A obra de Nelson Leirner é um eterno diálogo. Com ela mesma, com o espectador-participante, com a história da arte, com o mercado, as instituições, a cultura de massa. Por diálogo, no seu caso, entenda-se partida, duelo, provocação. Como bom duchampiano que é, Nelson Leirner é um exímio jogador. Em momentos marcantes de seus mais de 50 anos de estrada, travou um dos mais ásperos diálogos com o mercado de arte em Homenagem a Fontana – construindo telas em que o zíper não abre, é travado, em crítica aos colecionadores de Fontana, Lygia Clark, Hélio Oiticica etc., que emprestam obras para exposições, mas não deixam que sejam tocadas. Em seu mais recente projeto, a instalação Nossa Casa, Minha Vida – Visite Apartamento Mobiliado no Local, Nelson Leirner desafia uma instituição política: o programa de habitação popular Minha Casa Minha Vida, uma das principais vitrines da gestão do PT.
Embora o intuito original do artista fosse afrontar a escalada da especulação imobiliária, colocando o imóvel da Fundação Eva Klabin à venda, mudou de ideia ao se dar conta de que, hipoteticamente, a casa da colecionadora seria arrematada para um empreendimento da classe A, o que o desagradou conceitualmente. Assim, optou por uma inversão. Decidiu implantar dentro da casa-museu um apartamento-modelo do Minha Casa Minha Vida. Escolheu a Sala Inglesa, onde, ao anoitecer, a notívaga Eva Klabin descia de seu quarto e ocupava a mesma poltrona, em um ambiente revestido de painéis de cerejeira e repleto de pinturas da segunda metade do século 18.
No chão da sala de 24 metros quadrados, agora aparatada para uma família de quatro pessoas, o tapete persa deu lugar a um piso de madeirite. No teto, o lustre veneziano de estanho, do período barroco, deu lugar a uma luminária fluorescente. Nas paredes, as terracotas do período helenístico e as pinturas de Sir Joshua Reynolds e cia. foram substituídas por quadrinhos pintados por artesãos cariocas e uma estatueta de Iemanjá. Em vez das vitrines com peças de prata para rituais judaicos, uma incrível coleção de ímãs de geladeira. Além de colocar em evidência os contrastes de classes e as relações de poder da sociedade brasileira, Leirner faz questão de apontar “todos os desmandos praticados no uso de programas sociais pelo nosso governo”. Se já não estivesse clara, a intenção é enfatizada pelo álbum de recortes de matérias da imprensa brasileira sobre o projeto, disponível para consulta do público no hall da instituição.
*Crítica publicada originalmente na edição #20