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Balsa João Basso, objeto de pesquisa da residência Casco Pós-Balsa [Foto: Kim Costa Nunes]
Postado em 14/02/2025 - 3:06
Afluentes da terceira balsa
Contexto histórico, ambiental e sociocultural de região metropolitana próxima à Represa Billings, em São Paulo, é tema para pesquisas de artistas da residência Casco Pós-Balsa

Em 1927, uma enorme perturbação humana mudou a paisagem da porção sudeste da região metropolitana da cidade de São Paulo: a inundação de um território de mais de 106 quilômetros quadrados para a criação da Represa Billings. Inicialmente planejada para armazenar água para a geração de energia na usina hidrelétrica Henry Borden, em Cubatão, no fim da década de 1940 a represa foi transformada em um reservatório que abastece os municípios de São Bernardo do Campo, Santo André, Diadema e bairros de São Paulo. Com a construção de usinas elevatórias, diques, do reservatório Billings, do canal Guarapiranga e a retificação do Rio Pinheiros, as grandes obras da primeira metade do século 20 criaram um sistema hidráulico que gera energia e fornece água potável para a região mais populosa e industrializada do país. O desenho racionalista que mudou o curso natural dos corpos d’água também restringiu seus usos, comprometidos pela poluição causada por dejetos industriais e domésticos, e gerou uma série de problemas há muito tempo conhecidos, como as inundações, o assoreamento, a degradação do solo e a contraditória falta de acesso à água para consumo ou lazer.

Atualmente, iniciativas da gestão pública e da sociedade civil buscam reverter esse cenário. A paisagem construída pela ação humana é irreversível, mas a qualidade da água, seus usos e sua importância para a vida social estão em plena disputa. Um exemplo é a “metrópole fluvial” proposta pelo grupo de trabalho homônimo da FAU-USP que está por trás do PlanHidro de São Paulo (Plano Municipal Hidroviário), que planeja implantar um hidroanel metropolitano e um sistema de hidrovias urbanas com objetivos de resgatar a qualidade das águas, diminuir o impacto ambiental derivado do transporte de cargas e contribuir com a mobilidade de comunidades. Ou, ainda, a residência artística Casco Pós-Balsa, a segunda edição do Programa de Integração Arte, Comunidade e Educação, realizada em parceria com a Universidade Federal do ABC, no extremo sul de São Bernardo do Campo. O território posterior à balsa João Basso, a terceira entre as três embarcações públicas na Represa Billings, é classificado como rural e é uma Área de Proteção Ambiental (APA), destinada à preservação dos ecossistemas da Mata Atlântica e da qualidade da água do reservatório. Em comum nos dois projetos há o lastro da pesquisa acadêmica e a proposta de recolocar as águas como elementos estruturantes para habitar esse mundo em ruínas, pegando emprestadas as palavras de Anna Tsing.

Descrito por uma de suas coordenadoras, a pesquisadora e curadora Lola Fabres, como um “ensaio de integração e capilaridade”, o programa Casco surgiu do seu interesse e de Luciano Nascimento, também pesquisador, em deslocar procedimentos artísticos para contextos fora dos centros urbanos tradicionais. A primeira edição da residência foi realizada em 2021 no litoral norte do Rio Grande do Sul e reuniu 12 artistas trabalhando em 12 distritos distintos. Indo ao encontro de uma necessidade de continuidade dos projetos desenvolvidos pelos artistas residentes junto às comunidades, em 2024 o Casco tornou-se uma ação extensionista vinculada ao programa Escola Parceira (PRILEI-UFABC) e à Escola Estadual Omar Donato Bassani, localizada no bairro Tatetos, região pós-balsa do distrito são-bernardense de Riacho Grande. Nesta edição, as produções artísticas estão vinculadas a uma ação pedagógica que envolve alunos e pesquisadores da universidade, o grupo integrante da residência e a rede pública de ensino local. A residência aconteceu entre setembro e outubro de 2024, já os desdobramentos pedagógicos na escola estadual acontecem até o fim de 2025.

O contexto histórico, ambiental e sociocultural da região pós-balsa foi o tema para a pesquisa e produções desenvolvidas por um grupo de artistas residentes formado por Edu de Barros, do Rio de Janeiro; Gustra Martin, do pós-balsa de São Bernardo do Campo; Josué Pavel Herrera, de Havana, em Cuba; Karlla Girotto, de São Paulo; Lis Haddad, de Belo Horizonte; Mônica Ventura, de São Paulo; e Vinícius Barajas, de São Bernardo do Campo. Matheus Nogueira, residente na região, foi o artista articulador comunitário; eu e Paula Borghi, ambas de São Paulo, fizemos o acompanhamento curatorial junto aos coordenadores.

Balsa João Basso, a "Terceira Balsa" [Foto: Kim Costa Nunes]

Hotspot multiespécie  

O conceito de hotspot diz respeito a uma área natural de grande relevância ecológica que enfrenta alto risco de extinção – uma definição para a região do pós-balsa. O território é coberto por remanescentes da Mata Atlântica e ocupa cerca de 60% da área total do município de São Bernardo do Campo. Também há a presença de comunidades indígenas, incluindo as aldeias Tekoa Guyrapaju, Tekoa Kuaray Rexakã e Tekoa Nhanderu Mirim. Em 1996, o território foi transformado em uma APA, mas longevos processos de ocupação deram origem aos bairros de Tateto, Capivari, Santa Cruz, Taquacetuba e Curucutu, que apresentam manchas urbanas consideráveis, compostas tanto por moradores locais quanto pelo trânsito de turistas.

A artista Mônica Ventura foi para a residência interessada no lírio-do-brejo, uma planta comum em áreas próximas a corpos d’água. Na paisagem do pós-balsa, os lírios são abundantes, pois mesmo que exóticos da vegetação nativa são muito usados pelos moradores para mitigar deslizamentos de encostas, mas, rapidamente, se reproduzem e se espalham. A pesquisa de Mônica destacou o aspecto multiespécie da região de Mata Atlântica, que também é formada pela agência humana e mais-que-humana no tempo e no espaço.

Lis Haddad também tomou as relações multiespécies da área como substrato para sua produção artística. Durante a residência conheceu Xina, um mestre marcheteiro morador da região, e se encantou com suas infinitas histórias. Xina conhece as matas, as águas e os animais do território como ninguém, e suas narrativas foram disparadoras para a artista refletir sobre relações de cooperação e simbiose naquela paisagem. Lis transformou isso tudo em bandeiras, peças cerâmicas e um ateliê de trabalho temporário em uma ruína na Aldeia Infantil SOS Brasil, um espaço de projetos sociais e assistenciais no bairro Tatetos, onde Xina toca sua marchetaria.

Do Pinheiros à Billings

A Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A. (EMAE), estatal privatizada em abril de 2024, é a responsável tanto pela geração de energia elétrica, através do referido sistema hidráulico metropolitano, quanto por gerir os níveis dos rios Tietê e Pinheiros e o transporte por balsas gratuito que existe na Represa Billings e liga bairros do extremo sul de São Paulo e de São Bernardo do Campo. Quem mora ou se desloca pela capital paulista e está acostumado com as águas poluídas do Rio Pinheiros, talvez não saiba que existe essa gestão de suas águas, que, em tempos de cheia, são bombeadas para a Represa Billings sem passar por nenhum tipo de tratamento. A prática, aprovada em 1997 pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente, visa mitigar as enchentes na cidade de São Paulo, ainda que leve esgoto e outros poluentes urbanos para o reservatório.

O artista cubano Josué Pavel Herrera, residente no Brasil há oito anos, mora próximo ao Rio Pinheiros e costuma andar de bicicleta pela ciclofaixa da Marginal. Em um período de seca, observou a intensa cor verde, oriunda de algas e cianobactérias, que tomou conta da superfície do rio. Pavel, cuja poética se assenta em uma reflexão geopolítica das paisagens, registrou a mesma aparição de cor nas águas da Represa Billings, que durante a residência Casco passava por uma pronunciada seca, conforme foi citado por muitos moradores locais. Quando soube que havia essa ligação entre as águas do Pinheiros e da Billings, percebeu que não se tratava apenas de um fenômeno bioquímico atrelado à estiagem, mas também um entrelaçamento dos corpos hídricos causado pelos interesses humanos.

Josué Pavel Herrera, Estudos das águas [Foto: Cortesia do artista]
A inquietude que as águas urbanas causaram em Pavel foi seu mote durante a residência. Sua reflexão pictórica se desenvolveu através de estudos sobre a água em diferentes pontos da Billings, que ele recolheu e fez testes rápidos de qualidade. O artista estava interessado em entender o território e a própria represa a partir das contaminações da cidade sobre seus corpos hídricos, que também se fazem visíveis cromaticamente.

Avistamentos de cima da balsa

Paisagem, como era de se esperar, foi tema para mais de um artista residente. Edu de Barros, pintor acostumado a apreender o intenso cenário urbano carioca em composições quase sacras, chamou seu olhar sobre o território pós-balsa de “alienígena”: vindo de fora, contemplava aquelas vistas com um estranhamento, na busca pelo que aderia ao seu imaginário povoado por narrativas míticas. Na travessia da balsa que liga o bairro Taquacetuba, em São Bernardo, à Ilha do Bororé, na região sul de São Paulo, viu uma figura humana que se movia em meio a uma paisagem degradada. A Lady Billings não colhia terra, como ele pensou quando a avistou de longe; mais perto, entendeu que ela buscava materiais recicláveis, a sua fonte de renda. A imagem que captou, formada pelo solo deteriorado das margens da represa, vegetação e detritos humanos, é comum, sobretudo nas regiões próximas às três balsas operadas pela EMAE, que concentram comércios, moradias e a circulação de pessoas e veículos. O artista deslocou aquela imagem aparentemente banal para uma pintura a óleo sobre placa cimentícia, aplicadas em uma pilastra de sustentação sob a Rodovia dos Imigrantes, às margens da Billings. Ali, a contemplação se faz como um procedimento para perceber o mundo e a paisagem como um entrelaçamento de tempos, presenças e manejos do ambiente.

Edu de Barros, Lady Billings (2024) [Foto: Kim Costa Nunes]
As diferentes cores das terras que margeiam o corpo d’água da represa também atraíram o olhar de Vinícius Barajas. Ceramista e arquiteto por formação, o artista são-bernardense já pesquisava os usos da vegetação e da terra da região para sua produção plástica. Desde a balsa, notou o solo argiloso que aparecia com a baixa das águas. Assim, investigou os aproveitamentos múltiplos desses recursos naturais constituintes da paisagem: na produção de peças cerâmicas e geotintas, em fibras e papéis vegetais, ou ainda na bioconstrução com a técnica de pau a pique. A extensa pesquisa de Barajas coloca uma inflexão na noção de extração, já que, inseridas em um projeto contínuo de relação com a comunidade, somam mais com uma discussão sobre responsabilidade ecológica e a observação cuidadosa do meio e de suas potências, do que com uma exploração inconsequente da terra.

Lis Haddad e Xina, ateliê temporário em ruína da Aldeia Infantil SOS Brasil [Foto: Pedro Casagrande]
Gustra Martin, Pés de barro (2024) [Foto: Kim Costa Nunes]

Os pés de barro do pós-balsa

Na sentença anterior, a palavra terra poderia ter sido escrita com T maiúsculo. A infinita combinação de minerais que compõem toda a superfície do planeta, mesmo abaixo das águas, foi constantemente evocada pela residente Karlla Girotto. Suas pesquisas poéticas se voltaram para o cruzamento humano-terra e para uma reflexão sobre o chão do pós-balsa, cuja natureza é a mesma de outros solos, mesmo que conformado por perturbações humanas específicas. Essa proximidade também foi reivindicada por Francis Bezerra, moradora da região e fundadora do Museu Nordestino, restaurante e instituição estadual que busca resguardar a memória e o patrimônio cultural das comunidades nordestinas em São Paulo. Para dar corpo a essa presença imanente do território denominado Nordeste no contexto sudestino, Karla Girotto propôs a criação de um objeto com a terra de cada um dos estados daquela região para compor o acervo do museu. A peça nos lembra das diferenças forjadas pelas fronteiras, mas também das propriedades físicas e afetivas desse chão comum.

Terra e água são os componentes do barro. Lamentavelmente, o barro ainda é posto como algo negativo, sobretudo nos contextos urbanos. Essa é uma das razões da expressão “pés de barro” ser usada para ofender as pessoas moradores de regiões que escapam à urbanização. Gustra Martin, artista das artes do corpo que mora no pós-balsa, escolheu justamente essa alcunha como objeto de seu trabalho. Juntamente com Walter Alves, ceramista que também reside e trabalha no local, produziu peças que registram os pés humanos e não humanos que habitam o território – como os pés de plantas e de animais, a exemplo da onça-parda. A proposta da dupla de artistas é levar o conjunto de pés para o outro lado da balsa, em uma composição circular no chão que relembra essa ligação constituinte da vida terrestre.

Gustra Martin, Pés de barro (2024) [Foto: Kim Costa Nunes]
Os Pés de Barros e outros trabalhos produzidos pelos artistas residentes da Casco Pós-Balsa serão apresentados em uma exposição que acontece em dezembro no campus de Santo André da UFABC. Aqui, a reflexão sobre elementos ambientais e sociopolíticos que compõem a Represa Billings orientou minha breve apresentação das pesquisas desenvolvidas no programa. Convido todas as pessoas interessadas para conhecerem mais no site www.casco-pos-balsa.com.


PS. A exposição da residência Casco Pós-Balsa aconteceu em dezembro de 2024, no campus de Santo André da UFABC.