A Era Vitoriana (1837-1901) passou para a história como um período marcado pela repressão sexual, pelos costumes rígidos e por uma moral ditada pela religião e pelas proibições implacáveis. A rainha Vitória (1819-1901), de quem a era tomou o nome emprestado, ajudou muito a criar essa imagem de severidade por se apresentar em público como a viúva devastada pela perda do marido, sempre de negro, com golas altas e olhar pétreo.

Essa imagem da rainha carola está sofrendo abalos graças a estudos feitos na coleção de arte dos Windsor. A maior das revelações é que a rainha gostava de nudes, não esses de celular, claro, mas telas com mulheres nuas. A exposição Art & Love, realizada no Victoria & Albert Museum em Londres, em 2012, trouxe algumas descobertas sobre suas preferências estéticas.
A rainha não tinha o menor preconceito contra nus, porque foi criada junto à maior coleção de arte privada do mundo, com 7 mil pinturas, 30 mil aquarelas e 500 mil desenhos, tudo espalhado por 13 propriedades no Reino Unido. Imagine qualquer grande mestre entre os séculos 16 e 19 e você irá encontrá-lo na chamada Royal Collection. Tem Vermeer, Rubens, Mantegna, Tiziano, Rembrandt, Cranach e um grande etc., tudo em quantidade para rivalizar com coleções públicas do porte do Louvre. Só de Leonardo da Vinci, os Windsor têm 500 desenhos.
É óbvio que, numa coleção desse porte, há muitas obras de teor erótico. Segundo a curadora Susanna Avery-Quash, da National Gallery britânica, a obra predileta da rainha Vitória era uma tela do pintor alemão Frans Xaver Winterhalter (1805-1873), da qual o Metropolitan de Nova York também tem uma versão. Batizada de Florinda, a obra mostra um grupo de mulheres nuas se banhando na floresta.
Outro achado da curadora: foi a rainha Vitória quem comprou as obras mais atrevidas da coleção, e não o príncipe consorte Albert, como antes imaginavam os pesquisadores por causa da proximidade do príncipe com o mundo da arte do século 19. “Ela não era uma puritana, com certeza. Descobrimos que foi ela quem comprou a grande maioria das pinturas e esculturas com nus”, escreveu Avery-Quash.

Erotismo e pornografia
Perto da boçalidade que reina atualmente entre os Windsor, a rainha Vitória e o príncipe consorte parecem reis de conto de fadas. O príncipe Albert de Saxe-Coburgo-Gota (1819-1861), que nasceu na Alemanha e estudou na Universidade de Bonn, era um conhecedor de arte, havia viajado para a Itália para visitar estúdios de artistas e aprender canto num tour que durou dois anos, de 1838 a 1839; ele se casaria no ano seguinte com a rainha Vitória. Com essa bagagem, foi ele quem decidiu organizar a Royal Collection e restaurar uma série de obras que estavam castigadas pelo tempo.
Foi logo após essa reestruturação que a coleção real pode ter perdido o que parece ser a sua mais inusitada subseção: a de arte pornográfica, não erótica (foi no fim do século 19, aliás, que nasceu a expressão pornografia). Não é fácil separar pornografia de erotismo, mas talvez valha aí a definição de um ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo o qual basta olhar para saber a diferença.
O expurgo da Royal Collection é um mito entre pesquisadores ingleses, uma charneca cercada de brumas, com um agravante: os Windsor não fizeram quase nada até agora para separar a verdade da lenda. Leonardo da Vinci desenhou um esboço de uma obra sua que está desaparecida, O Anjo da Anunciação, na qual a figura angelical está de pinto ereto e com seios, como se fosse hermafrodita.
Não seria a primeira brincadeira de Da Vinci com paus: ele tem uma caricatura de dois pintos que caminham sobre pernas estilizadas em direção a um buraco sob o qual está escrito Salai, o nome do namorado mais duradouro do artista renascentista. Intitulado O Anjo Encarnado, esse desenho já pertenceu à família real inglesa, segundo Walter Isaacson, biógrafo de Da Vinci. “Feito em 1513, quando Leonardo estava em Roma, ele mostra uma versão transexual e lasciva do Anjo da Anunciação nos encarando de forma sensual, com seios e um enorme pênis ereto”, conta Issacson em Leonardo da Vinci.

Reação moral a ícone gay
O crítico Charles Nicholl, que estudou O Anjo Encarnado, dá uma ideia do que era Roma quando Da Vinci viveu por lá: a cidade tinha 50 mil habitantes, dos quais 7 mil eram prostitutas trabalhando em bordéis autorizados pelo Vaticano. O desenho do anjo foi redescoberto em 1991, quando apareceu numa coleção de um nobre alemão e se tornou imediatamente um ícone gay.
O crítico de arte Brian Sewell (1931-2005), que trabalhou no jornal britânico The Telegraph e estudou a sexualidade na obra de Da Vinci, diz ter ouvido de funcionários da Royal Library que os Windsor tinham uma coleção bem maior de obras consideradas pornográficas de Da Vinci e que elas foram expurgadas por um pesquisador alemão no fim do século 19.
Pesquisadores famosos da coleção de arte da família real britânica, como Keneth Clark e Anthony Blunt, teriam decidido esconder deliberadamente as obras mais sexualizadas de Da Vinci que pertenceram aos Windsor, de acordo com Sewell. Nas discussões que se seguiram à descoberta do anjo nos anos 1990 houve muita reação moral ao Da Vinci de pênis ereto, tratado como um desvio do renascentista. Os historiadores mostraram que não é bem assim. Há uma tradição que vem da Grécia clássica de produção de desenhos altamente sexualizados e que esse gosto reapareceu no Renascimento italiano.
Outro detalhe notado pelos historiadores: quem disse que O Anjo Encarnado é um anjo? Parece mais o namorado de Da Vinci, que o próprio artista definia como um capetinha.