A chuva não parava, os dias não amanheciam. O som da cidade era só de helicópteros e ambulâncias. Quando foi possível visitar a parte baixa de Porto Alegre, em junho, a paisagem era de incontáveis montanhas de lixo: “Parecia que a cidade estava inteira retorcida ali”, resume André Severo. O artista e curador, que desde a pandemia vive em Canela, na serra gaúcha, voltou à sua cidade natal no fim de junho, para acompanhar como curador uma visita técnica de um artista convidado a realizar a exposição de inauguração da nova sede do MAC de Porto Alegre, em março de 2025. “Nós caminhávamos pelas ruas sem dizer nada e quando íamos pegar o carro para seguir até outra região nos olhávamos e um dos dois comentava que era impossível pensar um trabalho de arte que pudesse dar conta daquilo”, conta Severo.
Depois de visitarem pontos-chave da cidade, tomaram o rumo das ilhas, onde o cenário de terra arrasada era pior que o da cidade: “A correnteza arrastou as coisas, reconfigurou completamente as ilhas”. Severo explica que vários rios de todo o estado do RS desceram para o Guaíba e, enquanto a cidade de Porto Alegre alagou, por causa do muro da Avenida Mauá e por estar configurada em “cidade baixa” e “cidade alta”, esta formando outro muro para a cheia total e completa, no arquipélago a água chegou com violência, tirando tudo do lugar. “O mapa de lá agora é outro”, resume. Depois da visita às ilhas, André Severo e Nuno Ramos, curador e artista, voltaram para casa com a única certeza de que nada poderia exprimir aquilo que tinham testemunhado.
“A enchente de maio veio como uma espécie de lama líquida, turva, que alterou tudo por onde passou e a cidade ficou marrom por um tempo. A sensação que tive, pelo menos aqui em Porto Alegre, é que não foi o rio que invadiu a cidade e sim os bueiros, os canais subterrâneos e tudo que fica debaixo da cidade é que invadiram o rio. A massa líquida – não, não dá para chamar de água –, interferiu até nas cores das paredes, dos muros, na vegetação, calçadas… Tudo ficou com tons de barro. Do que mais lembro da paisagem, já processado ou não na memória, são essas cores de lama, ocre, bege, marrom”, diz a artista Flavya Mutran.
Nascida em Belém (PA) e radicada em Porto Alegre desde 2009, onde atua como professora do departamento de artes visuais do Instituto de Artes da UFRGS, Mutran conta que sempre teve interesse por cores e formas que se assemelham a imagens contaminadas ou desgastadas pelo tempo, “principalmente imagens fotográficas, pois assim elas se descolam do imediatismo documental. Coincidentemente, meu primeiro trabalho com fotografias apropriadas foi com o acervo da minha família que se estragou depois de uma enchente em Marabá, no Pará, nos anos 1990 (série Quase Memória)”. Na época, a artista trabalhava como fotojornalista e, depois da enchente que atingiu a casa dos seus pais, a mãe lhe entregou uma caixa de sapato cheia de slides que tinham sido danificados pela umidade. “As fotos não tinham salvação, a emulsão derreteu e os filmes perderam a legibilidade. Pela primeira vez eu percebi o valor do vínculo da fotografia com a memória, mas não pelo seu poder indicial. Pelo contrário, percebi o valor ritualístico da fotografia como um pretexto para vínculos sociais. Nosso apego por fotografias também tem a ver com o que ela nos proporciona como experiência compartilhada coletivamente”, reflete Flavya Mutran.
Essa vivência, que foi determinante no início de sua trajetória artística, quando trabalhou com processos de desbotar cores, alterar tempos de revelação e aproveitar material fora do prazo de validade, retornou à memória da artista durante o desastre das cheias. “Plasticamente eram artifícios que eu usava para representar o que foge do controle, que não se pode reter. Já não faço trabalhos assim, mas fiquei tocada depois que vi pela televisão depoimento de pessoas que perderam suas fotos de família e se queixavam dessas memórias perdidas mais do que a perda da casa ou do carro. Eu entendo isso. São valores diferentes, porque não há nada que pague ou reconstitua o direito de compartilhar coletivamente uma lembrança do tempo vivido, do rosto amado de uma criança ou de familiar já falecido.”
IMAGEM SOBREVIVENTE
O clima sóbrio, sórdido e sombrio das imagens de Labirinto (2020-2021), plenamente compreensível no registro “arte pandêmica” – estávamos presos, isolados, casas estavam abandonadas por toda parte, mundo em suspenso, em suspensão, estávamos num vazio de vida urbana, a cidade estava vazia e abandonada e desamparada –, mas visionariamente identificável como o da cidade desolada pela maior enchente de sua história, é característico da estética de André Severo. A opção de descontextualizar as fotos, resultando num caleidoscópio de imagens de abandono e ruína genéricos, resulta na obra aberta que permite lê-la como a imagem sobrevivente da tragédia de 2024, e da histórica enchente de 1941 em Porto Alegre, e de todo o imaginário que se construiu em torno da tragédia atual. Sem qualquer relação com os acontecimentos de maio, Severo tem exposição individual marcada na Caixa Cultural de Brasília para apresentar pela primeira vez a série completa de Labirinto, em dezembro. “Eu poderia dizer que são imagens atuais de Porto Alegre e ninguém duvidaria”, comenta em tom angustiado.
Tanto Flavya Mutran quanto André Severo comentaram, em entrevistas à celeste, sobre os registros das cheias do Guaíba em 1941 feitos pelo fotógrafo ucraniano naturalizado brasileiro Sioma Breitman (1903-1980). “A memória da enchente de 1941 é muito viva em Porto Alegre e, coincidentemente, até pouco tempo atrás, ampliações imensas das fotografias de Breitman estavam expostas no átrio do Farol Santander, atualizando ainda mais essa memória”, reflete Severo. Trata-se da exposição Sioma Breitman, o Retratista de Porto Alegre, com curadoria de Andrea Pires e Fernando Bueno, cujas vistas reproduzimos aqui. Foi nessa mostra que Flavya Mutran viu pela primeira vez imagens da inundação de 1941. “Lembrei muito de Belém pelas imagens dos barcos tão próximos dos prédios históricos, só que em Belém as ruas são rios de verdade, navegáveis. Barcos atracam nas docas da cidade Velha desde o século 17 até hoje. O Ver-o-Peso alaga uma vez por ano, tem lua certa para isso acontecer. Em Porto Alegre, cidade muito mais jovem que Belém, a parte antiga já não está a salvo. Este ano, o próprio Santander inundou. Ambas as cidades têm muitas semelhanças no (des)trato com os seus rios. Não precisa ser especialista para saber que cedo ou tarde essa conta chega”, sentencia.
Os artistas ouvidos no processo desta reportagem foram todos particularmente cuidadosos ao falar de imagem, ao discutir as fotografias reproduzidas ad nauseam na grande imprensa, e nenhum deles pensa em fazer uma obra “sobre” os acontecimentos. Até mesmo o artista gaúcho Leo Caobelli, que foi para a linha de frente, primeiro cobrindo em vídeo as inundações, para uma ONG, depois fotografando as montanhas de resíduos contaminados que resultaram da enchente, não considera trabalho de arte a comovente série de fotos que fez. Perto de concluir o seu projeto de doutorado em Poéticas Visuais na UFRGS, em que se aprofunda na investigação de anos sobre a ruína digital, Caobelli precisou elaborar as experiências de maio na própria tese, que defenderia em outubro, mas teve (assim como seus colegas de universidade) o prazo estendido por causa das enchentes. “Esse processo do ‘pós-enchente’ entrou no projeto, porque minha metodologia com os HDs e gabinetes de computador descartados foi sempre empilhar, o que se reflete também nas sobreposições das imagens, e também pelo conceito de pilhagem, porque me aproprio desses resíduos de imagens encontrados no lixo eletrônico. Quando as águas baixaram e todo o conteúdo das casas foi sendo colocado na rua, isso foi criando pilhas imensas que começaram a trazer uma nova camada para a pesquisa. Porque tudo que eu teorizava sobre o obsoleto, o que se tornava lixo, de repente estava na casa de todo mundo, tudo ficou muito evidente”, conta, em entrevista à celeste.
Uma necessidade de fotografar para apreender a escala da obsolescência programada e do descaso do capitalismo tardio com o impacto ambiental deste programa voraz. A constatação, ao lado de um colega artista, do inabarcável da experiência de testemunhar a terra arrasada que Porto Alegre e entorno se tornaram. A consciência, enfim, de que as imagens sobrevivem como fantasmas do trauma: “No auge da inundação eu não fiz nenhuma foto, porque não tive coragem de explorar a catástrofe de forma direta. Para mim é difícil cavoucar a dor alheia e a imprensa já fez isso de forma massacrante. As imagens de maio estão por todo lugar. Se fechar os olhos consigo ver o Mercado, o Margs, o aeroporto, o Museu do Trabalho, o Vila Flores tudo cercado de lama líquida. Consigo ver o cavalo, cachorros e gatos sobre telhados sendo resgatados por botes, só fechando meus olhos. Consigo lembrar do lixo e do cheiro ruim de esgoto, que é cheiro de água de rio”, resume Flavya Mutran.
O conflito entre rio e cidade, evidente no clamor de responsabilização do governo do Estado e do Município por terem negligenciado os alertas sobre a necessidade de fazer obras de contenção da enchente, é esclarecido por Caobelli: “Desde a nomenclatura, temos um rio que se diz lago, um tanto porque suas características físicas realmente são difíceis de determinar como uma coisa só (também se usa o estuário para designar o Guaíba), mas muito também porque a legislação ambiental para encostas de lago é muito menos rígida do que para as encostas de rios. É mais vantajoso para a especulação imobiliária que tenhamos um lago Guaíba, pois se tivéssemos um rio, muitos dos empreendimentos que se almejam junto às suas margens seriam impossíveis. A cidade fala tanto do rio, do pôr do sol do Guaíba, mas liga tão pouco para a legislação ambiental que deveria proteger esse ser d’água. Durante muito tempo se falou em derrubar o muro da Mauá. Em uma canção do Nei Lisboa se fala em muro da vergonha. No imaginário anterior à enchente de 2024, o muro da Mauá simbolizava a cidade de costas para o rio. Todos queriam derrubar o muro, até que veio maio e se provou a necessidade de algo que protegesse a cidade dos descasos ambientais maiores, das mudanças climáticas que trazem essa tragédia (que poderia ser em muito evitada, ou diminuída em seu impacto)”.
O PODER ESTRONDOSO DA NATUREZA
Além da exposição Labirinto, que abre em 12/12 em Brasília, André Severo vinha trabalhando, antes das inundações, em uma série inspirada nas pinturas de ondas de Courbet. “Materializado a partir da realização de uma série de 88 pinturas de grandes dimensões, esse projeto é também uma reflexão (prática e teórica) sobre a linha evolutiva histórica que liga a pintura pré-impressionista do século 19, o expressionismo abstrato estadunidense dos anos 1940 e a pintura dos dias atuais. A série consiste na reprodução pictórica, em escala ampliada, de todas as pinturas que fui capaz de localizar da série de ondas pintadas por Gustave Courbet entre os anos de 1866 e 1877”, anota o artista em texto sobre o projeto.
Pouco antes de maio, em seu perfil de Instagram, podemos ver uma sequência dessas obras intituladas A Onda / La Vague (2021-2024), que ele assina André Severo / Gustave Courbet. Na linha do tempo da rede social, as ondas se interrompem por uma série de posts angariando fundos para as vítimas das enchentes por meio da venda de obras, ou divulgando outras iniciativas de emergência no RS, mobilizado pela concretude dos fatos. “Eu estava mergulhado nessa paisagem mental”, relembra o artista durante a entrevista, via chamada de vídeo, falando direto de seu ateliê em Canela, cercado por pinturas de ondas. “Em maio e junho, parei de postar, primeiro porque estava empenhado em ajudar quem eu pudesse, mas também pela perplexidade de me ver de novo confrontado com a imagem como sintoma e com a necessidade de sobrevivência da imagem.”
Severo conta que sempre teve fascínio pelas pinturas de ondas de Courbet, pelo sentido aparentemente contraditório dessas pinturas quase abstratas terem sido feitas pelo ícone do realismo do século 19. “Muitas destas obras parecem inventadas em vez de observadas. Nesta série, Courbet expressa o poder estrondoso da natureza transmitido por uma sucessão de ondas quebrando uma após a outra; e a beleza sublime dessas pinturas reside em suas composições dinâmicas, quase centrífugas que, em minha hipótese, anteciparam toda a pintura abstrata que viria a ser desenvolvida em meados do século 20”, explica. A decisão de refazer as pinturas em dimensões maiores veio da percepção de que o gesto abstrato de Courbet está evidente na obra pictórica de Willem de Kooning (1904-1997), daí a hipótese warburguiana da gênese da pintura abstrata.
“Com suas ondas, Courbet forjou tanto uma resposta de vanguarda às várias tradições pictóricas europeias (e também à fotografia que estava nascendo) quanto estabeleceu as bases da pintura moderna que se desenvolveria nos anos seguintes – e que, não obstante, seguimos desdobrando até a atualidade. (…) As ondas de Courbet devem ser vistas como o marco inicial da pintura moderna e, principalmente, das correntes abstracionistas que ganharam vida (também no Brasil) na metade do século 20”, teoriza no ensaio sobre a série. O estrondo dessas ondas de Severo / Courbet também coloca em relação a visão moderna sobre a natureza com o pensamento destes anos 2020 sobre a emergência climática, apontando a clivagem de um olhar instrumental para outro, de codependência e convivência manejável e desejável, se houver possibilidade de sobrevivência para a espécie humana e várias espécies companheiras.
“Hoje a cidade está limpa. As paredes e calçadas foram lavadas, e o marrom barrento até saiu, só que os alvejantes levaram junto a vivacidade das cores originais. No lugar da mancha ficou um degradê estranho. Mesmo depois da limpeza tem umas cicatrizes na paisagem que se revelam de forma sútil. Se olhar bem, ainda dá para ver uma espécie de impressão fantasma da enchente em algumas paredes. Teimosamente essa paisagem permanece em suspensão”, analisa Mutran.
“Acho que nunca foi tão óbvio que uma cidade são várias cidades. Que embora o centro da cidade tenha sido inundado por um mês, ele praticamente se refez e apagou quase todas as marcas da enchente em outro mês. A maior parte dos bairros centrais entrou julho já sem grandes impactos visíveis da enchente. Já bairros periféricos como Humaitá, Sarandi e a vizinha do outro lado do rio, Eldorado do Sul, se viram e ainda se veem em meio a montanhas de lixo, aterros provisórios, sem condições de retomar o cotidiano, seja por terem tido duas casas condenadas depois que a água baixou, seja porque o posto de saúde do bairro não voltou a operar, o mercado da esquina não abriu, os diversos serviços se foram e quase ninguém ficou”, diz Caobelli.