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Divulgação
Postado em 20/10/2023 - 2:25
A Bienal faz sentido como ferramenta de transformação social?
Exposições de grande porte se tornaram linhas de produção de espetáculo, em que os educadores-operários guiam visitantes que observam com olhos de consumidor, não de cidadão

Uma coisa que a Coréia do Norte e a Fundação Bienal têm em comum são presidentes perpétuos. No caso brasileiro, o nome é o escudo de uma classe: Ciccillo Matarazzo, o sobrenome com o qual toda burguesia paulista se identifica (no caso coreano, também é o sobrenome que une uma burocracia). Por que começar com essa observação? O caráter monolítico da estrutura da Bienal deve ser levado em conta ao se observar a recente troca de bilhetes entre a Fundação e alguns de seus trabalhadores, felizmente mediada pela revista seLecT_ceLesTe.

A recente polêmica entre um coletivo de trabalhadores e a Fundação Bienal acende um sopro de esperança numa paisagem institucional de todo cinza, como é o meio da arte brasileiro, apesar de toda cor que as obras penduradas nas paredes lhe confiram. Recapitulemos: que trabalhadores tenham de ir a público em veículos especializados para pedirem para ir ao banheiro mostra até onde vai a nossa indústria cultural: é linha de montagem mesmo, e ninguém sairá do seu posto até o Volkswagen ficar pronto. O automóvel a ser feito é a visita do público, que olha embasbacado para a mostra com olhos de consumidor, não de cidadão. 

Quem se dá à leitura das listas de nomes que compõem a Fundação Bienal encontra, além do padrinho morto Matarazzo, outros sobrenomes famosos. Pode reconhecer um Leirner, um Muylaert, um Setubal. Pode se lembrar então dos filhos artistas e cineastas dessa gente que está amarrada às cadeiras como membros vitalícios de um Comintern. Essa gente não muda, até porque, em instituições vitalícias como as da Coréia do Norte, o progresso é muito lento. 

A “Carta aberta de repúdio às condições de trabalho na 35ª Bienal de São Paulo” merece leitura atenta e respeitosa. Traz a público, com detalhes, o que um visitante curioso e prudente já poderia intuir caso se dignasse a conversar com os trabalhadores que estão lá. A resposta da Fundação Bienal é interessante também. Começando e terminando por lamentar, no bom espírito da classe dominante brasileira, que a roupa suja tenha sido lavada no rio (“não foram acessados nenhum dos canais sigilosos de denúncia existentes”), nega todas as acusações e nos informa atender plenamente à legislação trabalhista, a mesma que foi destruída com o compadrio de alguns de seus membros vitalícios. Qual é a verdade?

RECAPITULEMOS: QUE TRABALHADORES TENHAM DE IR A PÚBLICO EM VEÍCULOS ESPECIALIZADOS PARA PEDIREM PARA IR AO BANHEIRO MOSTRA ATÉ ONDE VAI A NOSSA INDÚSTRIA CULTURAL

A Bienal de São Paulo permite opiniões pessoais. Para mim, a última curadoria que houve foi a da Bienal de 2006, Como Viver Junto, da curadora Lisette Lagnado. Tudo o que veio depois é de uma confusão desmotivante. Desde 2014, me parece que assisto sempre à mesma Bienal, em looping. Trata-se de uma tentativa reiterada desses bons senhores por trás dos panos de capitalizarem a seu favor o clamor das ruas, das redes e do povo por política. 

Há algumas edições a Bienal representa o epicentro cultural daquilo que Nancy Fraser chamou nos países centrais de neoliberalismo progressista. Leiam a respeito, infelizmente não sou capaz de fazer um resumo apurado agora. Não adianta desmascarar a Fundação Bienal, porque ela é o que ela é mesmo; não tenho dela informações além das que estão escritas nos jornais e das que ela mesma fornece em seus canais oficiais. O rei está nu, mas continuamos costurando para ele mesmo assim. 

A Bienal não cumpre seu papel educativo, que não seria o de deixar rapazes e moças esperando três horas para fazer xixi, mas de pensar uma curadoria que servisse ao esclarecimento do público de um país subdesenvolvido e não à construção de mais um provisório shopping center das sensações. Ao escolher a cultura do espetáculo, sobrecarrega os educadores e orientadores. E mais: os discursos produzidos em torno dessas operações espetacularizadas de esquecimento coletivo são uma capa fina que pode ser trocada à vontade. A morte do artista indígena Jaider Esbell, ele mesmo participante de uma Bienal, já devia ter acendido a luz amarela: algo não vai bem no mundo da arte.

 

Jorge Luiz é bacharel em artes plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e especialista em Arte no Campo pela mesma instituição. Atualmente mestrando no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da ECA-USP, na linha de História, Teoria e Crítica, é pesquisador junto ao grupo de estudos Entre Artes.

O REI ESTÁ NU, MAS CONTINUAMOS COSTURANDO PARA ELE MESMO ASSIM