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Sombras (2014), de Alfredo Jaar (Foto: Divulgação)
Postado em 09/10/2021 - 10:00
Alfredo Jaar ou a arte de encarar a luz do flash do terror da realidade
Instalações do artista chileno ativam o momento real das imagens, interrompendo o automatismo da produção e reprodução de choques e catástrofes

Ernst Simmel, autor de Neuroses de guerra e trauma psíquico (1918), descreveu o trauma de guerra com uma fórmula que deixa clara a relação entre técnica, trauma, violência e o registro de imagens: “A luz do flash do terror cunha/estampa uma impressão fotograficamente exata”. A fotografia é uma filha da modernidade e nasce com a propensão ambígua a registrar a realidade violenta e a reproduzir essa mesma realidade. A reprodução técnica é marca da modernidade capitalista (com suas máquinas e guerras), assim como do dispositivo fotográfico. Repetimos ad nauseam a produção de choques e catástrofes que resultam de um sistema de exploração do trabalho, da natureza e dos conflitos nacionais e coloniais. A psicanálise nasceu, nesse contexto, para descrever essas vivências traumáticas e para imaginar terapias para a nossa vida sob o desabrigo (mal-estar) produzido por esses choques.

Diante dessa realidade pontuada pela violência e esmagamento do indivíduo e das sociedades também os artistas, como escreveu Walter Benjamin, têm que tomar posição. Eles podem tanto permanecer (ou tentar permanecer) em uma campânula fechada e protetora, fingindo que essa realidade traumática não viceja lá fora, construindo belos mundos de sonho e harmonia (e, assim, sendo cúmplices da barbárie), como também eles podem enfrentar essa realidade do terror. Eles podem tentar olhar de frente a luz ofuscante do horror e se engajar no sentido de fazer parar o automatismo da repetição. Justamente, ficar de pé, resistir, encarar a luz do flash do terror da realidade e inscrevê-la em dispositivos artísticos, essa é a tarefa que alguns artistas assumiram para si e o chileno Alfredo Jaar ocupa um lugar de destaque dentre esses artistas.

Para esses artistas trata-se de explodir com o muro da indiferença diante da violência sistêmica do capitalismo e o das falsas narrativas que escamoteiam essa história inglória. A história que é repetida de modo insidioso pela mídia e por muitos livros “didáticos” narra os “grandes feitos” dos “grandes homens” ocultando a história das violências que estão na base de toda cultura. Essa falsa história monumental é linear, conecta os vencedores em uma cadeia que cerceia a inscrição de contra-narrativas. Ela constrói histórias que sustentam a continuidade do mesmo modelo violento e explorador dos subalternizados. Citando a conhecida e essencial máxima das teses “Sobre o conceito de história” de Benjamin: “Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.”

Benjamin escreveu essas teses em 1939, a partir da realidade do fascismo e de sua ameaça genocida. Dentre os fragmentos em torno dessas teses ele escreveu: “É necessária uma teoria da história, a partir da qual se possa encarar o fascismo.” Daí ele estruturar a sua teoria da história na ideia de explosão dos quadros históricos e de memória que sustentam as narrativas de uma história “triunfal”. A destruição/explosão dos falsos quadros de memória é uma ação antifascista. Daí também a sua filosofia da história se voltar para o passado (para os mortos e não para um eventual futuro triunfal, como faz a burguesia e a socialdemocracia na sua época) e ao mesmo tempo para o presente (para os oprimidos pela máquina capitalista em sua face/fase fascista). Recordo de uma as teses:

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “como ele foi de fato”. Significa apoderar-se de uma recordação, tal como ela relampeja no instante de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de capturar uma imagem do passado tal como ela, no instante do perigo, configura-se inesperadamente ao sujeito histórico. O perigo ameaça tanto a sobrevivência da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos ele é um e o mesmo: entregar-se como ferramenta da classe dominante. Em cada época, deve-se tentar novamente liberar a tradição do conformismo, que está prestes a subjugá-la.” (W. Benjamin, “Sobre o conceito de história”)

Essa recordação que é apoderada em um momento de perigo, ao modo de um relâmpago, é chamada por Benjamin de “imagem dialética”: “Nessa constelação de perigo a imagem dialética relampeja num clarão.” A imagem dialética se dá no instante de contração temporal, no encontro revolucionário do passado com o presente, na interrupção do continuum da dominação, no relampejo redentor. Explodir os quadros históricos tradicionais e que alimentam a manutenção da opressão implica desmistificar a ideia de progresso (como Benjamin o fez de modo único em sua tese sobre o anjo da história) assim como o conceito humanista-iluminista de cultura. Esse conceito de cultura está associado a uma concepção antropomórfica do devir histórico de cada nação e de sua formação supostamente homogênea e orgânica. Esse modelo burguês de pensar e concretizar a história a partir dos quadros nacionais e de sua formação é um dispositivo memoricida e genocida, que apaga as diferenças para produzir uma falsa unidade homogênea.

Alfredo Jaar é um exímio construtor de dispositivos que atuam no sentido benjaminiano dessa explosão das falsas imagens de culto. Ele tenta apanhar o relampejo do trauma e construir as imagens dialéticas que ao mesmo tempo destroem falsas imagens e permitem imaginarmos outras narrativas, críticas e resistentes. Sua atual exposição no SESC Pompéia, na cidade de São Paulo, “Lamento das imagens”, com curadoria de Moacir dos Anjos, grande conhecedor da obra de Jaar, é um convite para refletirmos sobre essa capacidade da arte tanto de enfrentar a luz cegante do real como de explodir as falsas narrativas que transformam as imagens da dor em clichês. Trata-se da primeira exposição individual mais ampla de suas obras no Brasil. Doze obras permitem ao visitante ser introduzido no universo povoado de imagens, sobretudo fotográficas, da nossa história da violência moderna que são colecionadas por Jaar e apresentadas em suas obras-curadorias. Ele constrói cenários para (re)revelarmos essas fotografias que normalmente encaramos com profundo desgosto ou, até mesmo, com rejeição, devido a sua carga de terror. Seu gesto consiste justamente em explodir os clichês imagéticos (que naturalizam a violência, anestesiando-nos, transformando o horror em espetáculo) para produzir imagens resistentes, críticas, perfurantes, que nos despertam para a dura realidade desse horror.

O Som do Silêncio (2006), de Alfredo Jaar

Encarar a face da medusa do real, que petrifica e queima, através dos reflexos, das reproduções e dos arranjos curatoriais de Jaar é um modo de se ver, no seu escudo de Perseu, aquilo que normalmente recusamos ver. Uma das obras mais impactantes da exposição é “O som do silêncio”, de 2006. Em uma caixa-preta superdimensionada, uma autêntica máquina fotográfica na qual adentramos, ele propõe (re)revelar uma imagem que havia sido transformada em clichê. Trata-se da famosa fotografia de Kevin Carter, o fotógrafo sul-africano, que retrata uma criança em um campo no Sudão em 1993. Em duas décadas de guerra naquele país cerca de dois milhões de pessoas foram vitimadas. A criança está caída e atrás dela vemos um enorme abutre. Jaar, em seu dispositivo artístico-mnemônico de ressignificação dessa fotografia, nos faz entrar nesse enorme cubo negro (o reverso do cubo branco modernista que pretendeu romper o compromisso da arte com a história) e assistir a uma projeção de oito minutos, narrando a história de Carter (que depois de receber o prêmio Pulitzer por essa imagem veio a se suicidar), com letras brancas sobre um fundo preto.

É importante destacar essa contextualização narrativa, verbal, dessa imagem. É parte essencial desse dispositivo de Jaar ativar a força da narrativa verbal para recontextualizar a imagem de Carter e permitir que a força dessa imagem atue sobre nós, deixando de ser um clichê. Ficamos sabendo que Carter era perseguido em seu país por ter feito matérias nas quais assumia o lado dos oprimidos, a população não branca. Ficamos sabendo também de trechos de sua carta de despedida, nas quais ele narra que nunca conseguiu se livrar do horror que teve que atravesar para capturar as suas imagens. Carter morreu por não suportar o excesso de imagens da dor inscritos em suas retinas. Jaar transcreve também um dos ataques verbais sofridos por Carter (que decerto também o abalou profundamente), como uma frase de um crítico de1994: “O homem ajustando suas lentes para obter o quadro certo de seu sofrimento pode muito bem ser um predador, outro abutre em cena.”

Quando, na projeção de Jaar, a famosa fotografia é, finalmente, apresentada, fortes flashes disparam sobre o espectador que fica ofuscado/cegado. Cegado de ver, mas também cegado para ver melhor. Esse é o paradoxo da poética de Jaar: ao invés de domesticar as imagens de terror que ele coleciona, ele consegue fazer com que elas nos toquem. Jaar ativa o momento real das imagens. Do lado de fora da caixa preta um enorme painel de luzes brancas repete esse mesmo gesto de ofuscamento, como que nos chamando: venham ser ofuscados, para que seus olhos se abram para o real. Para que você (re)nasça para o “outro”. Como lemos em outra obra da exposição: “Outras pessoas pensam” (2012).

Outras Pessoas Pensam (2012), de Alfredo Jaar

O letreiro de “O som do silêncio” continua após a apresentação da famosa fotografia e nos conta que ela é parte de um gigantes banco privado de imagens, o Megan Patricia Carter Trust, pertencente à empresa Corbis, cujo proprietário é o multibilionário Bill Gates. Corbis, narra ainda o letreiro, á a maior agência de imagens do mundo, com cerca de 100 milhões de fotografias. Esse tema do controle das imagens/informações é também muito caro ao artivista Jaar, uma vez que esse quase monopólio das imagens jornalísticas permite um controle bastante problemático sobre as informações. Esse tema esteve particularmente bem apresentado em outra obra, que não estava nessa exposição, mas que é exemplar do trato de Jaar com a “desaparição” das imagens.

Refiro-me à sua obra Untitled (Newsweek), de 1994 (mesmo ano do suicídio de Carter), ano do genocídio da população tutsi em Ruanda. Essa obra de Jaar é um trabalho quase psicanalítico de inscrição de uma memória socialmente recalcada. Jaar monta nessa obra dezessete pranchas compostas pelas dezessete capas da revista Newsweek publicadas durante o período no qual se dava o massacre na África. A obra destacava o contraste entre a realidade e a sua representação “oficial”. A suposta revista de notícias e informação passou cem dias sem noticiar que se dava naquele momento um dos genocídios mais sangrentos do século. Suas capas destacavam as fotos de estrelas do futebol e da música, lembravam o dia do desembarque aliado na França em 1944, tematizavam o mercado de ações, especulavam sobre a possibilidade de vida em Marte etc. Abaixo de cada imagem que reproduzia essas dezessete capas, o artista escreveu o que acontecia em Ruanda a cada um daqueles momentos. Novamente a arte trabalha aí como escritura a contrapelo, como revelador de imagens que estão sendo o tempo todo recalcadas, riscadas ou mesmo barradas de serem inscritas. O artista se volta para o sofrimento que a sociedade recusa a ver – a não ser sob o signo da espetacularização ou da manipulação nacionalista, como no caso dos atentados terroristas e de sua cobertura. Esse tipo de imagem espetacular cega ao invés de abrir nossos olhos para o real. A imagem de artista, pelo contrário, pode servir de ponte e acesso para o “outro” e para o real, explodindo com as imagens encobridoras.

Assim, voltando à exposição “Lamento das imagens”, somos tocados também pelas imagens dos trabalhadores de Serra Pelada, fotografados por Jaar, antes de Salgado, em uma estética bastante diferente deste, voltada não para a estetização da dor, mas para a reencarnação dessas imagens na pele de pessoas reais (“Fora de equilíbrio”, 1989). Jaar com seus recortes do fundo das imagens, de modo paradoxal, destaca o teor testemunhal dessas fotografias. Também foi o próprio artista quem “fez”, e não “tirou”, as fotografias em Koko, Nigéria, ainda nos anos 1980, de uma série de barris com material cancerígeno que havia sido ali armazenada, vinda da Itália, como se o continente africano fosse a lata de lixo do mundo. (“Geografia = Guerra”, 1991) Nas fotografias vemos tanto especialistas examinando esse material, como crianças que brincam inocentemente nesse local: sendo lentamente envenenadas. Uma delas tampa o rosto diante da câmera de Jaar. Ela como que comenta o gesto do resto do mundo de tampar os olhos pra a África e sua realidade. Tampa os olhos para abrir os nossos.

Para vermos essas imagens captadas por Jaar caminhamos entre mais de uma centena de barris metálicos pretos cheios de um líquido – que refletem as imagens fotográficas que se encontram enquadradas em caixas escuras iluminadas deitadas sobre os barris. Ou seja, o que vemos é o reflexo das fotografias no líquido: escudo de Perseu liquefeito numa cenografia que nos faz caminhar e olhar para baixo, em um gesto de prostração e homenagem a essas crianças vítimas de um capitalismo selvagem sem pudor.

Geografia=Guerra (1991), de Alfredo Jaar

A história da produção de imagens sempre esteve relacionada à narrativa verbal. Nosso estar no mundo, como o descreveu o antropólogo Leroi-Gourhan, está atavicamente atravessado pelo diálogo e pela tensão entre o gesto e a palavra: o traço e o conceito. Paira desde sempre uma tensão entre as palavras e imagens, como o filósofo Vilém Flusser o apresentou em sua história da escrita. O interessante na obra de Jaar é que ela toma partido de apresentar imagens sem deixar de considerar a importância das palavras para sustentar os contextos dessas imagens. É como se o artista levasse às últimas consequências a formulação de Kant: “intuições sem conceitos são cegas.” As palavras dão uma nova visibilidade às imagens, assim como as instalações de Jaar também atuam no sentido dessa re-visualização crítica. Imagens cegas tornam-se visualizáveis via palavras e dispositivos artísticos. Benjamin também enfatizara em mais de uma ocasião o papel essencial da legendagem das imagens na construção de uma contra-história.

Nesse sentido, a obra que deu nome à exposição no SESC-Pompéia, “Lamento das Imagens”, de 2002, é emblemática. Essa obra foi concebida no pós-09/11, ou seja, em um momento de profusão repetitiva das imagens (cegas e cegantes) dos ataques às torres gêmeas. Jaar, que mora nos EUA há cerca de 40 anos, deve ter ficado particularmente chocado com a onda nacionalista e xenófoba que se levantou como resposta a esses ataques. Seu dispositivo de conscientização crítica em torno desses fatos é bastante inusitado. “Lamento das imagens” não apresenta imagens fotográficas ou qualquer imagem icônica, apenas palavras e, novamente, um clarão ofuscante. O lamento das imagens se dá em três estações somadas a um arremate ofuscante. O espaço é dividido em duas salas (como em um díptico), uma com três letreiros a outra com o clarão ofuscante projetado em uma tela.

Os três letreiros são três narrativas verbais foto-gráficas – ou seja, que lemos em letras-de-luz, com iluminação vinda de trás da parede, em uma sala escura – que lamentam o desaparecimento das imagens. Neste mundo saturado de imagens, elas, na verdade, faltam. Faltam porque o flash do real produz imagens cegas e que nos cegam. Precisamos (re)conquistar essas imagens cegas. Mas faltam imagens também porque existem monopólios de imagens, como o denunciado pelo “Som do silêncio”, mas que já havia sido tratado nessa obra de 2002. Em “Lamento das imagens” Jaar trata dessas duas desaparições. O artista se volta para a imagem que falta – título, aliás, do impressionante filme de sua alma gêmea artística Rithy Panh sobre sua experiência de sobrevivente do Khmer vermelho no Camboja, L’image manquante (“A imagem que falta”, 2013).

As três narrativas da primeira sala de “Lamento das imagens” tratam respectivamente: 1) de Nelson Mandela e de sua fotofobia desenvolvida ao longo de 28 anos de prisão associada ao trabalho em minas de extração de calcário. Sua retina estava queimada, literalmente e não por alguma imagem do horror. Mas trata-se de uma quase-cegueira produzida pela violência de um estado terrorista. 2) a segunda imagem narrada, imagem-verbal, trata precisamente do mega arquivo da Corbis que se encontra em uma caverna onde antes funcionara também uma mineradora de extração de calcário. Nesse arquivo estão “encarceradas” além das fotografias da barbárie no Vietnã, resultado da guerra norte-americana naquele país, as próprias fotografias de Mandela na prisão. Temos aqui, portanto, a evocação de imagens cegadas nessa inscrição em luz na parede negra. Por fim, 3) a terceira imagem-texto nos conta que o governo norte-americano adquiriu, durante a guerra do Afeganistão, iniciada em resposta aos ataques de 11 de setembro de 2001, todos os direitos sobre as imagens produzidas no contexto daquele conflito.

Lamentar as imagens, é lamentar tanto a sua ausência por cegamento real (Mandela), como por desaparição, ou seja, apropriação monopolista dessas imagens. Diante desse “branco” das imagens, na segunda sala o público é “atacado” por uma projeção ofuscante de um clarão. Como em um poema, temos aqui o momento do corte, a cesura no pensamento. Assistimos ao blackout das imagens. Novamente: Jaar nos ofusca, nos cega, para nos despertar para a cegueira produzida na sociedade.

Lamento das Imagens (2002), de Alfredo Jaar

Tratemos por último da obra “Sombras” (2014). Como na obra “Lamento das Imagens”, também aqui temos um “díptico”, ou seja, uma obra estruturada em dois ambientes. Novamente o primeiro ambiente é escuro (a caixa preta fotográfica é uma metáfora constante em Jaar) mas dessa vez vemos seis imagens fotográficas. Não são imagens feitas por Jaar, mas por ele “colecionadas”. Ele faz a curadoria das fotografias do fotógrafo Koen Wessing, feitas em Estelí, Nicarágua em 1978. Nesse momento, final da década de 1970, a guerra para se manter no poder levada a cabo pela família ditatorial Somoza está no auge da violência contra a luta resistente encabeçada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, FSLN. Wesing captura uma cena da violência de Estado contra a população nicaraguense. Ele acompanhou o drama de uma família cujo pai acabara de ser assassinado a sangue frio por agentes do governo. Wesing inscreveu com seu aparelho fotográfico a imagem da barbárie e também a da dor da família. Em um vídeo ao lado da obra pode-se assistir a uma longa entrevista com o fotógrafo holandês que narra os fatos em torno dessas fotografias.

Nas fotos vemos o cadáver do pai ainda ao lado da estrada e depois sobre uma cama, vemos imagens das filhas, dos amigos: todos estão tomados de assalto pela revolta produzida pela violência. A câmera fotográfica, como um para-raios, estava ali para capturar essas imagens e energias do desespero. Jaar faz uma curadoria dessas imagens para fazer não apenas com que recapitulemos essa história, mas também para impedir que essas imagens se tornem “pornografia” da violência ou simples consolo. Ele faz um dispositivo mnemônico crítico com alto teor testemunhal que transporta para o aqui e agora do espectador a cena de horror presenciada por Wesing.

Para reativar a capacidade dessas imagens de nos impactar, Jaar, na segunda sala da exposição, elege e destaca uma sétima fotografia, a que justamente capta o gesto de desamparo e desespero das filhas diante da imagem da morte do pai ao lado da estrada. Jaar como que recongela um instante que fora antes petrificado em imagem por Wesing. A imagem projetada em uma grande tela na segunda sala vai se modificando no sentido de se tornar um fundo negro destacando as duas filhas com seus gestos de desespero. Em seguida as filhas se transformam em puras silhuetas de luz. Se fotografia é, literalmente, escrita com a luz, Jaar recorta as silhuetas dessas duas filhas, transformando-as em escrita luminar: força, pathos. Ao recortar a imagem, vazando-a para vermos apenas a luz pelas silhuetas dos corpos das filhas, Jaar também põe em ação uma imagem muito mobilizada na América-Latina desde os anos 1970: a pintura de silhuetas nas ruas e calçadas, nas paredes e muros das cidades, nas reivindicações das populações acerca do paradeiro de seus amigos e familiares sequestrados pelo Estado.

O golpe artístico de projetar essas silhuetas de luz multiplica a força daqueles gestos patéticos das filhas e nos atinge como flash da obra “O som do silêncio”. Jaar, como propusera Benjamin ao historiador revolucionário, “explode [o instante] para fora do transcorrer histórico” e o congela. Assim, o elemento ensombrecido e recalcado da cultura é iluminado. A escrita de luz de Jaar revela-se como sendo também uma escritura de sombras, skiagraphia. Ele cria o avesso da fotografia para facultar a nós ver as imagens fotográficas do real. O sem-imagem, a dor extrema, ganha assim imagem, assim como o silêncio ensurdecedor da sociedade acerca de suas injustiças é rompido em “O som do silêncio”. A estética negativa de Jaar está aí para revelar, tornar em “positivos”, essas imagens recalcadas, ocultadas, ou desinvestidas de sua força pelo seu uso como clichês.

Não resta dúvidas que Jaar é um dos mais benjaminianos artistas da atualidade. Citemos o final da tese de Benjamin sobre a história que lemos acima: “Apenas tem o dom de atiçar no passado aquelas centelhas de esperança o historiógrafo atravessado por esta certeza: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

Na exposição “Lamento das imagens”, por alguns momentos, somos convidados a romper o pacto de esquecimento, memoricídio e de indiferença que marca nossa sociedade (genocida) hiperliberal. Com o flash do terror da realidade gravado nas retinas e no coração, cabe a cada um de nós decidir como continuar a caminhada.

Lamento das Imagens
até 5/12, Sesc Pompeia,
Rua Clélia, 93

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)