera que o público terá desta obra?
Os quilombos e as obras do Anicet nos interessam pelo fato de mostras as maneiras como culturas diferentes sobrevivem e se colocam em uma posição de resistência em relação a todas as violências, tanto físicas, quanto culturais, que tiveram de enfrentar.

 

Obra de Uýra que integra a itinerância da 34ª Bienal em Belém-PA [Foto: Matheus Belém / Cortesia da artista]
Quanto à artista paraense Uýra Sodoma, que você escalou para a 34ª Bienal de São Paulo, assim como para Belém, quais são as características da artista que mais chamam a sua atenção?
Desde o começo, foi uma artista muito importante para o equilíbrio da Bienal, porque ela aborda a questão de gênero. Uýra é a criação que nasce sobre uma reflexão e investigação científica. Esta que brota sobre a mata e os igarapés de Belém, levantando a questão de como eles estão sendo destruídos. Também carrega um lado místico esta entidade que aparece em muitas fotos das performances de Uýra, que diz respeito tanto à floresta como à cidade. 

Que papel a arte pode ter em relação às queimadas na Amazônia?
Quem trabalha com cultura, de uma maneira geral, deve transmitir um pouco dos valores e da sabedoria dos indígenas e suas culturas. Sendo assim, ajudaremos, não no curto, talvez, nem no médio, mas, certamente, no longo prazo a diminuir as queimadas — eu realmente acredito nisso.

Ainda em relação ao imaginário mitológico, a Bienal também traz ao Pará os desenhos da deusa asteca Coatlicue  — que é um de seus enunciados. Podes nos explicar o motivo desta escolha?
Tem vários aspectos neste enunciado. Um deles é a reflexão sobre todas as violências perpetradas nos distintos colonialismos no mundo. E esta abordagem que envolve a história da força da Coatlicue, vista como a “senhora da saia de serpentes”, é fascinante. Quando os espanhóis chegaram no México, em um primeiro momento, eles quiseram se apropriar da estátua. Mas, logo depois, eles a enterraram, pois havia uma força nela que não conseguiam entender ou controlar. Quando Alexander von Humboldt foi para lá, ele quis fazer desenhos da estátua, sendo assim, pediu para desenterrá-la. A história diz que ele não conseguiu terminar os desenhos, pois as pessoas tinham medo da estátua, e, sendo assim, a enterraram novamente. O desenho é uma maneira de trazermos para a mostra esta lenda. Mesmo com visões de mundos diferentes, há algo naquela estátua que continua reverberando, assustando e fazendo com que as pessoas se sintam levadas e compelidas a enterrá-la novamente.  

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Em tempo, trazendo essa força inexplicável para o estado do Pará, temos a história do caboclo Plácido José de Souza, que, em 1700, em uma floresta próxima a Belém, encontrou às margens do Igarapé Murutucu uma pequena imagem da santa Nossa Senhora de Nazaré, padroeira dos pescadores portugueses, levando-a para a casa. No dia seguinte, a imagem sumiu e ele a encontrou, novamente, no Murutucu. Diversas vezes esta cena se repetiu, a santa sempre voltava para as margens do igarapé. Sendo assim, lá construíram a igreja de Nossa Senhora de Nazaré. A santa passou a atrair multidões, o que reverberou país afora. Este conjunto de manifestações religiosas e culturais recebeu da Unesco, em 2015, o título de patrimônio imaterial da humanidade. Um dos milagres mais tocantes ocorreu em 1846, quando houve um naufrágio de um navio rumo a Lisboa, e os passageiros foram salvos por um bote que os trouxe de volta à capital paraense. Depois de um tempo, descobriu-se que tanto o barco quanto o bote teriam transportado a imagem de Nossa Senhora de Nazaré a Lisboa, para ser restaurada. Hoje em dia, aproximadamente 2 milhões de pessoas vêm todo ano à procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que é considerado uma das maiores manifestações religiosas do mundo. Este ano, a festa acontece a partir de 9 de outubro.

SERVIÇO
Solar da Beira [Blvd. Castilhos França, 120 – Campina]
De 29/9 a 20/10; terças a sextas, das 8h às 17h; sábados e domingos, das 8h às 14h; entrada gratuita