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Wisrah C. V. da R. Celestino, RENTAL/FATHER, 2023 [Foto: Simian]
Postado em 09/10/2024 - 5:58
A maciez dos limites
Wisrah C. V. da R. Celestino opera uma crítica sistêmica de sintomas coloniais revisitando os legados da arte conceitual

Em uma subversão das hegemonias institucionais, Wisrah C. V. da R. Celestino (1989, Buritizeiro, Minas Gerais) propõe uma maciez dos limites: enquanto as dinâmicas do neoliberalismo funcionam como engrenagens mantenedoras de estigmas colonialistas, tornando suas arestas ainda mais cortantes, sua prática artística reflete críticas que se direcionam, sobretudo, à forçada maleabilidade das convenções institucionais. A insubordinação às binariedades, a complexidade crítica e a contiguidade aos afetos familiares fazem com que Celestino opte por profundas análises das infraestruturas correntes e possibilidades de subversão adoçadas, adornadas, atenuadas, complexificadas, incisivamente críticas.

Sua prática em partituras, instalações, esculturas, textos, vídeos, sons e fotografias propõe novas lógicas de operações institucionais por meio da crítica sistêmica de sintomas coloniais, de poderes discursivos-linguísticos e dos princípios de propriedade privada e bem público. Wisrah Celestino, com ampla presença nos cenários artísticos brasileiro e europeu, acaba de receber o prêmio ars viva 2025, na Alemanha, que contempla artistas com exposições individuais e residências artísticas. Vale ressaltar que é o prêmio artístico mais antigo da Alemanha, com foco em práticas de teor político, cujos laureados vão de Marina Abramović a Helmut Lang e Wolfgang Tillmans.

Wisrah C. V. da R. Celestino, Chaves, 2021 [Foto: SALTS, Basel, Suíça]
Wisrah C. V. da R. Celestino, Lote, 2022 [Foto: Foto: La Becque]

AFETOS E MEMÓRIAS INTRANSFERÍVEIS

Em RENTAL/FATHER (2023), Celestino varre das valias da terra às memórias familiares. A obra é composta de uma partitura que a configura permanentemente – documento com instruções que pautam as ações protocolares que estruturam sua manifestação – e um ou mais objetos de seu pai temporários e cambiantes, alugados para fins expositivos. Nas últimas ocasiões de apresentação da obra, na Europa, Celestino tem utilizado o portão de ferro da casa em que viveu desde a infância em Buritizeiro, desenhado por seu pai, que o construiu com um ferreiro da cidade. Embora tenha gradis com folhas duplas para uma garagem, à época a família não tinha carro – o que sugere a repetição de um código social, além da aspiração à propriedade de um bem que, nesse contexto, simbolizaria uma distinção socioeconômica. Durante a construção do muro para a instalação do portão, um acidente causou a queda de parte da estrutura sobre Celestino, mantendo até hoje uma cicatriz no cotovelo. O objeto escolhido para a composição da obra conecta, de forma rizomática, aspectos autobiográficos e dinâmicas de um macrocosmo político.

Ao passar dos anos, o portão da casa foi substituído e o que é exposto por Wisrah Celestino foi guardado no quintal da família. O preço do aluguel do objeto paterno – nesse caso, o portão da casa, mas que pode ser outro bem – é negociado em concordância tripartida entre pai, instituição e artista, e assim se firma a obra. O valor mensal do aluguel do objeto é pago integralmente ao pai de Celestino pela galeria ou instituição em que será exposto; do mesmo modo, caso alguém se interesse em adquirir o trabalho, pode comprar sua partitura de modo permanente, ou celebrar um contrato de aluguel temporário com o pai dx artista, com possibilidade de renovação, concedendo a posse, mas não a propriedade.

Nessas operações transacionais, Celestino propõe novos funcionamentos práticos no mercado de arte, subvertendo as noções proprietárias, cujas preocupações ultrapassam a garantia de seguridade socioeconômica para sua família em sua terra de origem – ou para os agentes que subsidiam sua prática artística, em todas as instâncias. Através do reposicionamento e da colocação de obstáculos nos trâmites logísticos que regem o mercado artístico, reitera a impossibilidade de transferência da posse do portão da casa em que passou a vida em sua cidade natal, pelos intransferíveis elementos afetivos e memoriais, usualmente negligenciados pela acidez do capital.

Wisrah C. V. da R. Celestino, Privacidade, 2023 [Foto: Galerie Molitor]

DESOBEDIÊNCIA MERCADOLÓGICA

Posto que a partitura como anotação de uma composição que pode repetir-se no tempo dialoga com o legado da arte conceitual contemporânea, sobretudo na relação entre instrução, texto, imagem e ação, também se relaciona com epistemologias afrodiaspóricas, ao aproximar-se da música e da dança como organizadoras de sentido, como as ideias de performances do tempo espiralar de Leda Maria Martins. No caso de Celestino, inclusive, a partitura pôs-se de forma prática: morando no Brasil, com suas primeiras exposições na Europa, não tinha recursos financeiros para manifestação dos próprios trabalhos nessas ocasiões. Em resolução a um cenário de precariedade artística e cultural do Sul Global, sobretudo de corpos dissidentes, a partitura servia como manual instrutivo da montagem e da feitura dos trabalhos, no acontecimento do texto como ação. Há, portanto, uma contingência na manifestação das obras, fazendo com que haja flexibilidade na materialização de suas ideias.

Ao passo que aponta para aspectos fundiários, sendo o portão gradeado um símbolo da proteção da propriedade privada e da salvaguarda patrimonial, o trabalho também sintetiza memórias afetivas familiares e autobiográficas. Ainda que responda a uma função militaresca, o isolamento do objeto por Celestino provoca uma contemplação estética, lançando luz à austeridade do portão e à ornamentação de seus elementos de ferro em arcos e espirais desenhados por seu pai. A possibilidade ornamental de algo tão impassível, em sugestões de flores-de-lis e volutas, produz pequenas e momentâneas distrações que desviam, mas não por muito tempo, a leitura da violência materializada através da fabricação e do uso do gradil. 

O portão, transportado do interior de Minas Gerais para a Europa, demonstra um vigor artístico que faz atravessar o oceano algo descomunal, fincando em ferro noções de propriedade privada de terras colonizadas em solo colonizador. Tal operação, a considerar a liquidez comercial do trabalho, apresenta-se como uma conduta desobediente às convenções mercadológicas, além de endereçar um fluxo histórico que intensivamente maculou Minas Gerais, o estado natal de Wisrah Celestino, com a incisiva e escravocrata exploração mineradora durante o período colonial. Sinaliza, de forma oblíqua, a tensão da necessidade do uso de minerais extraídos da própria terra para a construção de objetos que não existiriam sem a colonização europeia. 

REDES DE APOIO E MINIMALISMOS

Enquanto o portão se coloca como um objeto rígido, impeditivo do avanço físico, as cortinas utilizadas em Privacidade (2023) reiteram outro tipo de barreira: a visual. Ao dissertar sobre as noções de privacidade e os contratos sociais cotidianos, Celestino compõe uma miscelânea têxtil a partir do empréstimo de cortinas guardadas das casas de seus familiares, coletadas por sua mãe em Buritizeiro e enviados à Alemanha. Honra, desse modo, as redes de apoio na constituição da vida em comunidade, sobretudo em situações de precariedade vividas em países colonizados. De forma espelhada e controversa, Celestino expõe aparatos que, em sua função planejada, vão contra a exposição: protegem da vista do outro o que está dentro de casa.

Embora em diálogo com esses tópicos, há, no discurso de Celestino, um confronto às noções europeias e estadunidenses estabelecidas pela historiografia quanto ao minimalismo e à arte conceitual. A reoperação de um legado minimalista geométrico a partir de motivos autobiográficos e comunitários, além do protagonismo dos têxteis – plataforma central nas expressões artísticas de origens africanas – em Privacidade, x artista aproxima-se da produção do estadunidense-nigeriano Anthony Akinbola (1991, Missouri), cujas obras mais reconhecíveis são compostas com durags, toucas de seda utilizadas por pessoas da comunidade negra para a proteção de seus cabelos. Essas referências, entretanto, são complexificadas em um discurso conceitual que desvia da postura de uma citação etnográfica. Celestino relembra que a reinvenção dos sistemas estéticos da arte moderna europeia se fez a partir do estudo sistemático – e da exploração intelectual – das produções africanas, das cores e padronagens dos tecidos às abstrações formais e os códigos representacionais (como em Picasso, Matisse e Josef Albers). A mesma contestação acontece em Lote (2022), trabalho em que Celestino demarca no solo as dimensões do seu ateliê, anterior ou atual. O espaço retangular, historicamente associado à produção artística do pós-Guerra e ao modernismo geométrico e austero, remete à rigidez arbitrária da construção de fronteiras ortogonais e à imposição cartesiana e capitalista sobre a terra.

Na produção de Celestino, o estabelecimento de objetos transacionais coloca-se como central na renovação de uma arte conceitual, como identificado pelo curador francês Cédric Fauq em sua análise do panorama recente em torno do tema. A suspensão contextual do objeto na produção artística conceitual – como nas operações modernistas do readymade e do objet trouvé –, considerando-o entidade final a ignorar suas etapas de produção, é revisitado por um conceitualismo renovado que prioriza as pessoas que compõem as etapas produtivas desses objetos. Há, portanto, uma prática artística voltada para os sujeitos, não apenas centrada teleologicamente nos objetos. 

Essa operação, sobretudo quanto ao enaltecimento de um símbolo que engendra pensamentos acerca de suas funções primárias, também se faz presente em Chaves (2021), trabalho em que Celestino coloca em exposição uma cópia de cada uma das chaves de todas as portas do espaço expositivo com um pequeno chaveiro de inox – por vezes, em forma de coração. Apregoando-os à parede, deixa as chaves ao alcance da mão, em uma tensão provocativa de retirá-las e utilizá-las para romper protocolos de segurança territorial, ao passo que produz uma atmosfera impeditiva gerada, talvez, pelas políticas de vigilância. Em Chaves, Celestino concentra a alcançabilidade do poder em um gesto, ao mesmo tempo que alarma para as possíveis consequências dessa tomada de decisão. 

Wisrah C. V. da R. Celestino, Chaves, 2021 [Foto: GDA, São Paulo, Brasi]
Wisrah C. V. da R. Celestino, Privacidade, 2023 [Foto: Kunsthal Charlottenborg]