Maria Martins, embora não existam registros de ter estado na Amazônia, recria essa região em sua obra com uma força simbólica que atravessa o tempo. Ela não apenas representou a floresta, mas a convocou. Reinventou o trópico como linguagem, como estado de potência, como campo de forças em que o feminino emerge como feitiço e fissura.
Maria foi uma mulher autêntica, irredutível às normas. Não foi apenas uma artista brasileira em trânsito; foi um pulso, um corpo político, um espírito em ebulição. Sua obra é autêntica — não influenciada, mas influenciadora. Como um ímã, ela reverbera e impulsiona todos ao redor com sua presença revolucionária.
Figura central do modernismo brasileiro e do surrealismo internacional, Maria Martins desafiou o machismo estrutural do século 20 com corpos de bronze tencionados, híbridos e indomáveis. Sua escultura é grito, vertigem e armadilha. Subverte o olhar masculino, criando uma linguagem própria em que o erotismo não se curva, mas se impõe.
Suas primeiras obras buscaram referências nas mitologias afro-brasileiras e indígenas. No entanto, ao invés de ilustrá-las, ela incorporou essas forças para criar uma cosmogonia própria, entrelaçando o instintivo e o sagrado. Obras como Cobra Grande (1943), que evoca a divindade ancestral da floresta, ou O Impossível (1945), que encarna a tensão entre desejo e violência, dialogam e reencantam o Brasil profundo.
Essas esculturas não documentam o desaparecimento da floresta; combatem-no. Sua obra age como um contra-ataque ao apagamento dos mitos, das cosmovisões e da potência ancestral ameaçada. O bronze pulsa como um coração antigo, como o coaxar abafado de um animal que insiste em resistir. Ela eterniza o gesto artístico como guardião de um tesouro nacional — não o tesouro do passado, mas o que ainda luta por existir.
Na SP-Arte, no estande da galeria Marco Zero, de Recife, parceira da galeria Almeida & Dale, diante de uma obra sua em nanquim e aquarela, Sem Título (s.d.), algo me hipnotizou. Baixou o espírito. Entendi. Maria não apenas criou esculturas; ela encarnou um chamado. Um gesto que ainda vibra, neste século 21, como se fosse feitiço recém-lançado. Porque, no fim, o que está em disputa não é só a floresta. É a memória. O feminino. A potência dos corpos que recusam o silêncio. E Maria Martins, com sua obra hipnótica, é parte viva desse feitiço que insiste em não morrer. Ela permanece.


ENTRE O SURREAL E O ANCESTRAL
Já a obra de Joana Vasconcelos no estande da galeria Baró, Pewa (2025), de faiança pintada à mão com renda crochetada, apresenta sapos coloridos reunidos lado a lado em círculo. Peça a peça, montam uma constelação insólita, em que o grotesco encontra o encantado.
No imaginário popular, poucos símbolos persistem tanto quanto o sapo — criatura anfíbia que salta entre a terra, a água e o mistério, evocando metamorfose, transgressão e a linha tênue entre o mundano e o mágico. Entre o sagrado e o profano, é amuleto e feitiçaria.
Nos contos dos Irmãos Grimm, o sapo assume um papel duplo: o grotesco e a transformação. Em O Príncipe Sapo, um príncipe enfeitiçado se transforma no animal e só retorna à sua forma humana após um gesto brusco da princesa. Essa história sintetiza o caráter enigmático do sapo: ao mesmo tempo criatura repulsiva e portadora de uma promessa oculta, aguardando o toque que revele sua verdadeira essência.
No Brasil, o sapo-cururu, imortalizado na cantiga infantil, ocupa um espaço de afeto e memória coletiva. Sentado à beira do rio, seu coaxar rítmico ressoa como um mantra ancestral, ecoando no imaginário da paisagem amazônica. Na Amazônia, os muiraquitãs, amuletos em forma de sapo esculpidos em jade, eram entregues como talismãs encantados, assegurando proteção e boa fortuna. Eram símbolos de um poder que fluía entre o mundo visível e o invisível.
No entanto, o talismã da sorte parece ter perdido seu poder. A Amazônia, Hileia de encantamentos e mitos, está sendo devastada. Se os muiraquitãs eram a promessa de proteção, agora jazem soterrados sob queimadas e mineração ilegal. O coaxar dos sapos, outrora uma canção noturna da floresta, agora é silenciado pelo estrondo da terra ferida, como se o próprio coração da natureza estivesse sendo esmagado.
Se há uma maldição a ser quebrada, talvez seja a ilusão de que progresso significa destruição. O mundo não precisa de um príncipe encantado para acordar do feitiço que o cega diante do próprio colapso. Afinal, quando a última árvore tombar e o último rio secar, não haverá beijo capaz de reverter a tragédia. O que se desfaz na Amazônia não é apenas uma paisagem, mas um sistema simbólico, cultural e espiritual que sustentou civilizações inteiras.

A floresta é um organismo vivo, e os muiraquitãs são sua memória mineral, seu espírito petrificado, mas na lógica da destruição, os amuletos viram mercadoria e os sapos — mensageiros de mundos ocultos — tornam-se vítimas do envenenamento dos rios. “A Amazônia não é apenas um território, mas um discurso em disputa, um embate entre cosmovisões, entre o pensamento indígena e o delírio colonialista que ainda persiste. A arte e a crítica podem ser os últimos guardiões”, destaca Paulo Herkenhoff, que sempre vê a floresta como um espaço de múltiplas narrativas e resistências.
O canto dos sapos, que já ecoou como um presságio em tantas mitologias, hoje parece um alerta abafado. Se insistirmos em ignorá-lo, não haverá mais histórias a serem contadas. Apenas o silêncio.