“Nós somos o Coyote”. Com esta citação, Ana Vaz deu início à nossa conversa sobre sua relação com o Brasil, seu país de origem. A máxima faz alusão ao texto homônimo escrito pelo pai, o artista Guilherme Vaz (1948-2018), em reação à obra de Joseph Beuys, I love America and America Loves Me (1974), que consistia no ato de o artista viajar aos EUA e passar diversas horas, coberto por peles, acompanhando de perto os movimentos de um coiote, esse animal noturno, solitário, emblemático das Américas e da imigração ilegal àquele país. Vaz afirma que tal obra só restaria completa quando, na contramão do percurso original de Beuys, o bicho fosse levado à Europa, com todos os cuidados necessários, para, então, envolto em panos, possivelmente em uma galeria de Roma, observar por dias a fio o comportamento de um homem branco, e nu, cultivado nas letras, entretanto incapaz de dançar. Guilherme Vaz, um dos pensadores iniciáticos da arte conceitual no Brasil, passou a década de 1970 no Rio de Janeiro, mas reorientou sua trajetória rumo ao sertão para, a seguir, embrenhar-se na Amazônia e desenvolver com tribos indígenas boa parte de sua particularíssima obra musical, marcada pela constante experimentação.
É a partir desses trajetos, desvios e conceitos que Ana Vaz começa a divagar sobre meu questionamento inicial, transcorridos quase 16 anos desde a sua mudança para o exterior – primeiro para a Austrália, como estudante de graduação em film studies no Royal Melbourne Institute of Technology, e depois para a França, quando deu início ao mestrado em cinema e artes visuais na escola Le Fresnoy Studio National des Arts Contemporains. As questões relativas à natureza vão informar sua prática artística em distintas linhas investigativas. Do Brasil à Austrália, de lá para a França e da França para o Brasil e, então, para Portugal e para o Japão, a trajetória de Ana foi tecendo uma obra a um só tempo local e universal, uma vez que se preocupa com a ideia de cosmopolítica e reterritorialização, buscando compreender a interdependência dos diversos povos, terras e espécies.

Brasileira impura
Criada em Brasília – cidade icônica da interiorização do País através da sua “marcha ao Oeste” rumo à Amazônia –, a artista entende-se como uma brasileira impura, um transplante, preferindo falar de raízes e não de nacionalidade ou identidade. Assim como a capital implantada artificialmente no Centro-Oeste brasileiro foi capaz de produzir suas próprias raízes e culturas (raízes também nascem do concreto!), a formação de Ana Vaz deu-se a partir de um ponto de vista bastante particular, desde o Planalto Central, em meio à estranha vitalidade de sua cena e cultura underground, ouvindo música eletrônica e experimentando novas formas de sentir e perceber o corpo e a natureza, diante de um céu que faz as vezes de mar e de uma terra vermelha, árida, que faz lembrar o faroeste. Nesse sentido, a ida para a Austrália significou a chegada em “outro faroeste”, “caipira”, como a sua terra natal, embora situada na face oposta do globo, às margens do Sudeste Asiático – um país que, como o Brasil, luta contra a sua perversa e violenta relação histórica com os povos nativos.
De lá para cá, mais de dez filmes foram rodados, todos essencialmente comprometidos com a experimentação formal no cinema e, sobretudo, investidos de alta carga especulativa, a qual deriva dos cruzamentos entre a filosofia e a ficção. De viés etnográfico, embora altamente críticas à etnografia clássica (etnopoéticas, se poderia dizer), suas obras se situam no terreno movediço das investigações que se acercam dos debates sobre cultura e natureza, tão urgentes quanto seminais neste estágio avançado do século 21, quando se faz necessário repropor novas formas de estudar a história e novos modos de pensar o futuro.
Seus filmes versam sobre o conhecimento acumulado e aquele que merece ser escavado, tornando, assim, possível lançar nova mirada sobre os tempos passados, presente e aqueles ainda por vir. Por outra banda, essa acumulação desigual de tempos (como diria Milton Santos) engendra uma espécie de ficção científica documental: informação escrita e oral, em seus filmes, convive em plano de igualdade com a apreciação visual e auditiva do mundo ao redor – quer aquele longínquo que, todavia, segue nos alcançando, quer o imediato, na urgência de uma política onipresente, quer o mundo do futuro próximo ou distante, quando das inafastáveis preocupações com o porvir.

Sobrenatureza
Neste jogo de simultaneidades, discrepâncias, inoperâncias, destruições e aparições, Ana Vaz propõe tratarmos do mundo nos termos de uma Sobrenatureza, assaz monstruosa, em vez de pensarmos a respeito de uma Segunda Natureza ou, tão somente, sobre a proclamada cisão entre cultura e natureza no Ocidente, questões essas que decorrem de diversos debates e leituras que notadamente remetem às vigorosas relações que a artista mantém tanto com o Brasil – com sua literatura, seus arquivos fílmicos, fotográficos, seus rastros arqueológicos e sua história oral preservada ao longo dos tempos pelo próprio povo – quanto com intelectuais como Bruno Latour (através do programa SPEAP – Master d’Experimentation en Art et Politique SciencePo, em Paris, por ela cursado e por ele dirigido) e Olivier Marboeuf (colaborador, produtor e aliado no processo de criação de seus filmes através da produtora Spectre e do Espace Khiasma, onde Ana esteve em residência, em 2017, em Paris, e também coautor de diversos dos seus textos e leituras performadas), ou mesmo com Laurel Ptak (na Triangle Artists Association, em Nova York, onde também esteve como artista residente).
Em A Idade da Pedra (2013), Ana Vaz vai debruçar sua atenção sobre uma jazida em Goiás, em torno da qual uma menina evoca o passado e desafia a linguagem verbal, enquanto explora a natureza da sua terra nativa, o dia e a noite, ao passo que os operários trabalham, rotineiramente, no processo extenuante de extração mineral. Milênios se passaram entre a formação geológica que deu origem àquelas pedras e o atual estágio tecnológico que permitiu à artista construir, virtualmente, o fantástico monumento que serve de marco estrutural para encerrar seu filme.
Ao longo dos séculos que separam a chegada dos colonizadores ao Brasil e o recente advento da imagem digital, transcorreram anos a perder de vista, sem que homens e mulheres escravizados e massacrados fossem ouvidos ou mesmo visibilizados. A virtualidade do impossível monumento erguido digitalmente por Ana Vaz no alto da jazida bem poderia encontrar paralelo na invisibilidade das vidas levadas a cabo pelo afã imperialista do colonizador europeu, que daqui levou o ouro para construir seus mais que Reais monumentos, erguidos, literalmente, no lombo e na raça de escravos africanos e brasileiros.
Já em Atomic Garden (2018), com o qual participa do 36º Panorama da Arte Brasileira do MAM Sp até 15/11, a artista vai buscar os vestígios do desastre nuclear em Fukushima, operando um registro tão alegórico quanto explosivamente belo do acidente que ocorreu na usina nuclear japonesa naquela cidade em 2011, o qual fez reincidir sobre a ilha, ainda que de maneira diversa, o fenômeno traumático experimentado quando Hiroshima e Nagasaki foram atacadas pelos EUA com bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial.
Entre a extrema visibilidade e a virtual invisibilidade dos fenômenos que nos cercam, ou nos cercaram no passado, o cinema de Ana Vaz está permanentemente à procura daquilo que nos escapa, que se encontra no ponto cego da história, desvelando a mera, proposital ou perversa, absoluta ignorância do homem, ao passo que também nos revela sua mais recôndita e pura beleza.