Na introdução de Cultura Amazônica – Uma Poética do Imaginário (2015), o poeta e pensador paraense João Jesus Paes Loureiro apresenta o distanciamento, ou o estranhamento, como conceito-chave para sua análise do imaginário amazônico. Extraída da teoria teatral de Bertolt Brecht, a ideia de distanciamento confere um sentido dialético às relações dos homens com outras realidades: “Relações em que a motivação estética e a consciência do real devem permanecer juntas numa mesma atitude de espectador-participante ou receptor ativo”, aponta Paes Loureiro.
Nesta edição #49 da seLecT, que configura uma introdução à série de publicações que dedicaremos em 2021 aos imaginários da floresta, elegemos como primeiras palavras as margens e periferias. Num gesto de prudência e respeito, nos aproximamos de nosso objeto de estudo pelas margens, cientes do nosso lugar distanciado de “receptores ativos” dessa que é a maior floresta tropical do mundo, que representa dois terços das florestas naturais do Brasil e que cobre quase 50% do território nacional. Amazônia, que neste trágico 2020 teve o maior registro de incêndios de sua história e está gravemente ameaçada pela atual gestão governamental.
Daqui, deste árido bioma urbano chamado São Paulo, eu, Leandro Muniz e Nina Rahe iniciamos um movimento de aproximação com a floresta no momento auge da primeira onda da pandemia. Começamos a buscar, pelas vias digitais, os informantes e os contadores das histórias que nos abriram as primeiras trilhas de acesso. Estabelecemos uma agenda de reuniões de pauta com diversos artistas e pesquisadores do Norte do país, entre eles, Rafael Bqueer, que nos disse que seu desconhecimento sobre suas raízes étnicas o levou a investigar “as identidades afro-indígenas que nos foram negadas, já que a violência da colonização apagou nossas histórias”. E assim, em busca da própria identidade ancestral, remixar signos locais e globais na construção da própria imagem.
Decidimos que as quatro edições florestais de 2021 serão escritas com ativa participação de nossos interlocutores, os habitantes das florestas e das cidades amazônicas, corpos afro-indígenas que constroem suas próprias narrativas. As vozes que abrem a edição são de Orlando Maneschy e Keyla Sobral, curadores da Coleção Amazoniana da Universidade Federal do Pará, um projeto em movimento que arregimenta obras que ativam reflexões sobre um território múltiplo. As amazonianas se somam e se contrapõem às necrobrasilianas, pesquisa de Moacir dos Anjos com nomes, como o amazonense Denilson Baniwa, que se apropriam de representações do Brasil feitas por artistas viajantes, extraindo delas significados novos e críticos, construindo narrativas contra-hegemônicas e constituindo outra memória de Brasil.
Imbuídos da atitude de viajantes-participantes das múltiplas Amazônias, investigamos nesta edição os sentidos das margens e das periferias.
Margem é o partido visual assumido pela designer Nina Lins nesta edição, tensionando os limites das páginas da revista;
Periferia é o encontro da floresta com a cidade, que se processa nas imagens de Dirceu Maués, Nay Jinknss e Armando Queiroz do Mercado Ver-o-Peso, de Belém;
Margem é a zona de atuação de Uýra Sodoma nos igarapés poluídos, nos bairros sem saneamento básico de Manaus;
Periferia é o berço da cultura YouTube, onde apareceu Leona Vingativa, viralizando imagens em baixa resolução;
Margem é a borracha queimada de pneus, o asfalto derretido e outros “materiais de fronteira”, trabalhados por Frederico Filippi;
Periferia são os trânsitos ilegais, a clandestinidade, o não lugar, a deriva praticada pelos filmes de Maya Da-Rin;
Margem é o limite incerto entre o Brasil Nativo e o Brasil Alienígena, como ensina Anna Bella Geiger;
Periferia é o centro da cultura do remix, a cena drag de montação, a afroficção, a Mãe Terra intergaláctica, o Curupira na estrada fantasma rumo à Realidade;
Margem é sair da periferia de Belém e ocupar os espaços de poder da arte contemporânea;
Periferia, assim como centro, é um conceito vago e relativo que ativamos neste momento divisor de águas para a vida no planeta.
O aprendizado com a pandemia e com a grave crise ambiental é entender que somos parte de um sistema articulado – um cosmo – e que temos de encarar o futuro com imaginação, invenção, empatia e cooperação. Feliz ano-novo.