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Fotos: Vistas da exposição O Que Não É Floresta É Prisão Política (Crédito: Ding Musa)
Postado em 14/10/2020 - 9:29
A galeria, a floresta e a política
Ao premiar a Galeria Reocupa, Prêmio seLecT categoria Arapuru reconhece o papel pedagógico da articulação da arte a movimento por moradia

A segunda exposição promovida pela Galeria Reocupa, O Que Não É Floresta É Prisão Política, é o projeto formador premiado na categoria Arapuru do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação. A coletiva contou com a participação de 150 artistas, entre eles moradores da Ocupação, e foi concebida organizada e montada de modo agregador, orgânico e sem delimitação, diferentemente do modelo de uma galeria convencional. A mostra se modificou ao longo do tempo, promovendo ativações mensais com oficinas de arte e atividades na Cozinha Comunitária. Além do impacto no cotidiano da comunidade da Ocupação 9 de Julho, o projeto envolveu diretamente 40 moradores, entre eles, Felipe Figueiredo, que criou uma leitura própria da exposição e se tornou seu mediador desde a abertura em 15/9/2019, até o início da pandemia.   

O desmatamento da Amazônia e as diversas formas de violência policial contra populações vulneráveis também estão no espectro de ações da mostra, compreendendo prisão como um problema mais amplo que inclui a destituição de direitos, a destruição do meio ambiente, além das prisões de fato.

Desde a sua abertura, em 2018, a Galeria Reocupa já recebeu a visitação de mais de 15 mil pessoas. Essa visibilidade por meio da arte vem de encontro à intenção dos movimentos sociais de travar um diálogo continuado entre a ocupação e a sociedade. “A gente tem a expertise de abrir as portas e colocar as pessoas pra dentro. Mas quando vêm os artistas, colocamos o movimento para fora também”, diz Carmen Silva, uma das líderes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), à seLecT. 

A desmontagem da exposição coincidiu com o início da pandemia e, desde então, os projetos e o investimento de energia estão se dando de outra forma, muito em torno da cozinha e do projeto Lute Como Quem Cuida, em parceria com o MST. O projeto possui duas frentes de captação: doações diretas ou a colaboração por meio de uma rifa para aquisição de um objeto de um artista, todos doados para o fortalecimento da causa. O objetivo é distribuir marmitas para populações vulneráveis. 

A Ocupação
O edifício que foi sede do INSS, na região central de São Paulo, esteve abandonado por 20 anos antes de sua primeira ocupação em 1997, por uma outra entidade política. “Em 2000, fundamos o MSTC e saímos por livre e espontânea vontade, com uma promessa de retornar em 2003 com o prédio reformado, o que nunca aconteceu, e então fizemos uma segunda ocupação.” diz Carmen Silva. “Em 2016, fizemos a última, já com a expertise de agir em rede, então ocupamos com artistas, arquitetos, a imprensa, os setores da sociedade civil que poderiam nos ajudar e alguns do poder público, como a saúde.” 

O edifício abriga hoje, em seus 14 andares, cerca de 130 famílias. Após a retirada do INSS, o prédio passou para o Instituto de Previdência Municipal de São Paulo, em 2019. “Mandamos uma proposta para a Prefeitura que se chama Participação Público Privado Popular, com a proposta de utilizar o prédio com encargos durante 35 anos, contribuindo para sua revitalização”, continua Carmen Silva. “É uma ideia que chamamos de Regularização Fundiária Urbana e Requalificação de Prédios Centrais. Mas, infelizmente, está parada.”

Pautados por uma ética de “autonomia na rede”, o MSTC tem o apoio de engenheiros e arquitetos que garantem a ocupação adequada do prédio, garantindo a segurança das pessoas. Há uma rede de apoios que garantem uma vida completa, pois há acesso moradia, saúde, mobilidade e consciência sobre o meio ambiente. A presença da arte esteve na própria gênese da Ocupação, com a participação e articulação com artistas que contribuíram para a visibilidade e circulação, mas também para a formação de todos que participam dessa rede. 

A Galeria
Durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e após Michel Temer assumir a Presidência e anunciar a extinção do Ministério da Cultura, diversos coletivos de artistas reagiram ocupando as sedes da Fundação Nacional das Artes (Funarte) no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. 

Em São Paulo, a ocupação intitulada Aparelhamento promoveu exposições, performances e um leilão para levantar fundos para ações contra o golpe que se anunciava. Um dos tantos desdobramentos desse grupo foi a configuração orgânica da Galeria Reocupa, que hoje atua dentro da Ocupação 9 de Julho, junto ao MSTC. 

Em 2016, quando o governo pediu reintegração de posse da Funarte São Paulo, o prédio estava repleto de obras, o que inviabilizou sua remoção, do ponto de vista jurídico. A estratégia foi replicada na Galeria Reocupa, o que funcionou como forma de proteção à Ocupação 9 de Julho, pois o lastro de valor econômico das obras presentes no antigo prédio do INSS dificulta ações judiciais de despejo. 

“Ao reintegrar os prédios, o poder público tira os corpos, mas se responsabiliza pelos bens. Guardar um fogão ou uma geladeira é fácil, mas, legalmente, uma obra de arte precisa de seguro para ser retirada, isso dificulta a reintegração”, dizem os artistas da Reocupa à seLecT

A entrada do Aparelhamento na Ocupação 9 de Julho se deu pela cozinha do projeto, que agregava a comunidade local em torno de almoços coletivos. “Quando já estávamos em movimento na cozinha, descobrimos um espaço incrível que poderia ser uma galeria e propusemos para a Carmen”, dizem os artistas da Galeria Reocupa.   

A primeira exposição da Galeria Reocupa foi uma individual de Nelson Félix, que aconteceu a partir da aproximação do artista a engenheiros que estavam trabalhando no local. A instalação na ocupação completava o projeto concebido para a 33ª Bienal de São Paulo e uma das obras foi doada permanentemente para a Ocupação. 

“O projeto chama ‘galeria’, mas é um espaço de conversas, trocas, que usa de algumas estratégias comerciais”, continuam. “Sua função é tensionada por estar numa ocupação, num movimento de moradia. Estamos na casa das pessoas. Então, como criar um espaço de arte dentro de um prédio que é um espaço de luta social?”

Os artistas participantes do grupo não assinam a autoria dos projetos ou se manifestam individualmente em suas declarações públicas, discutindo permanentemente suas ações. Há vendas de obras para a criação dos próprios fundos, mas não existe objetivo comercial. As vendas são usadas para o financiamento do próprio projeto e para o fortalecimento das ações em comum. Não há remuneração dos artistas pelas atividades realizadas no âmbito da ocupação e o dinheiro arrecadado vai para melhorias do prédio, fomento da galeria e eventualmente para o auxílio emergencial em comunidades específicas. 

A Galeria é uma das atividades conjuntas à Ocupação, que também inclui a projeção de filmes com debates junto a seus autores, leituras dramáticas, oficinas, shows, uma horta comunitária, além dos almoços mensais e uma série de outras ações que surgem de acordo com as demandas internas da comunidade.

Tecnologia social
Diferentemente da prática artística, geralmente ligada ao desempenho individual, o movimento social é uma organização coletiva que ao mesmo tempo delibera funções e garante a autonomia de seus participantes. Isso ensina muito aos artistas. “Temos que nos policiar, para não cair nos narcisismos do mundo da arte. Isso vem através de muita conversa e muita escuta, para favorecer o movimento e a horizontalidade”, dizem os integrantes. “Uma coisa linda que aprendemos dentro do movimento é autonomia e zero assistencialismo para que cada um amplie suas possibilidades e conhecimentos.” 

Essa tecnologia social, baseada na troca dos saberes, também faz pensar no quanto as potências individuais, e as possibilidades privadas, podem se agregar em prol do bem comum e do interesse público.

O MSTC é um movimento que se abre para a sociedade, transformando ambos os lados. A presença da Galeria no Movimento auxilia na criação de uma proteção que evita as medidas de reintegração de posse. Quanto mais visível ela é, mais difícil é a reintegração. A presença da arte naquele lugar é formadora para moradores, artistas e para o público, mas, principalmente, uma forma de proteção ao movimento, como um escudo social. 

O prêmio
Ao premiar a Galeria Reocupa, o Prêmio seLecT de Arte e Educação reconhece o caráter pedagógico da articulação da arte ao movimento por moradia.

O Prêmio Arapuru é uma nova categoria de premiação, criada graças ao apoio da Arapuru Gin e a consciência da marca na necessidade de se viabilizar a arte e a educação no Brasil hojePara o desenvolvimento futuro da Galeria Reocupa, a marca destinará o valor de R$6.000,00, distribuídos periodicamente.

“A Arapuru foi inspirada no Abapuru, de Tarsila do Amaral, e todos os questionamentos sobre identidade cultural que o modernismo no Brasil evoca.” diz Mike Simko, fundador da marca. “A seLecT é uma referência e acreditamos que a arte é uma ferramenta de transformação. Além de apoiar financeiramente os projetos selecionados no prêmio, queremos nos colocar como pessoas, contribuindo para a construção de um país rico em arte e cultura”, complementa.