No terceiro episódio do podcast Engúio, série da Bienal das Amazônias*, intitulado Ancestralidade Viva, a apresentadora Flores Astrais pergunta às artistas amazônicas Auá Mendes e Clara Best e à Mãe Rosa de Luyara que plantas e florações elas pensam que seriam, se fossem vegetais. Uma folha de açaizeira. Uma planta medicinal. Um hibisco.
No contexto da pesquisa editorial anual sobre as dimensões do real, a seLecT_ceLesTe #59 pisa na terra. Então, se fosse um vegetal, penso que a revista seria a madeira que cresce no interior da terra. Uma raiz que contorna as pedras do caminho, graças à sua capacidade de adaptação.
A terra é o lugar para onde vamos quando queremos conhecer nossas origens, dar concretude à memória, construir morada, plantar fundamentos, realizar anseios de vida. Uma revista que está, a todo momento, repensando suas formas de fazer e existir, reavaliando sua função de documentação e crítica da produção artística de seu tempo, deve voltar-se para a terra.
E nesse manejo cotidiano do nosso jornalismo raiz, ao olhar para a terra brasileira arrasada, violentada, envenenada, construímos uma edição em P&B. Repetindo a perda de saturação cromática de obras como El Bosque en Llamas (2023), da artista colombiana Noemí Pérez, que, em desenhos em lápis carvão, guarda a memória da exploração do carvão vegetal nos territórios amazônicos em conflito.
Mas, se voltar à terra é pisar em solos de apagamentos, é também escavar o chão fundamentado pelos povos originários. “Essa ancestralidade é o que mantém a estrutura do nosso solo, fortalecida diante de massacres e disputas por territórios”, diz Flores Astrais no podcast.
“Destituição de terra é destituição de memória”, aponta Eloisa Almeida em reportagem sobre o Coletivo Nacional de Cultura, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Quatro projetos curatoriais restauradores de memórias nos acompanharam ao longo destes meses. Atravessam as páginas que se seguem – em portfólios, reportagens, entrevistas, críticas e curadorias editoriais – Terra, a representação do Pavilhão Brasil na Biennale Architettura 2023; 1a Bienal das Amazônias: Bubuia; Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro; e a 35a Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível, que abrirá concomitantemente ao lançamento desta edição.
Essas exposições, assim como os terreiros, os quilombos e as aldeias, colocam-se como espaços “onde se tecem relações, a fim de restabelecer o bem-estar material, psicológico, físico, emocional e espiritual”, como aponta o colaborador João Victor Guimarães, de Salvador, em reportagem sobre terreiros e instituições museais que podem ser considerados “arquivos de corpo”.
Nesta edição que é sobre corpo, casa, terra, território, terreiro, terreno… nosso jornalismo, como raiz de planta que arrebenta o concreto da calçada, irriga e trabalha a documentação da arte contemporânea, para que mais gente e as próximas gerações possam retornar a essa memória.
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* Correalização do Instituto Goethe