Muito antes da modernidade, a experiência do cerco fazia parte da experiência daqueles acometidos quer pela peste, quer pela guerra. A Rendição de Breda é a única tela de Velázquez que tem por assunto um fato histórico. Entre 1622 e 1625, os espanhóis, liderados por Spindola, cercaram a cidade holandesa de Breda, defendida heroicamente por Justino de Nassau. A tela retrata o momento no qual o líder dos Países Baixos vai se ajoelhar para entregar a chave da cidade, agora rendida, mas é delicadamente impedido pela mão do espanhol, que reconhece, dessa maneira, a bravura dos resistentes habitantes daquela cidade. Nem toda perda é uma derrota.
Alexandria (30 a.C.), Jerusalém (70 a.C., 1099, 1187), Constantinopla (1204), Lisboa (1147), Veneza (1797) e Stalingrado (1942) são exemplos de cercos que marcaram a história da arte, da poesia e da literatura. Uma gravura de 1671, de autor desconhecido, hoje em Amsterdã, retrata o fim do cerco dos portugueses contra as tropas de João Maurício de Nassau, da mesma casa de Orange, à qual pertencia o líder da resistência em Breda. Disposta em cinco planos e duas perspectivas não complementares, a gravura retrata: a cidade alta, perfeitamente murada; a cidade baixa, com paliçada incompleta; ocas indígenas, ao lado de uma guarnição de negros com espetos, no alto dos quais pendem cabeças holandesas; um confronto entre massas difusas, indígenas e, em primeiro plano, o confronto entre portugueses empunhando mosquetes contra mamelucos armados com uma espécie de facas. Ao longe, quase que a olhar tudo isso com distância há um navio da Companhia das índias Ocidentais atracado na marina. Aqui a perda é uma derrota, mas, quando a arte faz testemunho desse acontecimento, ela se torna antídoto potencialmente transformativo.

No canto esquerdo da tela de Velázquez vemos um pequeno espaço em branco, reservado para uma assinatura que nunca veio a acontecer. Sem os historiadores da arte, a tela do espanhol permaneceria anônima, como a gravura do holandês. Se o assunto do fim do cerco é o mesmo, o tema parece diferente: o reconhecimento mútuo no primeiro e a desumanização dos perdedores no segundo. As imagens assuntam, ou seja, interpelam o nosso olhar de modo diverso: humildade de quem olha de baixo para cima, no primeiro caso; arrogância de quem olha de cima para baixo, no segundo. As duas imagens impõem uma temporalidade diferente ao olhar: concêntrica pivotante, rumo ao encontro central no primeiro; distribuída, periférica e elíptica no segundo. Como se pudéssemos apreender tudo de uma vez, se captamos a essencialidade do centro, deduzindo a lógica subordinativa e espiralada em Velázquez e tivéssemos de impor uma sucessão e um deslocamento do olhar em busca de totalidade, no caso da gravura de Pernambuco.
Há tempos tenho me perguntado, como psicanalista, mas também como aprendiz de curador, em museus e exposições, como certos encontros com a arte tornam-se tão produtivos e transformadores, para determinados pacientes, e por que outros tantos, ainda que expostos a doses regulares de cultura e repertório, parecem tornar-se mais sábios, mas ainda assim pouco capazes de usar a arte de modo “terapêutico”. A expressão é deveras herética porque a arte não deveria ser mais nem menos terapêutica, nem educativa ou moral, muito menos serva de narrativas políticas ou históricas. Em certo sentido, a experiência com a arte começa quando nos separamos da obsessão com sua eficácia e utilidade e passamos para uma experiência que tem a peculiaridade de ser definida pelos seus próprios termos.
Contudo, conseguir apreender a experiência em seus próprios termos é uma operação necessária para outra operação, talvez homóloga, ou seja, a transformação ética que esperamos de uma psicanálise. Isso não tem uma relação necessária com as virtudes da expressão, nem com as regras da representação de si, do outro e do mundo. A cidade que queremos depois da pandemia é também o olhar que pudermos construir e a história que poderemos contar sobre o cerco que vivemos. Se o cerco é o confronto de cada um com seus muros, o antídoto pode passar pelas janelas da arte.