A ideia da perda da comunidade e da desintegração das grandes identidades coletivas é associada pelo filósofo Jean-Luc Nancy ao fracasso do projeto comunitário do comunismo e à incapacidade das revoluções culturais em comunicar um “pensamento de comunidade”. De acordo com o autor de A Comunidade Inoperada (1986), todo o pensamento ocidental teria se estruturado sobre a promessa de uma “comunhão total”, já perdida na origem, mas aguardada no futuro. Sobre o fantasma dessa comunidade universal se sustentariam os imaginários utópicos.
Diferentemente da sociedade, continua Nancy, a comunidade não é só a comunicação íntima entre seus membros, mas se faz, sobretudo, com a partilha, a difusão e a impregnação de uma identidade em uma pluralidade, na qual cada membro, ao mesmo tempo, corresponde e se identifica com o corpo vivo comunal.

Enquanto a comunidade total não vem, agrupamentos artísticos ensaiam formas de criar laços e vínculos, quase sempre assumindo-se como coletivos artísticos. Outros grupos assumem formas mais elásticas, mutantes e fluidas. É o caso do movimento que ficou conhecido como Abravana, ou Movimento Abravanista, ou Abravanation Society. O termo, baseado em um caso real de Síndrome de Estocolmo, ocorrido em São Paulo, em 2001, foi cunhado pelo artista Ricardo Càstro e usado como um dispositivo de ativação de suas instalações e performances. Em sua mais nova versão, a comunidade Abravana desdobra-se em um Corpo de Baile.
COMUNIDADE ABRAVANA
Antes do Corpo de Baile, em seus 20 anos de atividades, a Abravanação nunca havia se reconhecido como coletivo, mas como um processo coletivo de afetação e transformação das pessoas. Esses processos se deram, primeiro, por meio da vibração de frequências de onda de cor e de luz. Logo, com as “composições telúricas”, objetos compostos de matérias orgânicas e artificiais – pedras, cristais, tecidos, espelho, conchas, adesivo vinílico, glitter, couro, cortiça, MDF –, em apoio às ações.
Como os balões de cor lilás usados na performance Abravanation Reversor (2006), que Ricardo Càstro fez com a cantora Chiris Gomes no Viaduto Santa Ifigênia, em São Paulo. Aquilo não eram simplesmente balões de gás. Eram dispositivos de ativação de energia de cura física, mental e emocional, para a conexão com um estado de pré-razão e com a força de bichos cósmicos.

Uma performance Abravana não é apenas uma performance. É uma “performance oracular” que justapõe planos de percepção mística e estética. Uma ação não é só uma ação. É uma manifestação. Um trabalho de arte pode ser um portal. Como nos games, na vida e na arte Abravana atravessamos portais. Abravanation Reversor é reconhecido como um portal porque, nela, os artistas desenvolveram os sons Abravanados, que vibraram longe, atraindo outros Abravanados, como Cibelle e o assume vivid astro focus.
Foi assim, com a expansão das frequências de sons e de cores, que se formou a comunidade Abravana, algo que se manifesta como uma “quasi ficção científica de uma tribo que se alimenta de luz”, conforme o crítico Bernardo José de Souza se referiu ao vídeo A Hora Mágica (2015), no texto “É a criançada se alimentar de luz…” (2015).
Sempre desenvolvidas em pontos nevrálgicos do tecido urbano – Avenida Paulista, Marquise do Ibirapuera, Viaduto Santa Ifigênia, Avenida Ipiranga –, as manifestações aconteciam, no início do século 21, por meio de chamadas e convocatórias. Na era pré-colapso do regime heteronormativo e patriarcal, pré-revolução queer, pré-linguagem inclusiva e das redes sociais jurássicas, isso se dava no analógico boca a boca. Em formações explosivas e espontâneas, esses grupos performativos juntavam artistas e todas as categorias ditas não artísticas, aqui encampadas ao grande círculo da arte: ambientalistas, patinadorxs, fashionistas, cantorxs, bailarinxs, iogues, sensitivxs, artistas de circo, educadorxs etc. etc. Escritorxs também se agregavam, produzindo pensamento crítico com alta voltagem criativa.

MARINA NÃO DANÇA
Sushumna é o principal canal energético do corpo por onde passa, em caminho ascendente, a energia Kundalini, conectando a base da espinha – ânus – ao topo da cabeça – língua. O caminho de ascensão vai fazendo uma trança, serpenteando. Suco de Sushumna (2022) é o primeiro trabalho do Corpo de Baile Abravana, projeto em que se diluem e se misturam as pesquisas de Ricardo Càstro – com o CorpxTotal, sua pós-graduação com a dançarina Angel Vianna –, da dançarina Paula Petreca, de Alma Luz Adélia, Arthur Braganti e Rodrig Raiz. Outros Abravanados aderem e colaboram ocasionalmente, caso de Marcelle e Marina.
“Marina não dança”, alguém disse em algum momento. Melhor. “Um corpo de baile é o que há de mais tradicional, dentro da dança. Mas a nossa via é de um anticorpo de baile”, diz Paula Petreca, que se interessa por uma dança quase invisível, que pode brotar do asfalto do tecido urbano. Isso lembra o Judson Dance Theater, o paradigmático coletivo de dançarinos, não dançarinos, compositores, não compositores, artistas e não artistas, que performavam no Judson Memorial Church, no Village nova-iorquino nos anos 1970, para quem andar na rua era dançar.
O que o Corpo de Baile faz não é espetáculo. Não é aula. É CorpxTotal. Sem as cores e as composições telúricas dos primeiros trabalhos Abravana, o Corpo de Baile vem afirmar que Abravanação é “puro corpo”. Agora, os dispositivos nascem e crescem sem o uso de artifícios. São as alterações dos ritmos do próprio corpo do performer/dançarino – convertido em raio, fumaça etc. – que ativam os níveis de consciência.
Tudo isso aponta para a desconstrução como um dispositivo vital, uma espécie de caráter altamente destrutivo da Abravanação. É por isso que este texto, que parte de uma citação do pós-estruturalismo francês, passa imediatamente à fase da autoimplosão, para atravessar o portal e ser lido como um texto Abravana, em busca da expansão que o assunto pede.
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DEVIR ABRAVANA
ABRAVANA
Diluição do eixo cartesiano; afetação das pessoas por frequências de cor.
ABRAVANAR
Jorrar, gritar, expandir, explodir, abrir, estar em fluxo. Verbo utilizado para designar processos de abertura que convocam liberação, movimento, e proporcionam experiências de transformação artística, social e espiritual – coletiva e individualmente; verbo que dissemina, contamina.
ABRAVANAÇÃO
Salto quântico; desconstrução; mudança estrutural; compartilhamento de um campo de frequências.
ABRAVANATION
“Híbrido entre pintura, colagem e instalação, ela se faz pelo acúmulo de cores e formas que criam efeitos de frenesi e virtualidade” (Carolina Soares, Abravanation, 2005)
ABRAVANADA
Desapegada, afetada pelo outro.