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Zonas de Valor (2022), no Shopping Higienópolis, de Renato Almeida, participante da residência na Uberbau_house [Foto: Jane Barros/ Instagram]
Postado em 07/02/2023 - 8:31
Ano novo, tudo de novo
Na cidade mais rica da América Latina editais e chamadas-aberta surgem como forma de subsistência para artistas e de alimentação para o mercado

O boato de que o ano no Brasil só começa após o Carnaval é desmentido pela programação cultural em janeiro e fevereiro. Pelo menos em São Paulo. Só no último sábado, 4/2, mais de 20 exposições foram inauguradas na cidade. Entre outras que abriram ainda em janeiro estão as mostras coletivas Contra-Flecha: Arqueia, Mas Não Quebra, na Almeida & Dale; O Direito ao Futuro: Exercido no Presente, organizado pela Uberbau_house e realizada no Ateliê 397; e o 14° Salão dos Artistas Sem Galeria, organizado pelo Mapa das Artes, que está em cartaz na Zipper. Em comum, todas partem de chamadas abertas para artistas de todo o país.

Janeiro e fevereiro têm Carnaval e muita gente viajando, especialmente no nicho do centro expandido da capital, em que as galerias e museus se encontram. “É um momento geralmente parado nas galerias. Ninguém quer arriscar muito. E, quando organizam algo, sempre é em um lugar seguro”, comenta Germano Dushá, em entrevista à seLecT_ceLesTe. Ele é um dos curadores e idealizadores do programa Contra-Flecha, realizado em parceria com o artista Rafael RG e a curadora convidada Ariana Nuala. Voltado para artistas em início de carreira e distantes do centro econômico sudestino, o programa terá periodicidade anual e, ressalta Dushá, “com o convite da AD surgiu uma nova possibilidade de inaugurar o calendário da galeria”.

As capitais do Sudeste, sobretudo São Paulo, concentram no país o maior número de editais, galerias, museus e de dinheiro. Apesar do esforço paulatino de descentralização e de olhar para outras formas de organização da arte nas demais regiões, seguimos mirando o eixo criado, inclusive geograficamente. A percepção ainda é dicotômica, São Paulo e Rio são a regra e todos os outros espaços são considerados exceção ou locais de regionalismo. Neste caso, o que define a regra é a exceção? 

INSERÇÃO
Porta de entrada para muitos artistas de todo o território nacional e forma de continuidade de suas práticas, editais de exposições e residências artísticas são não só oportunidade de visibilidade, mas meio de garantir o pagamento de contas e a validação que mantém a disponibilidade e desejo de continuar o fazer artístico. Em conversa com a seLecT_ceLesTe, Celso Fioravante, jornalista e idealizador do Mapa das Artes, comenta a iniciativa do Salão dos Artistas sem Galeria, que “surgiu há 14 anos, junto com o Mapa das Artes, periódico focado em divulgar a programação das galerias e dos museus em São Paulo. Minha percepção era que os artistas não participavam desse circuito, e aí surgiu a ideia de elaborar um projeto que envolvesse esse público. A aderência e permanência dos artistas é sintoma de um circuito que não alcança o público, que cresce cada vez mais.” Ao longo da entrevista, Fioravante ressalta a necessidade de o artista no Brasil tornar-se independente e criar outros meios de circulação de seu trabalho.

Ao olhar para a história institucional da arte no Brasil, o modelo do Salão Nacional de Belas Artes forma a base de uma estrutura ainda provinciana, assim como a confusão entre público e privado instaurada desde então e reforçada ao longo da dominância cultural e financeira das elites cafeeiras, que é pano de fundo das primeiras iniciativas de artistas e interessados ao longo dos anos 1930. “Não podemos negar que o circuito comercial é como uma locomotiva de todo o sistema nacional de artes”, afirma Fioravante.

“Não podemos negar que o circuito comercial é como uma locomotiva de todo o sistema nacional de artes”, afirma Fioravante
Vacas magras (2022), de Felipe Diniz Sanguin, 14º Salão de Artistas sem Galeria [Foto: Divulgação]

Em paralelo, a profissionalização do artista está cada vez mais atrelada à formação universitária e a uma forma específica de circulação e visibilidade, bastante apoiada na autogestão da própria imagem e no modo multitarefa: “No meu grupo de amigos e colegas da faculdade de artes, nos ajudamos para continuar a criar e aprender juntos, compartilhando informações de editais e as tornando acessíveis, o que muitas vezes não é”, diz Marina Woisky, uma das artistas selecionadas na chamada aberta de Contra-Flecha. Guillermina Bustos, uma das organizadoras da residência itinerante Uberbau_house, questiona: “Quais outros jeitos de viver na arte, que não pautados no mercado?”.

A Uberbau_house tem mais de uma década de existência e passou por várias configurações e cidades da América Latina. Atualmente opera como residência artística baseada em São Paulo, organizada por uma equipe pequena, que inclui a gestora e artista argentina Guillermina Bustos e o crítico e curador independente chileno Jorge Sepúlveda T. Conversei com os dois no mesmo dia em que artistas que integraram a residência apresentaram seus projetos no Ateliê 397. De acordo com ambos, o foco da residência é em artistas menos conhecidos, fora dos circuitos do mercado e instituições situadas nas grandes cidades e capitais, e na criação de outros espaços possíveis para o exercício da arte. Mais de 800 pessoas já passaram pela residência, “que vão de estudantes de arte do 2º ano até pessoas de 70 anos que nunca tiveram algum tipo de ensino formal em artes. Na residência, procuramos entender a profissionalização como carreira possível, mas não como a única que existe”, diz Sepúlveda em entrevista à seLecT_celesTe.

Guillermina Bustos: “Quais outros jeitos de viver na arte, que não pautados no mercado?”
Vista de Contra-Flecha: Arqueia mas Não Quebra, na galeria Almeida & Dale [Foto: Divulgação]

PERMANÊNCIA
Trabalhar com arte ou como artista permanece incerto e precário, sintoma que parece surgir da desequilibrada organização da cultura no Brasil, agravada nos últimos 4 anos. Ao mesmo tempo em que há uma nova geração de sujeitos ativos na arte, muito em consequência da difusão do ensino universitário, com políticas de democratização do acesso, parece não haver espaço para todos. Para Siwaju, artista carioca também selecionada na chamada aberta da A&D, o processo de seleção “está longe de ser justo, visto que são somente 10 vagas, mas é bastante justo no sentido de abrir espaço de participação na montagem, no texto, na expografia e escolha dos trabalhos”, afirma em conversa com Mari Ra, também selecionada na Contra-Flecha, e com a seLecT_ceLesTe. Mari Ra afirma que nem sempre os processos de editais e chamadas públicas para exposições têm uma preocupação com a continuidade das pesquisas dos artistas e na própria logística com os selecionados.

Além dos artistas e organizadores das mostras em cartaz até março na Almeida & Dale, Ateliê 397 e na Galeria Zipper, nas próximas semanas abre a exposição que resulta da residência artística na Usina Luis Maluf, projeto da galeria criada em 2014 que leva o nome de seu diretor. Maluf, em entrevista à revista, diz que a ideia surgiu, justamente, da necessidade de alcançar novos artistas e ampliar o recorte de arte urbana que a galeria iniciou: “Na primeira edição, por exemplo, parte dos artistas passaram a integrar o time representado pela galeria. E é uma perspectiva na atual residência.” 

Ana Carolina Ralston, curadora da atual residência e integrante do júri do 14º Salão dos Artistas Sem Galeria, afirma à seLecT_ceLesTe que “há uma diferença em fazer uma residência em um espaço comercial. Então, essa expectativa também se torna formativa, ao mesmo tempo em que permite aos artistas encarar questões muito práticas, como pensar soluções de transporte e adaptação de obras e finalizar a pesquisa em um produto, além de oferecer a segurança de um espaço já consolidado no mercado”. Por 3 meses o espaço da Usina é transformado em ateliê, onde os 11 artistas trabalham nos projetos para a exposição e participam de acompanhamento com Ralston e outros agentes da arte. A seLecT_ceLesTe conversou com a maior parte dos artistas e apesar de práticas e trajetórias distintas, em comum, sinalizam a maior intensidade que o próprio processo ganhou devido a residência. 

Residentes do programa da Usina Luis Maluf em 2023: [Foto: Fabi Caldart/ Divulgação]

Também em um espaço comercial de arte, o outro lado da moeda é contemplado em Contra-Flecha. De acordo com Ariana Nuala, “o projeto entende que [a chamada aberta] é um procedimento político e de formação de artistas, assim como formação de um público de colecionadores. Aline Motta, que foi convidada para a exposição e tem um trabalho extremamente relevante nas discussões que aborda, não tem uma galeria. Então, o desafio também é pensar em estratégias de formação de um colecionador que se interesse e nas formas de esse interesse vir à tona”, diz em entrevista à revista.

Na conversa com Mari Ra, Marina Woisky e Wajiu, fica evidente que, para as três artistas, grande parte das iniciativas de editais não se preocupa com o que vem depois do tempo de duração da exposição. O que é confirmado por Fioravante, que busca, no Salão, romper a prática viciosa. Por ser organizado por um veículo de comunicação, tenta manter e criar visibilidade aos artistas após o evento expositivo.

Por outro lado, ao questionar as perspectivas de permanência do artista enquanto trabalhador, Sepúlveda comenta que a Uberbau “investe em pesquisa e debate sobre os direitos trabalhistas na América Latina como uma das iniciativas para entender o trabalho com arte. Mas entender também que não precisamos nos restringir a determinados temas e assuntos da moda, visto que somos autônomos.”

Para além das bases éticas e conceituais que formam cada iniciativa, um ponto importante nas conversas foi o que as mantém financeiramente, em especial os projetos independentes, como a Uberbau e o Salão. “Há várias estratégias de levantamento de verbas, já que não é algo fácil, já que não estamos associados a grandes instituições. Vendemos e produzimos livros, cursos, por exemplo. E temos um sistema de orçamento colaborativo”, comenta Sepúlveda. Guillermina completa: “10% do nosso orçamento total parte, inclusive, de editais, que suprem muito pouco e acabamos por ter que introjetar um tanto da lógica competitiva mencionada.”

O Salão dos Artistas sem Galeria cobra uma taxa de R$150 para a inscrição. Fioravante justifica que “não é possível manter um edital sem dinheiro. Não há patrocínio”, e ressalta que o valor é uma forma cooperativa de continuidade do projeto. Esse ano, o Salão lança a 1ª edição da Bolsa Fora do Eixo, voltada para artistas que não estão inseridos na dinâmica voraz de Rio-São Paulo, e surge da demanda de inserção e participação de um público fora do Sudeste, que, ainda de acordo com Fioravante, o Salão não conseguiu cobrir até agora. A bolsa deve consistir, para ele, em “uma verba que talvez não se volte para um produto destinado ao circuito, mas como possibilidade de risco e de formação”.

Ariana Nuala: “o projeto entende que [a chamada aberta] é um procedimento político e de formação de artistas, assim como formação de um público de colecionadores"
Quem quer viver de arte? (2022), jogo de tabuleiro do coletivo Trabalhadores de Arte que integra a Uberbau_house [Foto: Divulgação]
Fioravante justifica que “não é possível manter um edital sem dinheiro. Não há patrocínio”