O filme Joker (Coringa) causou grande impacto desde quando foi lançado no Brasil em 2019. Nos últimos anos, justamente pelas suas características desajustadas, o personagem parece sombrear a figura do Batman, grande herói da nossa infância. De fato, ao invés de vivermos em uma pacífica Gotham City, as grandes metrópoles vivem grandes distúrbios que não podem ser mais pacificados pelo herói mascarado de morcego. Ao invés do homem bem-sucedido que resolve fazer justiça com as próprias mãos diante de policiais corruptos, o público se identifica muito mais com este personagem anônimo de baixa classe social, que resolve se contrapor a tudo que está aí. Quando assume integralmente sua condição de palhaço, não tem mais escrúpulo nem ética, é o símbolo máximo da anarquia. De fato, vivemos num momento de crise da representação política mundo afora. Nada mais apropriado do que buscar novas formas de atuação na vida pública.
No filme dirigido por Todd Phillips, com roteiro feito em parceria com Scott Silver, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus problemas psicológicos. Após ser demitido, ele se defende do assédio violento de três homens dentro do metrô e os mata. Por serem vítimas da alta burguesia, o assassinato provoca grande publicidade. Porém, o efeito é inesperado, inicia-se um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante. Eternamente infeliz devido a sérios problemas de infância quando sofreu violência da própria mãe adotiva, decide por fim a matar. O ápice da ação ocorre quando resolve assassinar ao vivo na televisão o comediante que tentou o ridicularizar. Num diálogo instigante o coringa afirma: “afinal de contas são vocês que decidem o que é engraçado ou não!”. Por que tanta empatia por um personagem que comete tamanha brutalidade? Ao viver na fantasia, só quando atua na realidade é que se torna herói. Ele se liberta quando não tem mais dúvidas morais, ele pode agir sem culpa.
A primeira vez que o seu autor, Jerry Robinson, apresentou o personagem do Coringa ele acabou sendo rejeitado¹. Além da premiada atuação de Joaquin Phoenix, Heathcliff Andrew “Heath” Ledger (Perth, 4 de abril de 1979 — Nova Iorque, 22 de janeiro de 2008) venceu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por sua atuação como o Coringa na trilogia Cavaleiro Das Trevas, de Christopher Nolan. Em 2008, Heath Ledger foi encontrado morto em seu apartamento, suposta vítima de overdose de medicamentos. O desequilíbrio emocional que levou o ator à morte foi relacionado (entre outros fatores) ao papel de Coringa que interpretou. Jack Nicholson também fez uma interpretação marcante em Hollywood em 1989, no filme Batman de Tim Burton. Astros como Ray Liotta, Robin Williams e até Frank Sinatra poderiam ter sido o famoso palhaço, mas acabaram não realizando o papel. A morte obscura devido a medicamentos de Ledger nos faz pensar no suicídio ou na morte trágica de grandes celebridades como Marylin Monroe, Michael Jackson² , Robin Willians, Amy Winehouse, Prince. De certa forma, todas estas pessoas reais não conseguiram suportar a própria fama ou lidar com sua persona. O artista que soube retratar este fenômeno como ninguém foi justamente um artista que chegou a sofrer um atentado devido ao seu próprio sucesso e dizia que no futuro todos seriam famosos por quinze minutos:

“Warhol começou as pinturas poucas semanas após seu suicídio [de Marilyn Monroe], em 1962. Transformando a imagem na apresentação de uma ausência, como nas antigas pinturas funerárias, liga seu sentido ao ato de mourning, velar. A imagem da atriz aparece como um ícone bizantino sobre um fundo dourado. (…) Se refletirmos sobre a vida de Marilyn, é curioso notar que ela se referia a si mesma de modo esquizofrênico, como para virar estrela sua imagem tivesse se descolado da mulher anônima. A imagem aqui produz uma identidade diferente do próprio referente. (..) Em um outro quadro, Warhol diz ter retratado todas as pessoas – um crânio, afinal de contas, não é o retrato de todos nós? Nessa pintura Warhol recoloca o sentido da vanitas no cenário contemporâneo: tudo passa. “Nunca entendi por que, quando se morre, não se desaparece simplesmente. Gostaria que meu túmulo fosse branco, sem epitáfio, sem nome. Bem, se possível, gostaria de dizer figmente, fingere.” Impossível não pensar na célebre frase de Picasso, quando diz que a arte é uma mentira, uma mentira que nos faz conceber a verdade. Essa frase é retomada por Orson Welles em F for fake, em que escolhe a vida de um falsário para refletir sobre a arte moderna.” (Giannotti, Marco. ARS, São Paulo, vol.2 no.4, São Paulo, 2004)
Em outro momento do artigo citado, teço a relação com a imagem da pintura da maquiagem da Marilyn com o célebre texto de Baudelaire, em O pintor da vida moderna, onde o autor faz o elogio da maquiagem, por eternizar a beleza da mulher e esconder os traços da velhice. Entretanto, no filme atual do Coringa, vemos o tempo todo o ator borrando sua maquiagem, ao ponto de uma das cenas finais passar nos lábios seu próprio sangue. Antes a personalidade outra estava na fantasia, agora é na fantasia que se encontra a identidade. O ator parece não temer a morte e vive sua plenitude justamente ao manipular sua persona na mídia. Nosso atual presidente faz isso a todo instante e de maneira provocativa reclama da mídia. Não por acaso muito os chamam de palhaço, embora ele saiba muito bem para que público está atuando.
Estamos longe daquela visão trágica de Persona (1966) do filme de Ingmar Bergman³, onde a atriz principal só volta a se comunicar diante das atrocidades que vê no mudo ao redor. Hoje é preciso rir, e bem alto. Todos precisamos nos vestir de palhaço assim como o público enraivecido no filme. Aliás o uso das máscaras por toda a população remete às manifestações de 2013 no Brasil que começaram apenas como um ato contra o aumento do transporte, explodiram em manifestações gigantescas que culminaram com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a mudança radical do cenário político. Nestas manifestações, as máscaras de um personagem anônimo apareceram por todos os lados.
“A máscara associada ao grupo hacker Anonymous tomou conta das ruas como símbolo de revolta no Brasil em 2013. A máscara é uma referência a Guy Fawkes, um famoso conspirador inglês, e foi popularizada no Brasil pelo filme V de Vingança, estrelado por Natalie Portman e Hugo Weaving. O longa-metragem é inspirado na Graphic Novel criada por Alan Moore e publicada originalmente em 1983. Na história, a máscara é usada pelo personagem V, um enigmático anarquista que a usa como forma de esconder seu rosto deformado e como símbolo de resistência ao governo totalitário que tomou conta da Inglaterra num futuro distópico”. 4
Atualmente parece que a liberdade em se manifestar está em se mascarar anonimamente no meio da multidão. Mas o fascínio por palhaços que riem da nossa cara e nos desafiam aparece também na arte contemporânea com grande intensidade como em Clown Torture de Bruce Nauman de 1987, Cavalo por pierrô (2014) de Nuno Ramos. A exposição monumental do artista contemporâneo Damien Hirst no Palazzo Grassi e em Punta della Dogana em 2017 joga com as ilusões, verdades e mentiras que fazem parte da cena das artes. Sua exposição busca uma resgatar uma dimensão mítica e ao mesmo paródica muito instigante. O domínio técnico em várias áreas como fundição, fotografia, filmagem, manuseio do mármore resgata a questão da técnica como um componente importante na apreciação de uma obra de arte, mesmo que muitas vezes o artista leve ao limite do kitsch, paradoxalmente o artista consegue restaurar uma certa aura em torno da obra. Toda exposição gira em torno de uma ficção sobre um naufrágio de um escravo riquíssimo que perdeu toda sua coleção no perto da costa da África. Hirst constrói um museu imaginário de obras advindas dos lugares mais distantes geograficamente e historicamente. As imagens adquirem um aspecto atemporal, pois apresentam aspectos de relíquias antiquíssimas permeadas por corais e elementos marítimos. Concomitante a este processo, marcas de imagens reprodutíveis, imagens de Games ou de filmes, ou até mesmo do Mickey Mouse ou do Pluto envolto em corais falsos aumentam o clima de uma irrealidade Pop. Cria-se assim uma viagem ao passado totalmente imaginária que se torna ainda mais potente pelo fato de se estar em Veneza, de onde tanto já se discorreu sobre sua beleza mortífera.
Aliás, no célebre filme Morte em Veneza (1971) de Luchino Visconti, a trágica cena final não é justamente a que retrata a morte do famoso compositor, supostamente Mahler, interpretado por Dirk Borgarde, onde sua maquiagem se desfaz perante o forte verão na praia do Lido? Hoje em dia a maquiagem U.V resiste ao calor dos tempos e torna-se uma forma diferente de fazer política, ou arte. Em uma cena anterior o ator desfalece num poço permeado de desinfetante contra a cólera, começa a rir de si mesmo e revela uma profunda tristeza, como o Coringa. Algo de humano ainda permanece por trás das máscaras.