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Vista da exposição [Foto: Ana Pigosso / Cortesia Galeria Millan]
Postado em 02/08/2023 - 10:18
A armadilha da retrospectiva
Com mais de quatro décadas de produção, Emmanuel Nassar demonstra síntese e assertividade em exposição individual em moldes de retrospectiva em São Paulo

“Para um artista com mais de 70, toda mostra é uma retrospectiva”, defende o paraense Emmanuel Nassar. Poderíamos dizer também que toda exposição é uma armadilha. A lógica do mercado instrui que há de se fazer algo novo e chamativo, embora condizente com uma  marca já consagrada. Em EN2023, com texto crítico de Antonio Gonçalves Filho, na galeria Millan, Nassar responde bem a essa arapuca com trabalhos que caminham cada vez mais para a síntese e a coesão.

A exposição inicia com uma grande parede que começa no exterior da galeria e segue em seu espaço interno, coberta por chapas metálicas modulares pintadas ou colhidas por Nassar. Os binarismos viram piada: frente e verso; fixo e móvel; muito e pouco; canônico e banal. Esse último pêndulo Nassar balança de forma enfática: incisões de Lucio Fontana, equilíbrio de elementos metálicos de Alexander Calder, combustões viscerais de Alberto Burri, lamparinas de Giorgio Morandi e serras dentadas entre os chassis de Wesley Duke Lee — como em A zona, de 1964, em exposição em A coleção imaginária de Paulo Kuczynski, no Instituto Tomie Ohtake — coabitam versículos bíblicos em letreiros populares escritos à mão, peneiras de farinha de mandioca feitas nas feiras de Belém e bandeiras metálicas de anúncio de açaí.

Vista da Exposição [Foto: Ana Pigosso / Cortesia Galeria Millan]
"TODA ESCRITA EM NASSAR É UMA LEITURA: OS TRABALHOS, AS SOLUÇÕES E OS QUESTIONAMENTOS SE REPETEM PORQUE REITERAM UMA PERSPECTIVA PESSOAL PELA QUAL O ARTISTA LÊ/VÊ O MUNDO, E A PARTIR DISSO O ESCREVE, EM CIRCUITOS QUE SE RETROALIMENTAM"
Mondrien (2018) [Foto: Ana Pigosso / Cortesia Galeria Millan]

Em Mondrien (2018), Nassar cruza vergalhões que tensionam placas de madeira contra a parede. Já em  Alinhamento (2018), o artista utiliza do dispositivo da alavanca e do objet trouvé; e, em Lamparina (2019), brinca com o legado da arte cinética e do construtivismo. Nessas e em outras obras, os engenhos cognitivos de Nassar mostram-se apurados: leves desequilíbrios entre estruturas que deveriam ser estáveis, assim como a estabilidade de sistemas improváveis. 

Como ilustração da inserção de Nassar em escopos mais abrangentes de atuação e pensamento, a Millan apresenta na sala ao lado a mostra A arte pop e sua segunda geração — com obras de Andy Warhol, Antônio Dias, Cláudio Tozzi, Geraldo de Barros, Peter Halley, Raymundo Collares, Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro e Wesley Duke Lee —, reiterando os vínculos da produção de Nassar fora de escoras de observação que enxergam apenas o regional.

Se o neoconcretismo desmontava a relação sujeito-método-objeto do concretismo purista, Nassar embaralha todas as instâncias em um neoneoconcretismo — duplo, propositalmente confuso e reiterador — repleto de sujeitos, métodos e objetos. De modo engenhoso por sua quase impossibilidade, apresenta trabalhos extremamente sintéticos, mesmo os imbuindo de experiências, sensações e aspectos culturais e idiossincráticos. Se Nassar fala sempre de si mesmo ou se os trabalhos se repetem, esse fenômeno se dá menos no âmbito de uma expressão purista – automática em uma crítica engessada –, mas muito mais no âmbito da percepção. Toda escrita em Nassar é uma leitura: os trabalhos, as soluções e os questionamentos se repetem porque reiteram uma perspectiva pessoal pela qual o artista lê/vê o mundo, e a partir disso o escreve, em circuitos que se retroalimentam – isso se desdobra, inclusive, na reinserção de objetos descartados em um patamar de valor.

Lamparina (2019) [Foto: Ana Pigosso / Cortesia Galeria Millan]
Alinhamento (2018) [Foto: Ana Pigosso / Cortesia Galeria Millan]

Nassar projeta sempre em retrospectiva, reafirmando que sistemas de pensamento baseados na categorização e na segregação já entraram em pane – pouco importa o nome do que faz, se é arte, contabilidade ou propaganda. Há muito já se sabe que modos de pensamento mais largos e sustentáveis se abastecem de epistemologias mais próximas às dos povos originários, transmitidos mesmo que de forma diluída às pessoas nascidas e crescidas em núcleos urbanos na Amazônia. Não é novo, mas vale repetir: os trabalhos de Nassar reapontam o norte. 

No âmbito político, seus trabalhos reiteram a obsolescência da “visualidade amazônica”, proposta de leitura conceitual de críticos de arte sudestinos nas décadas de 1980 e 1990 que restringem as produções de artistas da região a recortes cartográficos — portanto artificiais e arbitrários — ou a respostas irrefletidas a manifestações vernáculas de cultura visual, magnitudes ecológicas ou narrativas mitológicas. A subjetividade de cada artista, a formação de seu senso crítico e a sua conexão com redes mais amplas são neutralizadas por leituras fetichizadas e alegóricas amontoadas em temas generalistas. 

Sobre estruturas flácidas, alguns curadores sudestinos perpetuam, em uma manutenção colonialista, noções de incapacidade do desenvolvimento de consciência crítica e individual de pessoas vindas da Amazônia — que só responderiam, teoricamente, a questões naturais, sagradas e sociais; incapazes de refletir sobre temas como a imagem, a contemporaneidade, a história, a visões ecológicas através de outras epistemologias e a tecnologia, como bem o faz Nassar. As obras exibidas frisam que a produção artística amazônica deve ser lida em redes de conexão ampliadas, analisando cuidadosamente seus hibridismos culturais em contexto global, ao mesmo tempo que respeitam suas particularidades locais.

"NÃO É NOVO, MAS VALE REPETIR: OS TRABALHOS DE NASSAR REAPONTAM O NORTE. "

Mateus Nunes é pesquisador e curador. Desenvolve pós-doutorado em história da arte e da arquitetura na USP e na Getty Foundation. Doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa e arquiteto e urbanismo pela UFPA, em Belém, é professor do MASP, onde coordena cursos sobre arte contemporânea paraense e barroco brasileiro.