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Série Poeira, 2018. Dissertação de mestrado. página 33
Postado em 16/10/2024 - 2:19
A Lembrança de Nhô Tim e as brechas infraestruturais
A partir de uma seleção de eventos e memórias, o artista Tiago Gualberto traça aventuras e desventuras em um circuito artístico marcado pela lama

Do you want real food or alien food? Eu não entendia o sentido da pergunta até perceber outros deportados se recusarem a comer as marmitas industrializadas com data de validade vencida distribuídas pelo oficial norte-americano. Um jovem libanês estava há quatro dias bebendo apenas água oferecida em garrafas plásticas descartáveis. Deitado sobre um dos colchonetes espalhados pelo chão, um homem grego estava desesperado pela falta de notícias sobre sua esposa grávida, presa na cela exclusiva para mulheres. Não havia janelas, apenas lâmpadas constantemente acesas e uma privada no centro do cômodo. Nada nos remetia ao fato de estarmos dentro do aeroporto O’hare, em Chicago, com exceção das constantes aberturas da grade onde os oficiais cantavam o passar das horas. It’s Two A.M! Dois mexicanos sentados ao meu lado se mantinham calados, cobertos por blankets de plástico metalizado. Todos dominavam o inglês suficientemente, mas o silêncio imperava no espaço gelado da cela. 

Em 2019, Donald Trump, ainda no cargo de presidente dos EUA, havia postado um tweet incentivando o bloqueio de ameaças pela alfândega. Aquela seria a minha quinta viagem aos Estados Unidos e Chicago fazia parte da escala com destino ao curso de doutorado na Universidade da Califórnia, em San Diego (UCSD). Após recuperar meu casaco, cinto e cadarços, fui algemado e encaminhado para um voo de retorno ao Brasil. Mas, antes, solicitei ao oficial recém-chegado ao posto que lesse novamente as cartas de recomendação utilizadas para inscrição na universidade, uma delas emitida pelo próprio consulado americano em São Paulo, e toda a documentação comprobatória do meu destino. You’re doing great, I saw your picture with Barack Obama. Ele disse isso antes de me ordenar abaixar a cabeça para não olhar para ele. Dentro do avião, uma senhora de luzes no cabelo e moletom da Guess perguntou para a aeromoça ao meu lado, em português: “Ele é perigoso?”

Meu primeiro encontro com Barack Obama aconteceu no hotel Hilton São Paulo Morumbi, em 5 de outubro de 2017. E-mails confidenciais pediam o uso de trajes business casual e a não divulgação dos encontros. A princípio, pensei que o convite fosse algum spam ou golpe, até encontrar o Zé Baiano, uma conhecida entidade da Umbanda a cochichar no meu ouvido: “Oxe! Tu vai encontrar o Nhô Tim. Se comporte, você estará no meio de esfomeados”. Eram jovens personalidades políticas e lideranças comunitárias de diferentes estados, todos vestidos nas cores azul-marinho, branco e bege. A data para a defesa da minha dissertação de mestrado na Escola de Comunicação e Artes da USP ainda não tinha sido agendada, mas as ações realizadas no ano anterior como parte da pesquisa artística haviam chegado aos ouvidos do ex-presidente americano.

Lembrança de Nhô Tim é uma pesquisa artística premiada pela Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros, em 2015, em sua principal categoria. Por telefone, Sidney Amaral foi quem me deu a notícia da seleção. “Cara, você conseguiu!” Ele tinha sido um dos artistas selecionados no ano anterior, durante a primeira edição do prêmio. Fizemos juntos o curso preparatório para a redação do projeto na Funarte-SP em 2014. Sabíamos que era uma oportunidade rara, fruto da luta de diferentes movimentos civis negros para a igualdade de aceso a recursos públicos destinado às artes. As chances de participação em salões e editais públicos para financiamento de projetos eram mínimas para artistas negros e negras, apesar da instituição da Lei Federal 10.639 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em escolas públicas e particulares ter completado, à época, dez anos. De qualquer modo, não tivemos mais edições dessa bolsa.

Lembrança de Nhô Tim, 2018. Dissertação de mestrado. página 36
Série Poeira, 2018. Dissertação de mestrado. página 38

Desencanto

Sidney não soube a respeito do meu encontro com Obama. Poucos dias depois, eu o encontraria em sua última performance, vestido com uma camisa preto e vermelho escrito NEGO, cercado de crisântemos (em grego, flor de ouro), dentro de um caixão. “Tiago, temos que aproveitar. Finalmente os museus e as galerias estão abrindo as portas.” Dez anos mais velho que eu, Sidney não deu atenção às dores nas costas. Imaginou que as pinçadas se deviam ao excesso de horas trabalhando para dar conta das novas demandas institucionais. Foi um câncer de pâncreas fulminante, noticiado de forma sensacionalista por jornais e museus.

“Sinceramente, penso que você está vivendo um transtorno de dupla personalidade. E ele envolve o Sidney Amaral.” Sentado à mesa, de frente a uma das redações impressas da dissertação de mestrado, eu ouvi essa frase com desencanto. No mesmo tom, a professora da ECA-USP me perguntou: “Parece que você não está acreditando em mim?” Eu perguntei se ao menos aquele parágrafo no qual eu me referia aos trabalhos de artistas estadunidenses não estaria bom. “Sim, essa parte deixa o texto de pé.” Não havia citação alguma sobre artistas estadunidenses no meu texto. Aquilo foi um blefe. Assim como antes, ela não tinha lido o texto. Análises psicologizantes – quando não há formação científica, por vezes apenas a experiência como cliente de consultórios de psicanálise – ainda fazem parte do arsenal crítico de diversos agentes do circuito das artes em relação à produção afro-brasileira. 

O apoio para a circulação institucional do projeto Lembrança de Nhô Tim nos EUA veio especialmente de agentes da sociedade civil americana. Desde o início da pesquisa, participei de residências artísticas a convite da organização não governamental Design Studio for Social Intervention – DS4SI, localizada na cidade de Boston. Entre nossas principais parcerias, contribuí em edições do Social Emergency Response Center (SERC). De um lado, trata-se de uma iniciativa dedicada a construir centros de oferta temporária de serviços, abrigo e apoio a situações críticas e emergenciais como furacões e enchentes. De outro, busca oferecer situações de conforto para o corpo, nossos afetos e comunidades de forma a reimaginarmos como construímos uma democracia. Ramon Stern, além de um profundo conhecedor da realidade social brasileira, foi um articulador de ações junto à Brown University e outras pequenas instituições do estado de Rhode Island. Sou imensamente grato pelas traduções de palestras e textos que ele realizou sobre a Lembrança. Sara Roffino, jornalista sediada em Nova York, articulou ações junto à mídia local, garantindo espaço para publicações no site Artnet e no jornal The Brooklyn Rail. Por aqui, a situação foi radicalmente diferente.

Conectados pela lama

Uma das pequenas brechas institucionais encontradas pelo “artista laranja”, personagem desenvolvido ao longo da pesquisa de mestrado, ocorreu durante a programação pertencente à mostra Histórias Afro-Atlânticas, no Masp, em 2018. A encomendada palestra sobre arte afro-brasileira destinada a professores e educadores foi tomada de assalto por uma palestra-performance. “Eu não sei vocês, mas eu estou passada!” Assim deu início à curta rodada de perguntas organizada pela mediadora Adelaide de Estorvo, após o término da ação artística. Ao contrário da usual apresentação de slides, ao longo de uma hora apresentei no telão uma colagem de centenas de vídeos sem áudio. Simultaneamente à minha leitura, as imagens moviam-se ora como uma ilustração, ora como uma possibilidade de fuga às questões elencadas em meu texto. Entre os principais pontos da palestra, as ondas de valorização do negro nas artes e a invenção da arte afro-brasileira como uma estratégia de cooptação institucional de obras e de artistas negros. Essa perspectiva crítica deriva do livro Arte Afro-Brasileira – Altos e Baixos de Um Conceito, de autoria de Renato Araújo da Silva, publicado em 2016. A palestra está disponível no YouTube, mas as imagens em vídeo compartilhadas por mim foram ignoradas no registro realizado pelo Masp. Hoje, oito anos após o lançamento do livro dx Renatx, assim como ao final de um tsunami ou uma enchente de grandes proporções, raros são aqueles artistas salvos dos restos indistinguíveis, amontoados e conectados pela lama. 

Curioso para ver esse desastre em uma única imagem? Procure as palavras-chave Arte Afro-Brasileira e Arte Negra no Google Trends. Neste exemplo inusitado, você verá em um gráfico o pico da onda em 2003-2004, justamente onde o debate público sobre a pertinência e a valorização das culturas ligadas às populações negras se amalgamavam às políticas públicas, à luta por direitos de inclusão institucional a partir da luta da sociedade civil. À medida que essas demandas são acomodadas institucionalmente (e esteticamente, é claro), os picos tornam-se, gradativamente, em eventos novembrescos de baixo impacto, em outras palavras, em espuma da onda. A exceção ocorre quando filtramos a mesma busca no Google Trends utilizando o filtro imagens. Veremos, de forma inversamente proporcional, a relação entre a publicação massiva de imagens no momento presente e a publicação de textos, reflexões e debates cada vez menores. Algo similar acontece em relação aos cachês recebidos por artistas negros e negras e suas participações em megaexposições.

Em meu processo de aprendizado como artista, lá em 2015, a Lembrança de Nhô Tim nascia como um objeto feito de lama de minério de ferro e cimento, elaborado no formato de um popular doce caseiro gelado. Essa peça, produzida aos milhares e vendida por 4,99 reais como parte de uma ação de intervenção artística no entorno do Inhotim, local onde cresci, serviria como um detonador, uma armadilha para a articulação crítica de temas intimamente conectados: o racismo estrutural, a poluição ambiental, o passado colonial, a exploração da terra pela mineração, a produção de memórias, a corrupção e a arte contemporânea. Neste momento, diante desta breve seleção de eventos, observo com motivação o quanto essa ação também me permite falar do presente. E não me refiro apenas à urgência de ações diante dos crimes ambientais de escala global, ou dos usos poéticos e políticos da cor laranja associados ao aumento das temperaturas, por exemplo. Penso alegremente em como a arte persiste, ainda que pelas menores brechas.

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GUALBERTO, Tiago. Lembrança de Nhô Tim. 2018. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/tde-05122018-094222/. Acesso em: 27 jun. 2024.

SILVA, Renato Araújo da. Arte Afro-Brasileira: altos e baixos de um conceito. São Paulo: Ferreavox, 2016. Disponível em: https://drive.google.com/open?id=0B9wUkEM8utvwbGI1aDk0VjRtaGs Acesso em 27 jun. 2024

Série Poeira, 2018. Dissertação de mestrado. página 32
Série Fim dos Asfalto, 2016. Colagem e têmpera