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Ao lado da curadora Vânia Leal, Jean do Gueto apresenta a sede do Gueto Hub, no bairro do Jurunas, em Belém do Pará, no ciclo de debates Um Rio não Existe Sozinho, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]
Postado em 04/09/2024 - 5:20
Arte comunal
Um Rio não Existe Sozinho, projeto-processo do Instituto Tomie Ohtake, mostra a face comunitária da geração 2030

A curadora Vânia Leal apresenta os palestrantes do painel Abrir Caminhos em Comunidade e estes, por sua vez, apresentam os seus rios: Jean do Gueto Hub fala de um braço do Rio Guamá que banha o bairro do Jurunas, em Belém do Pará; Letícia Grappi nomeia o Rio Almada para situar o Assentamento João Amazonas, no sul da Bahia; Gabriela (Gaia) Leandro conta dos caudalosos rios de histórias que conectam a vida de seus ancestrais e tantos outros mais construtores das cidades.

A razão do encontro é um projeto do Instituto Tomie Ohtake, chamado Um Rio não Existe Sozinho, com curadoria de Sabrina Fontenele e Vânia Leal, que se desdobrará em outro ciclo de conversas, em Belém do Pará, e em duas exposições em 2025, uma no ITO no começo do ano, outra em Belém, em novembro, durante a COP30 – 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Parece estranha em princípio a reunião de Jean do Gueto, Letícia Grappi e Gaia Leandro. Mas quando Jean conta da realização da COP das Baixadas no Gueto Hub, espaço independente que criou na comunidade dos Jurunas, em Belém, tudo se ilumina. 

Fala inaugural do professor no INPE Carlos Nobre, no ciclo Um Rio não Existe Sozinho, no Tomie Ohtake, dia 21/8 [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]
Ao final da palestra de abertura do evento, de Carlos Nobre, sobre colapso climático, o auditório cheio de gente ficara silencioso e cabisbaixo de desesperança, mas a fala do jovem indígena que transformou a antiga sede da Associação de Moradores, com histórico de lutas sociais, em biblioteca comunitária, galeria de arte e museu de base comunitária, reorientou o horizonte propositivo na noite de quarta-feira, 21/8. “Na periferia a gente tem outros tipos de memória cultural”, explicou Jean ao contar que, diferente dos marcos urbanísticos ou arquitetônicos dos grandes centros, no bairro do Jurunas, a pequena edificação com histórico de centro comunitário funciona como marco.

A história desse lugar por onde “passaram todos os comunitários” é também a história de sua mãe, que foi liderança nas pautas de melhorias para o bairro. Ao criar ali o Museu d’Água, para apresentar à geração Z a história do igarapé da Quintino, “temas como racismo ambiental e justiça climática passaram a fazer parte do debate local”, conta Jean do Gueto. A partir da ampliação política da escala local à dimensão global, os integrantes da iniciativa voltaram-se para o desenvolvimento de projetos e iniciativas que visam “pensar ancestralidade e agir em comunidade”, adaptando a máxima “agir local, pensar global”, que não lhes servia.

Letícia Grappi apresenta o projeto de construção de um centro socioambiental na comunidade do Assentamento João Amazonas, no sul da Bahia [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]

Letícia Grappi é arquiteta, pesquisadora de bioconstrução, conhecida pela proposição do Mapa da Terra (mapadaterra.org), plataforma colaborativa para cartografar construções com materiais naturais. Grappi apresentou no ciclo de conversas o projeto de escola, biblioteca e centro socioambiental do Assentamento João Amazonas, na Bahia. Toda erigida com tijolos de adobe, a edificação contou com mão de obra local, sendo o mestre de obras também da comunidade. O uso de materiais e tecnologias de baixo impacto ambiental resultou, após a conclusão do primeiro de três módulos do projeto, em um estudo de Avaliação de Ciclo de Vida (ACV) que indica 68% a menos de emissão de gases de efeito estufa na construção e uso da escola. 

HERDEIROS DA CIDADE
Encerrando a mesa Abrir Caminhos em Comunidade, a arquiteta e urbanista Gaia Leandro narrou o projeto em duas etapas de inventariar as memórias construtivas das grandes cidades. Em uma primeira formalização dessa obra, como instalação apresentada na 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (2022), Gaia Leandro e Mariana Leandro Pereira, sua irmã e coautora da pesquisa, levantaram junto à comunidade familiar registros fotográficos, histórias narradas, documentos e outros materiais de memória para dar visualidade e promover reflexões sobre a participação decisiva de seus avós na construção civil, com o objetivo de tirar da invisibilidade os sujeitos responsáveis pela produção construtora das cidades.

Em ensaio das duas artistas publicado na revista Farol do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo | V. 18 | N. 27 | verão 2022/2023, anotam:

“Partindo da imbricada relação entre vida,
trabalho e a arte de fazer cidade, nós, autoras
e netas de trabalhadores da construção civil,
mobilizamos documentos, fotografias, áudios,
recibos, plantas e projetos que deram forma e
corpo à instalação, borrando os limites entre
a história íntima, familiar, privada e a história
social, coletiva e pública. A proposta se realiza
também como homenagem aos nossos avôs,
João Carlos Pereira (àquela altura, ainda vivo)
e Gumercindo Ruge da Silva (in memoriam),
marmorista e cavouqueiro respectivamente.     

João Carlos trabalhou como marmorista
autodidata por mais de 50 anos, executando
obras anônimas e também algumas que
vieram a ser tombadas pelo Conselho Estadual
de Cultura. O trabalho de cavouqueiro, de
Gumercindo, envolvia o corte de pedras nos
morros da capital, a execução de obras de
infraestrutura, como escadarias e contenções.

A instalação no entanto não se pretende
como gesto apenas biográfico de uma família
específica, mas tem como intenção colocar a
invisibilização dos construtores como mote
e com isso abrir caminhos para identificação
e reconhecimento por parte, sobretudo, de
outras famílias racializadas, afro-indígenas,
como a nossa. 

Defendemos que os trabalhadores da
construção civil, através do desempenho de
seus ofícios, deixam marcas permanentes nas
cidades, inscrevendo suas presenças apesar
do apagamento de seus nomes, biografias e
autorias, que não constam nos livros, placas,
registros e documentos que salvaguardam a
memórias das obras e arquiteturas.”

Letícia Grappi no ciclo Um Rio não Existe Sozinho, no Tomie Ohtake, dia 21/8 [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]
“DEFENDEMOS QUE OS TRABALHADORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL DEIXAM MARCAS PERMANENTES NAS CIDADES, INSCREVENDO SUAS PRESENÇAS APESAR DO APAGAMENTO DE SEUS NOMES, BIOGRAFIAS E AUTORIAS, QUE NÃO CONSTAM NOS LIVROS, PLACAS, REGISTROS E DOCUMENTOS QUE SALVAGUARDAM A MEMÓRIA DAS OBRAS E ARQUITETURAS” [GAIA LEANDRO E MARIANA LEANDRO PEREIRA]
Gaia Leandro no ciclo Um Rio não Existe Sozinho, no Tomie Ohtake, dia 21/8 [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]
Gaia Leandro apresenta o projeto O Fabuloso Inventário do Meu Avô (2022) [Foto: Julio Kohl/ especial para revista celeste]

Na ocasião da Bienal de Arquitetura, o trabalho foi exposto com o título O Fabuloso Inventário do Meu Avô (2022). A partir de então, as irmãs Leandro Pereira têm realizado pesquisas para uma segunda etapa expositiva, com o nome O Fabuloso Inventário da História Material da Cidade, reunindo relatos, fotografias e documentos de uma comunidade alargada, com o objetivo de contar histórias de cidades a partir de seus construtores, para que esses sujeitos da história não desapareçam das narrativas. Com isso, a dupla de artistas faz um chamamento aos verdadeiros herdeiros da cidade, filhos e netos que salvaguardam esses registros, para adensar o fabuloso inventário de pais, tios, irmãos etc.

 

 

Em breve, na celeste #03, você confere a cobertura completa de Um Rio não Existe Sozinho.