O roteiro do primeiro longa-metragem de Raven Jackson deve ser de poucas páginas. Algumas linhas de diálogos, outras de descrição de ações que decerto duram mais em tela do que nas páginas e um punhado de transições entre épocas que, essas sim, demandam um espaço maior. Em comparação a outras produções, é seguro dizer: está longe de ser um calhamaço. O roteirista e diretor estadunidense Aaron Sorkin sentiria um frio na espinha ao se deparar com ele. Pensar que sua autora, a própria Jackson, é uma poetisa constitui um paradoxo e uma elucidação. Paradoxo porque se imaginaria que alguém que tem o texto como ofício não resistiria à verborragia, mas o que veio ao mundo é a antítese disso; e uma elucidação, porque os recursos poéticos estão ali transfigurados em linguagem audiovisual.
Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal consegue a proeza de ser o trabalho de uma poetisa que não recorreu aos versos corriqueiros — ainda que as frases proferidas ao longo dos 90 minutos de filme tenham força redobrada por 1) serem boas e 2) serem tão raras —, mas que fez por onde para encontrar, dentro do audiovisual, uma linguagem que, tal qual a poesia, tem o poder de dilatar o tempo e de se perder na beleza dos pormenores.
Ir além do significado de suas palavras é o que faz da estreia de Jackson uma espécie de assombro. O que distingue o filme é sua percepção sensorial e emocional de experiências que, a olho nu, parecem discretas. O domínio do tempo e a possibilidade que isso abre de se demorar em acontecimentos pequenos são duas características difíceis de ignorar. Goste ou não, há uma forte personalidade por trás do desafio às convenções da narrativa linear e da busca da essência da vida nos detalhes do cotidiano.
Certo. Mas que história conta Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal?
Uma sinopse diria algo como “Nas paisagens rurais do Mississippi, Mack é uma mulher cujos momentos de amor, perda e conexão familiar se desdobram ao longo das décadas, tecendo um retrato fragmentado da vida”. E não estaria errada. Mas, ao contrário do que seria esperado, o filme abre mão de explicações verbais e se concentra nos pequenos gestos, no encadeamento dos sons e na textura das imagens, numa abordagem que atinge mais o nosso âmago do que explicações muito claras.
A narrativa do filme, em si, tem algo a dizer, e esse algo, aliás, é mais importante do que seus personagens. Assim, ainda que Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal conte uma história específica, de uma realidade e um espaço com os quais poucas pessoas vão se relacionar diretamente, ele carrega em si toda a universalidade da experiência humana.

TUDO ESTÁ CONECTADO
Há aqui um cinema contemplativo e sensorial, com um ritmo que evoca a obra de cineastas como o estadunidense Terrence Malick e o tailandês Apichatpong Weerasethakul, que também exploram o audiovisual como um meio para transmitir a alma das coisas, sem se preocupar em “alongar” uma cena ou outra. A título de exemplo, em uma cena especialmente tocante, Mack (Charleen McClure) encontra seu ex-amante, Wood (Reginald Helms Jr.), e o momento entre eles é construído com toques simples, uma respiração compartilhada, um abraço que Jackson prolonga no enquadramento. Ao deixar o momento durar, lembramos dos poucos momentos em que abraçamos, e fomos abraçados, com tamanha intensidade.
E, ecoando a frase final de O Grande Gatsby, eis a prerrogativa de permanecer nesses instantes e não em uma sequência de acontecimentos que sempre levam a trama à frente: como humanos, é assim que prosseguimos, como barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado.
No entrelaçamento narrativo proposto pela diretora, que nem esconde a vontade de muitas vezes esfumar mais do que clarear, a cena adquire novas camadas à medida que a projeção avança, reverberando em momentos tanto anteriores quanto posteriores da linha do tempo. Essa dinâmica se estende a outras cenas — e, claro, à própria vida. O que ocorreu antes influencia o que virá depois, e até mesmo eventos posteriores podem reconfigurar experiências passadas. Essa é a magia, e a maldição, da vida: está tudo conectado.
Não há um jeito certo e um errado. O alívio é saber que há uma diretora e uma equipe — o filme é da celebrada A24, além de produzido por Barry Jenkins, autor de Moonlight — dispostas a apostar num projeto assim.
Mais exemplos: uma cena onde Mack e sua irmã praticam beijos nas palmas das mãos corta para outra em que a mãe das meninas aperta os lábios na frente do espelho. Escolhas como essa criam uma sequência que vai além da técnica e transforma a montagem em um recurso que cria pares e padrões visuais, lembrando uma tapeçaria cujos pedaços, aparentemente isolados, formam uma unidade orgânica.
Aqueles que se permitirem encontrarão em Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal um eco da vida, uma experiência que vai além das palavras e da linearidade, para se tornar um espaço de contemplação e sentimento. Explicações e respostas, não; silêncio e detalhes, sim. Às vezes nos esquecemos, mas o cinema pode ser também um espaço para esses dois. Raven Jackson, cujos próximos passos já despertam muita curiosidade, está aqui com uma mensagem forte: o não-dito e o não-visto têm muito a dizer e mostrar.
Gustavo Freixada é jornalista, escrevendo principalmente sobre cultura (Revista Amarello e outros veículos). Além disso, atua como redator publicitário, tradutor e roteirista. É autor do livro Tudo Aquilo Virou Isso, publicado pela editora Libertinagem.