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Manifestação em Santiago, no Chile (Foto: Carlos Figueiroa)
Postado em 13/01/2020 - 10:49
A insatisfação continua viva
É alta a chance de um novo levante no Brasil. As manifestações de 2013 não levaram a uma satisfação
Rubens Ricupero

Todos procuram encontrar um denominador comum que explique os acontecimentos recentes que eclodiram no Chile e na Bolívia, dois países que se consideravam casos de êxito, num extremo e no outro. O Chile era visto como uma política neoliberal de êxito e, no caso da Bolívia, também havia a ideia de que Evo Morales tinha logrado não só um governo com crescimento econômico, mas com baixa inflação e avanços em favor dos indígenas e mestiços. Eram, então, dois casos improváveis, no sentido de que não eram nem os dois países menos democráticos nem os dois países que menos cresciam ou que menos avanços haviam tido. É interessante, porque são dois casos de orientações ideológicas muito diferentes, um conservador, de centro-direita, e o outro de centro-esquerda, com um regime bem progressista.

Mas existem fatores locais e específicos que pesam. No Chile, o principal fator para a insatisfação popular foi aquilo que todos os analistas têm realçado: uma política que há 30 anos deu muita ênfase ao crescimento econômico e a uma política econômica de tipo liberal, mas que foi muito menos atenta às questões do bem-estar social. Na previdência social, a lei sobre a aposentadoria, por exemplo, acabou sacrificando as pessoas. Já a ênfase numa abordagem puramente de mercado em relação à saúde e à educação deixou a população sem acesso a esses dois bens. Não há oportunidades para pessoas assalariadas terem uma boa cobertura de saúde ou uma educação de qualidade.

Mas eu diria, também, que agora é que há a derrota definitiva de Pinochet. O Chile foi a última ditadura militar a ceder lugar na América Latina. Quando o Brasil e a Argentina já tinham governos civis, o Chile ainda estava com Pinochet, cuja saída só se deu no fim dos anos 1980, começo dos 1990. E ele saiu impondo condições, como uma Constituição ditada por ele mesmo, dando ao Senado uma composição desequilibrada, favorecendo que a indústria do cobre fornecesse recursos às Forças Armadas. Agora, com a exigência popular de uma nova Constituição e de uma reforma profunda, finalmente temos a derrota definitiva da ditadura militar. Esses dois fatores – desequilíbrio social e inconformidade com uma Constituição que foi mais outorgada do que livremente pactuada, como foi feito aqui no Brasil em 1988 – pesaram muito para provocar as manifestações no Chile.

Passeata em resistência ao governo que tomou posse após golpe na Bolívia (Foto: Reprodução)

 

No caso da Bolívia, de um lado, o que aconteceu foi uma revanche do novo centro econômico do país. Santa Cruz de la Sierra é uma cidade muito próxima ao Brasil, que expressa muito o movimento do agronegócio, que veio do Brasil. A transformação da economia em Santa Cruz de la Sierra, da mesma forma que ocorre na região limítrofe do Paraguai, vem do movimento do agronegócio brasileiro, da cultura da soja, da pecuária. Santa Cruz substituiu La Paz, que no passado era o grande centro do estanho. Mas há muito tempo a economia do estanho estava praticamente liquidada. O que emergiu na Bolívia, agora, é a pujança de Santa Cruz, que esteve já em revolta aberta contra Evo Morales em 2007/2008. Na época, a liderança deles não conseguiu se impor, mas desta vez eles encontraram um líder forte, Luís Fernando Camacho, que eles chamam o “Macho Camacho”. O segundo fator na Bolívia é que se trata de uma reação contra o que na Rússia, no século 19, o Movimento Populista chamava de “o povo escuro” – os indígenas e os mestiços. E Evo Morales representou essa maioria de mestiços e índios de Chapare, uma região perto de Cochabamba, que é agora a alma da resistência contra o novo governo que tomou o poder depois do golpe.

Chama atenção que – pouco tempo atrás no Equador, mais recentemente no Chile e na Bolívia, agora na Colômbia –, embora com colorações diferentes, o que mudou a situação dominante foram os movimentos de rua. São mobilizações parecidas às que estão ocorrendo em muitos lugares. Estamos assistindo no mundo a uma sucessão de movimentos que, sobretudo, se concentram na América Latina, no Oriente Médio e em alguns países europeus. Em todos eles há características comuns. São movimentos de rua, de milhões de pessoas, em rejeição às elites, aos partidos. Todos começaram com protestos contra aumentos de impostos ou taxas de transportes, mas acabaram adquirindo uma feição maior de contestação ao sistema como um todo. Mas nenhum desses movimentos, inclusive no Brasil, encontrou uma canalização plena. A insatisfação continua muito viva. São processos que ainda não terminaram. Atrás disso há o aumento da desigualdade, a inconformidade com os problemas ambientais, a frustração com o desemprego estrutural.

É alta a chance de um novo levante no Brasil. Aqui, as manifestações de 2013 também não levaram a uma satisfação. Algumas das forças que estavam por trás daquilo, por exemplo, a luta contra a corrupção que se encarnou na Lava Jato, foram muito bem manipuladas por Bolsonaro. Agora, as pessoas perceberam que houve manipulação e que não houve melhora. Por outro lado, a manifestação maior de 2013, movida pela insatisfação com a baixa qualidade dos serviços públicos, a deterioração da vida urbana, dos transportes, a criminalidade, o retrocesso social, nada disso encontrou solução. Os problemas reais – quando digo reais, digo desemprego, continuamos com 12 milhões de desempregados –, nada disso acabou. As pessoas continuam vivendo mal, tendo de perder três horas no trânsito, enfrentar a criminalidade. Tudo isso está esperando apenas uma fagulha para acender de novo a convulsão. Isso está latente, está subjacente.