A história é recente e conhecida. Mal começou 2020 e as dificuldades econômicas do país foram ao limite, chegava ao Brasil o coronavírus. Com a necessidade de isolamento social, o meio cultural, que já tivera seu ministério rebaixado a secretaria, teve de deixar o palco. Museus e galerias fecharam as portas de suas mostras no lockdown. A crise sanitária e econômica sem precedentes nos últimos cem anos levou muitos ao desespero – e artistas e agentes do meio cultural à ação. De instituições privadas e públicas a coletivos e espaços independentes, iniciativas sociais espalharam-se pelo país.
Grandes instituições, como Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles e diferentes Sescs pelo Brasil, quase imediatamente criaram editais voltados para múltiplas vertentes artísticas. Destinados à exibição na internet, fosse nas redes sociais ou por streaming, os produtos dessas chamadas buscavam suprir a abstinência de programação em casa e abrir possibilidades de expansão de público e
criação de conteúdos on-line.
“Diante do cenário que a pandemia pintou para a classe artística e os profissionais da cultura, com o fechamento de cinemas, casas de espetáculo e museus, o Itaú Cultural procurou agir rapidamente. Três semanas depois do início da suspensão social, lançamos Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência, por meio do site, para acolher e abrir frentes de trabalho”, diz Eduardo Saron, diretor da instituição, à seLecT. Com prêmios no valor de R$3 mil, a iniciativa teve 1.100 projetos contemplados e exibidos on-line.
O Instituto Moreira Salles criou o #Quarentena, com um braço que vem convidando artistas a produzir especialmente para seu site, como forma de incentivar a produção, que já apresentou obras de nomes como Grace Passô e Denilson Baniwa. Já o Sesc lançou o edital Poti-Cultural, no Rio Grande do Norte, que teve duas edições no ano passado, premiando e exibindo ao todo 80 trabalhos digitais.

Fome de quê?
Depois, começaram a surgir no Instagram campanhas de doação de obras revertidas em auxílio monetário e alimentos para a população carente. Uma das pioneiras foi a #ArtChallengeCestou. “O Eduardo Lyra, da ONG Gerando Falcões, fazia toda sexta-feira um post chamando as pessoas a doarem cestas básicas, com a #Cestou”, diz a artista Graziella Pinto. “Ele me convidou a participar, e como eu tinha um trabalho lindo parado no ateliê, resolvi vendê-lo e doar o dinheiro para o projeto. Aí me veio a ideia de desafiar outros cinco artistas a fazerem doações, incluindo Sandra Cinto e Albano Afonso. Eles aceitaram na hora e começaram a chamar outros nomes, e viralizou”, completa a artista, organizadora da empreitada que arrecadou mais de R$ 400 mil com a venda de obras. Além da Gerando Falcões, o projeto ajudou também artistas necessitados, que tinham a opção de resgatar até 50% do valor da venda, doando a outra parte para a ONG.
Na mesma pegada, campanhas como 150 Fotos para São Paulo e 150 Fotos pela Bahia venderam imagens a preços camaradas para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade nesses estados. Fotos para Rondônia destina sua verba líquida “à articulação de suporte ao enfrentamento à Covid-19 pelos povos indígenas de Rondônia, sul do Amazonas e noroeste de Mato Grosso”, como diz o site do projeto.
Da parte das galerias, espaços de pequeno e médio porte de vários estados uniram-se no projeto P.ART.ILHA, que teve cinco edições desde abril de 2020. Nelas, quem comprar um trabalho ganha 50% do valor para adquirir outra obra na mesma galeria, ajudando a aquecer o mercado. Parte das vendas é destinada a uma ONG diferente a cada edição. “É uma ação que surgiu com o objetivo de auxiliar e apoiar o setor e acabou por introduzir uma mudança de paradigma nas relações do mercado de arte: galerias de vários estados do Brasil trabalhando de mãos dadas, com um objetivo único”, diz Niura Borges, dona da Mamute.

Ações no território
Outro exemplo é o Fundo Colaborativo para Artistas e Criadores, que se apropria da expertise de seis espaços independentes para enviar recursos para artistas de todo o país. “A pergunta que nos levou a criar o Fundo foi: ‘O que podem fazer as instituições de arte diante de situações extremas como uma pandemia?’ Espaços autônomos trabalham próximos aos artistas, o que nos torna lugares de experimentação, pesquisa, troca, aprendizado. Trabalhamos em rede naturalmente”, diz Bernardo Mosqueira, diretor artístico do Solar dos Abacaxis (RJ), à seLecT. A primeira iniciativa do Fundo é o Brotar, programa que começou com a seleção de seis artistas, como Letícia Barbosa (Carnaíba, PE) e Sallisa Rosa (Goiânia). Eles recebem R$ 800, são divulgados no Instagram do projeto e indicam outros seis artistas, até chegar ao total de 36 contemplados. Além do Solar, integram o Fundo o Chão SLZ (São Luís), Galeria Maumau (Recife), JA.CA (BH), Pivô (São Paulo) e Casa do Povo (São Paulo).
Se já era ativa antes da pandemia, esta última intensificou ainda mais suas iniciativas em diversas frentes, que vão desde a distribuição de alimentos frescos à população de seu entorno, o bairro do Bom Retiro (SP), até informações para obtenção do auxílio emergencial e produção e distribuição de máscaras. “Desde abril de 2020, a Casa do Povo deu uma guinada para priorizar ações no território. Reafirmamos nossa vocação como instituição aberta ao bairro e passamos a escutar melhor o que os nossos vizinhos precisavam para nos tornar mais úteis. Acabou sendo uma oportunidade para formar uma rede de solidariedade com as organizações culturais e sociais dos arredores, comerciantes e moradores. Isso dificilmente teria acontecido com essa potência não fossem essas trágicas circunstâncias”, explica a organização do espaço, que reafirma sua vocação coletiva e social no trabalho com parceiros como Lanchonete<>Lanchonete (RJ), Jamac (SP) e Ocupação 9 de Julho, que também aumentou o ritmo durante a pandemia.

A Cozinha Ocupação fazia um almoço mensal com insumos orgânicos de produtores locais. Com a pandemia, passou a ser semanal. Todo domingo um chef é convidado para cozinhar e trocar seus saberes com a equipe de moradorxs militantes que forma a Cozinha Ocupação 9 de Julho. “Hoje, nos almoços de domingo, são produzidas cerca de 600 quentinhas por semana, das quais 200 são oferecidas pelo delivery dos Entregadores Antifascistas, ao valor de R$ 30 cada, o que viabiliza a doação das outras 400 para os
moradores das ocupações e das comunidades periféricas parceiras”, conta o coletivo à seLecT.
No fluxo
Um epicentro da atuação de diversos coletivos artísticos é a Cracolândia, região no entorno da Estação da Luz onde vive um aglomerado da população de rua consumidora de crack, o chamado fluxo. Experimentado na redução de danos na região e trabalhando no terceiro setor há 15 anos, o artista Raphael Escobar teve de repensar estratégias junto aos coletivos com os quais trabalha, como o Tem Sentimento, de costureiras cis e trans, e a Cia. Mungunzá de Teatro, entre muitos outros. “Logo que a pandemia começou, primeiro nos isolamos, pelo medo de contaminar o pessoal da rua. Mas, com o tempo, vimos que precisaríamos voltar a agir”, diz Escobar.

Além da distribuição de quentinhas, os agentes da região passaram a distribuir os materiais de prevenção à Covid-19, com máscaras confeccionadas pelo Tem Sentimento. Todo o trabalho é remunerado, seja com verba pública, doações ou parcerias com instituições da região, como o Sesc Bom Retiro e o Museu da Língua Portuguesa, “menos a Pinacoteca e o Memorial da Resistência, que nunca se ofereceram para nenhuma atividade”, conta Escobar. “A gente busca uma economia solidária, com todo mundo recebendo pelo trabalho que faz, e todos os trabalhos são feitos pelos coletivos da região”, continua o artista. Para garantir uma renda mais consistente a cada seis meses, o artista juntouse a outros 40 nomes, que vão de Renata Felinto a Dentinho e Jaick MC, no coletivo Birico, que vende impressões fine art de obras produzidas por seus integrantes.
No momento atual, os coletivos e espaços independentes são aqueles que mantêm viva a rede de solidariedade, e o P.ART. ILHA é das poucas iniciativas encampadas por galerias e ainda em curso. O #ArtChallengeCestou prossegue, mas num ritmo mais lento. As instituições voltaram à política anterior de editais, mais esporádicos. “Parece que, no início da pandemia, muitas doações foram feitas como forma de aplacar uma culpa burguesa, e depois o pessoal esqueceu”, diz Raphael Escobar. No âmbito público, a Lei Aldir Blanc destinou R$ 3 bilhões para agentes de cultura de todo o Brasil, mas de forma ultrapulverizada, abarcando tanto o auxílio emergencial para trabalhadores da cultura quanto o subsídio a projetos e instituições. Para a Casa do Povo, “talvez a pergunta seja menos ‘quem’ precisa se colocar mais para que o auxílio à população seja ampliado, mas ‘como’ cada instituição de arte – e não só de arte – pode, dentro dos seus propósitos e da sua missão, colaborar de alguma forma”. Tempos difíceis pedem mobilização.