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Ilustração de Nina Lins a partir do desenho da capa de Computer Love, de Ian Uviedo, inspirada na capa do álbum Computer World (1981), da banda alemã Kraftwerk [Foto: ceLesTe]
Postado em 05/08/2024 - 7:13
05 – ERRAR

Talvez a maneira mais simples e por isso mesmo a mais óbvia de começar um texto sobre a construção de imagens seja a partir da descrição da imagem em questão. Sobretudo quando seus elementos, dispostos de maneira tão definitiva, nos transmitem a ilusão de que será uma tarefa fácil fazê-los aparecer sob uma supressão interpretativa: limamos o julgamento, buscamos nos ater ao visível para chegar ao núcleo do que nos é mostrado – mas não, nunca é tão simples, cada imagem é uma partícula que se deixa entrever sobre séculos e séculos de história, um pequeno ponto luminoso revelando a escuridão de onde provêm. “Toda imagem é um mosaico”, anotou Torquato Neto em um de seus ensaios sobre cinema, e penso que faz sentido; a ordenação de palavras e a linearidade sugerida pela forma frasal imputam à imagem uma unidade que não lhe pertence. Ela é múltipla, infinita, e a cada reprodução se torna mais original e, portanto, inacessível. Soma-se a isso a bagagem que cada receptor trará para o diálogo e o resultado é uma neblina espessa que contribui para tornar a imagem inalcançável.

A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix, com intervenção gráfica de Nina Lins

O desafio se acentua quando a imagem parece preceder o acontecimento que lhe permite registrá-la. É o caso da fotografia feita um instante após o atentado contra o candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, ocorrido no dia 13 de julho durante um comício em Butler, na Pensilvânia. Realizada em clima de desordem geral, a foto de Evan Vucci, da Associated Press, preserva uma forma cristalina: a regra dos terços está presente, o rosto de Trump, pincelado de sangue, está no centro, e seu punho cerrado – o símbolo universal da resistência – só fecha o triângulo – a mais imperativa das formas geométricas, a que diz “movimento” – ao ser coroado por uma tremulante bandeira dos Estados Unidos. Eu poderia ainda destacar a semelhança deliberada com a Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix, e a ressonância desse padrão em numerosas obras dos últimos 400 anos, e aqui fracasso um pouco propositalmente ao descrever a imagem, porque a verdade é que a minha descrição não importa – você sabe exatamente de que foto eu estou falando. Você, inclusive, já tem a sua opinião a respeito dela.

Deixando de lado a glândula conspiracionista que se inflama ao entrar em contato com imagens tão carregadas simbolicamente e instrumentalizáveis, a minha opinião, neste momento, vai ao encontro do conceito de nachleben, proposto por Aby Warburg, que detecta a vitalidade de certas composições que atravessam gerações no imaginário de indivíduos. Ainda que os experimentos com o Atlas Mnemosyne tenham sido interrompidos há mais de 80 anos em função da Segunda Guerra, a teoria permanece ativa e, quando nos deparamos com uma foto como a de Vucci, a sensação é de como se nós já a tivéssemos visto. Não, é mais do que isso: é como se ela sempre tivesse existido.

A dinâmica de reprodução de imagens, elevada a incalculáveis potências pelas tecnologias de comunicação em massa, não precisou de mais do que alguns segundos para decompor a imagem e distribuí-la em diversas direções. Os republicanos a trabalharam de uma forma, os democratas de outra, e talvez você, assim como eu, tenha visto primeiro uma reprodução – isto é, um comentário – antes de entrar em contato com ela. Todas as técnicas de reprodutibilidade são invocadas e num átimo o espaço é hiper-povoado por discursos, opiniões, debates, visões. Como sabemos, isso dura pouco, cada vez menos, até que outra imagem a substitua nos noticiários; camadas que vão sedimentando ao nível subterrâneo aquelas outras imagens – ou já esquecemos do Rio Grande do Sul devastado pelo descaso, ou do massacre do povo palestino? –, que, por razões bem conhecidas, não comunicam nada além de uma sensação crescente de impotência.

Factchecking do portal G1 com intervenção gráfica de Nina Lins

O desgaste da imagem, acompanhado pela desinformação que lhe cerceia, faz com que o fato significativo – o lançamento à candidatura de uma figura como Trump – se torne insignificante e eleva o significante – a imagem, portanto – à posição de sentido profundo da experiência.

A composição, claro, não é a única repetição presente nessa imagem.

Pródigo na arte das sequências e das repetições – “la repetición se había convertido en su marca” –, o escritor argentino Ricardo Piglia viveu alguns anos nos Estados Unidos atuando como professor convidado na Princeton University, período que retratou de forma auto-ficcional em seus livros Un Día en la Vida, terceiro tomo dos Diários de Emilio Renzi de onde extraí as aspas acima, e, principalmente, no romance O Caminho de Ida, publicado em 2014, uma de suas últimas incursões na ficção antes de sua morte, em 2017. Em ambos os textos, está demarcado seu lugar de estrangeiro, de invasor – tanto na sua relação com o espaço onde transita quanto na maneira que os sujeitos deste espaço o percebem, isto é, com uma desconfiança muitas vezes retratada na figura de policiais e revistas de passaporte –, é transmitida a noção de que esses lugares intersticiais são pontos privilegiados de onde se observar os comportamentos de uma nação, e é justamente em uma dessas brechas que Piglia detecta o que chama de “cultura do atentado”. Inspirado na figura do unabomber, um dos personagens centrais de O Caminho de Ida é o matemático Thomas Munk, que, com o intuito de frear as ações de “indivíduos que estavam realizando uma tarefa voltada à destruição de tudo que era humano na sociedade” [1] – leia-se professores e desenvolvedores interessados nos avanços da Inteligência Artificial –, começa a fazer experimentos com bombas caseiras, tornando-se assim um dos mais procurados terroristas de sua época e uma das mais fascinantes criações de Piglia, cujo argumento por detrás lembrei após ler o que os jornais diziam a respeito de Thomas Matthew Crooks, o jovem engenheiro que ganhou fama internacional ao errar o disparo de seu rifle AR-15 – ou melhor, do rifle de seu pai – contra Donald Trump e, logo depois, ser morto a tiros por agentes da FBI.

A Elevação da Cruz (1610), de Peter Paul Rubens, com intervenção gráfica de Nina Lins

“O que imediatamente circulou na mídia”, escreve Piglia, “e se transformou no centro do debate foi a pergunta: como é possível? Como isso pôde acontecer? Já não se tratava da tradição norte-americana do assassino solitário que irrompe de surpresa num bar e mata todos os fregueses porque na véspera não quiseram lhe servir um café irlandês, ou do secundarista que mata quem encontra pela frente porque o chamaram de gordo durante três semanas e ficou de recuperação em educação física. Nem sequer do empregado de supermercado que foi demitido e, já que não pode recorrer a um sindicato ou a uma organização de apoio, sobe numa torre e mata todo mundo numa espécie de violência política privada. São eventos recorrentes na história de uma sociedade que fez do individualismo e da despolitização sua bandeira”. Termino de sublinhar a última frase e avanço algumas páginas, onde ele arremata: “Seus argumentos e suas razões não eram considerados, o que era clássico nos Estados Unidos, onde as ações políticas radicais eram vistas como desvios de personalidade […] A discussão geral se centrava sobretudo em como (como Munk tinha feito para fazer o que fez), e não em por que o fizera. Era uma pergunta que ninguém se fazia quando se tratava de um evento político (por que Oswald matou Kennedy?), só lhes interessava o como (estava no alto de um prédio de escritórios com um rifle de alta precisão), e quando alguém afinal chegava a indagar as causas, a resposta era sempre a demência.”

Além do primeiro nome, Munk e Crooks compartilham também o epíteto de self made man e o temperamento reservado. Onde Piglia escreve “mortalmente sério”, a CNN complementa: “Ele tinha poucos amigos próximos, costumava atirar em um campo de tiro local e não parecia demonstrar opiniões fortes” – e os perfis parecem se mesclar. A última afirmação sobre Crooks soa factível, afinal, o jovem era visto como republicano pela família mas em 2021 havia doado US$15 para uma organização democrata em apoio à candidatura de Biden. O que mais sabemos? Não possuía antecedentes criminais e poucos dias antes de se tornar mundialmente famoso havia pesquisado o roteiro das campanhas tanto de Trump quanto de Biden e no campo de buscas de seu celular, recuperado pela perícia, figuravam também os nomes de atiradores solitários como Ethan Crumbley e Stephen Paddock. Ah, sim: e que seu pai possuía um rifle AR-15.

Mais do que torná-lo um candidato perfeito para uma cena como esta, a falta de carisma de Crooks ajuda a acentuar o caráter autônomo da imagem, como se a composição pudesse se valer, feito um parasita em busca de seu hospedeiro – a linguagem é um vírus, lembra? –, de um agente qualquer para se cristalizar no imaginário social.

O foco luminoso de sua forma prende nossa atenção por alguns instantes e, no entanto, a realidade prossegue: quatro dias após o atentado, do qual se recuperou rapidamente, fechado em um de seus campos de golfe, Donald Trump de fato lançou sua candidatura, anunciando J.D Vance como seu vice, fato que consternou a União Europeia, tendo em vista a relação do senador de Ohio com o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e a tendência de ambos em retardar o apoio à Kiev no contexto do conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Por maior que seja o que grande parte dos poderes europeus chamam de “imprevisibilidade” de Trump, é bastante nítido que, caso o republicano volte à Casa Branca, serão impostas taxas punitivas que resultarão em mais uma sequência de “guerras comerciais” – para não falar do cenário que se pintaria a partir do triunfo diplomático de Putin sobre Zelensky. “Eu não me importo com o que acontece na Ucrânia, de uma forma ou de outra”, diz Vance. E nisso estamos.

Apenas durante o tempo de escrita desse texto, novos acontecimentos ganharam protagonismo na imprensa internacional: Joe Biden desistiu de sua candidatura, abrindo espaço para uma série de declarações presunçosas de Trump; Kamala Harris emergiu no debate público como figura redentora, pondo à contra-luz as idiossincrasias das sociais-democracias; um terremoto no Chile fez chacoalharem alguns prédios no centro de São Paulo; um apagão cibernético atrasou voos e prejudicou serviços bancários e de comunicação ao redor do mundo; e, no momento em que você lê estas palavras, talvez tudo isso não pareça mais do que fragmentos de um passado remoto, já meio esquecido, porque, agora mesmo, o que importa é outra coisa – qualquer outra coisa.

Então me vem à mente uma passagem do livro Correntes, da escritora polonesa Olga Tokarczuk, em que, pegando emprestada a voz de um jovem anatomista do século 17, ela propõe uma visão no mínimo intrigante da dissecação de um corpo humano: “Por vezes, como hoje, ‘paira’ algo que eu costumo chamar de ‘a verdade do corpo’, uma estranha convicção de que, apesar da morte evidente e apesar da ausência da alma, o corpo deixado por si só constitui uma intensa totalidade. Obviamente, um corpo morto não pode estar mais vivo; refiro-me mais ao fato de preservar a sua forma. A forma de certo modo permanece viva.” [2] É este também o caso da fotografia de Vucci: apesar da morte do significado e de que a realidade nos parece a cada edição do jornal mais oca e abstrata, a verdade da imagem, tão demasiadamente humana, tão intrínseca às construções reativas da mente ocidental, sobrevive. Sobrevive e seguirá sobrevivendo sob o desfile das ocorrências felizes ou trágicas do tempo, sempre latente, até que as circunstâncias permitam outra vez sua presença, quando então, talvez, outras pessoas se relacionarão com ela, a discutirão, e, quem sabe, haverá alguém escrevendo a seu respeito, resistindo à sensação de que, a cada palavra escrita, mais ela escapa por entre seus dedos.

Quando Piglia fala de “uma espécie de violência política privada”, ele detecta ainda um outro denominador comum entre os atiradores: o isolamento. Do reacionário e moralista Travis Bickle de Taxi Driver ao inexpressivo Thomas Matthew Crooks, a mitologia dos atentados é nutrida pela recusa ou pela incapacidade destes sujeitos em participar dos ritos do parque humano. Munk, o matemático de Piglia, antes de começar seus experimentos assassinos, se aparta da sociedade e vai viver em um casebre nas florestas de Montana, um barraco sem energia elétrica que faz ecoar o chalé onde Florent-Claude Labrouste, protagonista do romance Serotonina, do escritor francês Michel Houellebecq, começa, com o auxílio de um velho amigo, a treinar tiro de precisão com uma Steyr Mannlicher-HS50. “O tiro de precisão”, explica o amigo, “tem muito a ver com a ioga: você procura formar uma unidade com a própria respiração. E respira lentamente, cada vez mais lentamente, o mais lenta e profundamente que conseguir. E quando está preparado, posiciona a mira no centro do alvo.” [3]

Apesar do passaporte francês do anti-herói, todo o romance é permeado pela sombra opressora do fóssil vivo do capitalismo, o que não é surpreendente quando pensamos que Houellebecq, autor de livros como Submissão – em que encontramos a França tornada uma teocracia islâmica –, é hoje, no campo literário, um dos maiores comentadores do terrorismo, quando não um terrorista ele mesmo. Uma rápida pesquisa na internet e você encontra relatos de um editor da Gallimard sobre como, ao solicitar que a ferramenta de Inteligência Artificial da Meta simulasse o estilo de Houellebecq, recebeu como resposta uma recusa sob o argumento de ela “não poder gerar conteúdo que possa ser lido como ofensivo ou discriminatório”. O romancista como criminoso, se deleitaria Piglia. E é este o crime supremo – a ficção.

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Há dois dias, no domingo, saí à noite para uma caminhada no bairro. Vivo a poucos passos da nascente do Água Preta, rio que abastece a região da Pompéia e é a razão das tantas vielas que costuram o tecido urbano da Vila Romana e adjacências. Na rua fazia silêncio o suficiente para que eu pudesse escutar, sob as bocas-de-lobo, o rumorejar de águas correndo no subterrâneo. Este texto já estava sendo escrito e pensei que, como tudo, as imagens, os livros e os acontecimentos aqui pontuados logo seriam carregados por aquelas águas e despejados na represa do esquecimento, onde se misturariam a todas as referências e eventos que os antecederam. Teriam o mesmo destino de tudo aquilo que ficou de fora dessa vértebra (me ocorre, por exemplo, a respiração de Crooks um segundo antes do disparo). Ponderei por um instante se isso era bom ou ruim, mas, por fim, decidi manter minha opinião em suspenso. Você sabe, pelo medo de errar.

 

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[1] Ricardo Piglia, O Caminho de Ida. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2014
[2] Olga Tokarczuk, Correntes. Trad. Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, 2021
[3] Michel Houellebecq, Serotonina. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2019