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Por um Fio, da série Fotopoemação (1976), de Anna Maria Maiolino; e Corda Dourada com Minha Mäe Elenice Guarani, Minha Tia Marilucia Moraes, Minha Võ Maria da Graça e Minha Tia Gracilene Guarani (2020), de Tadaskia, com intervenção gráfica de Nina Lins para a seLecT_celeste nº 57
Postado em 23/04/2025 - 5:13
ARTE EM PRIMEIRA PESSOA
Aline Motta, Vulcanica Pokaropa, Tadáskia, Larissa de Souza e Élle de Bernardini: cinco pesquisas artísticas inseridas em um contexto testemunhal

“Oyinbo. Oyinbo… Oyinbo sou eu. Branca. Branca na Nigéria, negra no Brasil. Eu os reconheço, eles não me reconhecem. Eu me vejo neles, eles não se veem em mim. Talvez eles não saibam que ninguém ficou mais branco no Brasil por amor.” Este é o início da narrativa da obra Se o Mar Tivesse Varandas (2017), de Aline Motta, videoinstalação exposta até recentemente na Sala de Vídeo do Masp. O espectador não vê a narradora. Nessa cena, a câmera registra, da outra ponta de um barco, uma senhora nigeriana que rema se afastando da costa. “Eles” são meninos negros que cercam a embarcação e sorriem para a mulher “oyinbo” que filma o evento. Os vídeos da artista são em primeira pessoa – tanto na narração quanto no ponto de vista da câmera. Esse enquadramento subjetivo é a marca da produção de uma geração de artistas que se destaca em anos recentes na arte brasileira.

Sobre essa nova geração, Márcio Seligmann-Silva afirma que o recurso à memória e ao testemunho carrega um forte potencial de revisionismo histórico, porque os artistas constroem um novo espaço de imagem, ao mesmo tempo que desconstroem “máquinas coloniais” – como o “próprio maquinário da estética que tem servido para formatar subjetividades na modernidade” ao produzir hierarquias eurocentradas que relegam os habitantes do Sul global à outrificação subalternizante. O dispositivo estético moderno aniquilador é posto em xeque por obras que atualizam cânones brasileiros e europeus, como as pinturas de Marcela Cantuária e O Bastardo expostas em Contramemória, no Theatro Municipal de São Paulo, curadoria de Jaime Lauriano, Lilia Schwarcz e Pedro Meira, por ocasião do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922.

1º Salão Latino Americano y Caribeño de Artes – Salão das Mulheres (2022), de Marcela Cantuária

Cantuária traz para o presente o gênero da coleção particular, especialmente a obra Gabinete de Pintura de Cornelis van der Geest Durante a Visita dos Arquiduques (1628), de Willem van Haecht, substituindo todas as telas que forram o gabinete de Geest por representações de pinturas e fotografias de artistas mulheres latino-americanas. Já O Bastardo, em operação semelhante, ressignifica a icônica fotografia dos participantes da Semana de 22 substituindo a hegemonia branca e elitista do retrato original por personagens da arte preta, incluindo o autor da obra, que entra em cena no lugar antes ocupado por Oswald de Andrade.

Gabinete de Pintura de Cornelis van der Geest Durante a Visita dos Arquiduques (1628), de Willem van Haecht
Poder y Glória (2022), de Vulcanica Pokaropa

PODER Y GLÓRIA
A reescrita da história acrescida do ponto de vista subjetivo, que inclui o próprio artista e/ou sua trajetória pessoal na cena histórica, como em Aline Motta, Marcela Cantuária e O Bastardo, está no horizonte também de nomes como Tadáskia e Vulcanica Pokaropa. Duas obras atualmente expostas em galerias, uma em São Paulo, outra no Rio de Janeiro, operam inflexões em dois cânones da arte brasileira, Anna Maria Maiolino e Carlos Vergara. Vulcanica expõe n’A Gentil Carioca do Rio a fotografia Poder y Glória (2022), que retrata três travestis racializadas com os peitos à mostra, com as três palavras que compõem o título escritas cada uma no corpo de uma das retratadas. O diálogo que a artista estabelece com a fotografia de 1972 de Carlos Vergara, em que o carioca registrou três jovens negros sem camisa, com a palavra “poder” escrita em branco no corpo, durante o bloco Cacique de Ramos, no Carnaval do Rio, é autoexplicativo. Atualizando o poder preto daqueles garotos da periferia carioca, cabelos descoloridos como hoje se pratica ainda nas comunidades, Vulcanica Pokaropa clica as três amigas na Praça Roosevelt, em São Paulo, afirmando o poder preto – e a glória – que as mulheres trans conquistaram nesse ínterim de 40 anos e, sobretudo, em anos recentes.

Por um Fio, da série Fotopoemação (1976), de Anna Maria Maiolino

“Isso é o que a gente quer e merece, e essa obra demarca esse período histórico de conquistas”, afirma Pokaropa à seLecT_ceLesTe. “Quando vi a fotografia do Carlos Vergara, fiquei com vontade de fazer uma releitura com travestis pretas, pois da mesma forma que aqueles homens não podiam escrever black power no corpo em meio à ditadura, hoje não nos é permitido nos associar a religiões pentecostais e neopentecostais, por exemplo, que são religiões que demonizam a nossa identidade e os nossos corpos”, reflete a artista. Nascida e criada em ambiente católico, Vulcanica conta que os símbolos recorrentes em sua produção, como a cruz invertida, velas e a navalha – elementos presentes nas suas pinturas expostas na mostra Abre-Alas na galeria A Gentil Carioca de São Paulo –, têm para ela o sentido de ressignificar as imagens excludentes da Igreja Católica, “colocando de ponta-cabeça tudo o que me foi imposto à força”, explica. “A navalha é um símbolo de resistência travesti, principalmente por causa da Operação Tarântula, quando elas usavam a navalha para se defender, naquele contexto de HIV/Aids, porque o medo de contaminação afastava a brutalidade policial que as perseguia.”

Corda Dourada com Minha Mäe Elenice Guarani, Minha Tia Marilucia Moraes, Minha Võ Maria da Graça e Minha Tia Gracilene Guarani (2020), de Tadaskia

Tadáskia, em obra exposta na coletiva Meu Corpo: Território de Disputa, curadoria de Galciani Neves para a galeria Nara Roesler de São Paulo, revisita a icônica performance para a câmera fotográfica Por um Fio (1976), de Anna Maria Maiolino. Corda Dourada com Minha Mãe Elenice Guarani, Minha Tia Marilucia Moraes, Minha Vó Maria da Graça e Minha Tia Gracilene Guarani (2020), a obra de Tadáskia conecta a linha matriarcal de sua família por um fio dourado, que as retratadas prendem na boca, como na foto de Maiolino, em que esta se conecta à mãe e à filha por meio de um barbante, também preso pela boca das três. A fala, como linguagem, o idioma materno, é subentendida nas fotografias dessas duas artistas como o elemento de conexão mais forte entre as gerações de mulheres de uma família, o conhecimento ancestral transmitido pela oralidade e afetividade.

Poder (1972), de Carlos Vergara
Os Contemporâneos – Brasilfuturismo (2022), d’O Bastardo

ANCESTRALIDADES
Mona Hatoum, Nan Goldin, Sophie Calle e a própria Anna Maria Maiolino poderiam ser evocadas aqui como matriarcas da linhagem estético-política das artistas Marcela Cantuária, Tadáskia, Vulcanica Pokaropa e Larissa de Souza. Measures of Distance (1988) é um curta-metragem autobiográfico de Hatoum que intercala fotos que retratam a mãe da artista tomando banho, sobrepostas por imagens de cartas recebidas pela filha nos mais de dez anos de exílio em Londres – impedida de visitar a mãe desde a eclosão da Guerra Civil no Líbano, em 1975 –, com dois canais de áudio: em um deles, Mona Hatoum lê traduzindo para o inglês trechos das cartas; no outro, um diálogo íntimo e franco entre mãe e filha sobre sexualidade, machismo e sentimentos, quando, finalmente, puderam se reencontrar em Beirute, no fim dos anos 1980.

Nascida em Beirute, filha de palestinos, Hatoum afirma sobre o seu Medidas de Distância (1988), em entrevista publicada na monografia de 1997, editada pela Phaidon: “Embora o que transpareça seja uma relação muito próxima e afetiva entre mãe e filha, (o vídeo) fala também de exílio, deslocamento, desorientação e um enorme sentimento de perda, por causa da separação provocada pela guerra. Nesse trabalho, eu também estava tentando ir contra a identidade fixa que geralmente está implícita no estereótipo da mulher árabe como passiva, e da mãe como ser não sexual”. A conversa entre as duas inclui comentários sobre a indignação do pai da artista com a iniciativa de fazer fotos de sua esposa no chuveiro. Operando uma fenda no tabu que cerca o corpo materno, Hatoum não apenas provê um espaço de liberdade para a expressão da mãe, mas também sobrepõe ao peso do patriarcado uma conexão anterior e mais profunda de identidade.

Measures of Distance (1988), de Mona Hatoum

As pinturas de Larissa de Souza, artista representada pela HOA Galeria, também permeiam o campo da memória afetiva, a partir da noção de pertencimento como uma mulher negra e afro-brasileira. A religiosidade, sororidade, relação e vínculos com outras importantes personagens de sua vida, em especial sua avó e sua mãe, pautam grande parte de sua produção, que subverte a noção de que “todos os trabalhos devem ser políticos e sobre violência”, propondo outro tipo de narrativa como ato político. “Acredito que muitas das minhas criações surgem da memória pessoal e, por sua vez, coletiva. Percebo que as pessoas se sentem representadas, com suas memórias despertadas ao ver minha pintura. Pintar as memórias foi o mecanismo que tive para chegar o mais próximo dos meus antepassados. Também me fez olhar para o ancestral presente e o que ele pode ser para os meus futuros. Eu pinto a memória para não esquecer de onde vim”, afirma Souza à seLecT_ceLesTe.

Em A Ligação (2022), pintura da série inédita no Brasil Paredes Que Contam Histórias, em cartaz na sua primeira individual em Nova York, na galeria Albertz Benda, Larissa de Souza retrata uma mulher que fala ao telefone, sentada em uma cadeira. Partindo de referências visuais das platibandas, detalhe arquitetônico colonial de casas populares do sertão nordestino, e do pensamento sobre o amor e como ele se constitui, a artista extrapola o perímetro da moldura, recorrente em sua produção, para atingir outra espacialidade na tela, agora sem limites. “As histórias contadas nessa série são histórias que vi, vivi e que muitas mulheres ainda vivem dentro de suas casas. Em cada casa existe uma história sendo contada. Quando olho para uma parede descascada e suas camadas de tintas sobrepostas, penso na passagem do tempo e me pergunto o que essas paredes avistaram”, diz.

A Ligação (2022), de Larissa de Souza [Foto: Divulgação; Albertz Benda, Nova York | Los Angeles]
A artista conta que, quando iniciou a pintura A Ligação, estava tomada por um sentimento de reconciliação e as pinceladas foram contando uma história a partir disso. “Uma mulher em frente a uma janela, sentada numa cadeira no interior da casa, tem um olhar fixo para o nada, enquanto segura o telefone. Essa imagem pode ter várias histórias: uma notícia de um ente querido, uma reconciliação talvez (risos), a saudade de alguém que mora longe… Não pensar na pintura enquanto estou pintando, ao olhar o resultado, me faz refletir sobre tantas histórias que ela poderia ter. Uma das minhas reflexões é que, antigamente, receber um telefonema se tratava de um assunto muito sério, porque nem todos tinham dinheiro para pagar a conta telefônica. Acho que retratei um momento de uma ligação muito importante, esperada ou inesperada. Mistério.”

A nova série é, de certa forma, uma ampliação e aprofundamento da anterior, intitulada Retratos Perdidos (2021), em que a artista aborda a impossibilidade de acesso às imagens fotográficas e como isso fez parte do apagamento histórico da população afro-brasileira. “Muitas vezes, a memória de nossos antepassados é marcada pela foto da carteira de trabalho. Mas o desdobramento que essa questão trouxe foi pensar a fotopintura, que também é uma forma mais acessível de atingir a fotografia”, diz Larissa. As molduras ovais e o fundo predominante verde trouxeram esse símbolo para o topo de cada casa pintada na série Paredes Que Contam Histórias, com o objetivo de retratar o sentimento oculto em cada cena.

Fotografia de participantes da Semana de Arte Moderna de 1922 no Hotel Terminus, em São Paulo

PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL
Muita gente tem curiosidade sobre os bastidores do trabalho jornalístico, que tem de fato várias peculiaridades e sutilezas, como deve ser o caso de outras profissões também. Ocorre que, na presente edição de seLecT_ceLesTe, sobretudo neste caderno dedicado à virada testemunhal, adotamos o dispositivo da escrita em primeira pessoa. De modo que cabe aqui um parêntese, antes de apresentarmos a última artista desta reportagem que investiga a primeira pessoa na arte. Ela foi uma das corajosas que toparam participar da seção Fogo Cruzado, respondendo à pergunta sobre privilégio branco. Em nossa troca de e-mails, porque estávamos apurando também a presente reportagem, nos ocorreu perguntar a ela se via sua pesquisa artística inserida nesse contexto testemunhal. E propusemos que sua obra poderia ser lida como um “eu” que fala de um “nós”. A resposta dela reorientou completamente a nossa apuração e nos levou por novos caminhos e inquietações que resultaram no texto que você, leitora/leitor, tem agora diante dos olhos. Por essa razão, optamos por reproduzir a seguir a resposta como a recebemos, com edições pontuais por motivo de clareza e fluidez. Com a palavra, Élle de Bernardini:

“Todo meu trabalho é um ‘eu’ que fala de um ‘nós’. Eu sou uma mulher trans, nenhuma novidade, e minhas pesquisas sempre foram sobre a história da sexualidade em relação à história da arte. Então estou sempre olhando onde as duas histórias se cruzam e onde não se cruzam, e também onde uma se sobrepõe a e apaga a outra. A história da arte tem uma dívida histórica com as questões da transexualidade e das sexualidades outras que não a heteronormatividade e normatividade dos corpos. Nesse sentido, toda a minha produção artística parte de uma urgência pessoal de falar sobre esses outros corpos, pois eu sou um deles. Mas não se trata de falar da minha vida em específico, pois, apesar de trans, sou branca e privilegiada, e entendo que, em comparação com outres não brancos, estou, mesmo que trans, em algum lugar de privilégio, então, e também por vir da filosofia, tento levar esse discurso para o universal, partindo desse particular esquecido, invisibilizado. E, assim, (re)construindo as histórias. Então minha resposta seria sim! E todos os meus trabalhos podem ser exemplos disso”.

A artista prossegue elencando algumas séries de obras: Dance With Me (2018-2019), a performance em que Élle de Bernardini cobre o corpo inteiro com folhas de ouro e tira para dançar espectadores do museu onde realiza a ação, “fala desse corpo que não é aceito nem quando coberto de ouro, e provoca o outro a desconstruir e confrontar essa noção quando ela se apresenta materializada na sua frente. Colocando a pergunta: será que vocês não aceitam sob determinadas circunstâncias?!”, escreve. Em seguida, cita outra performance, A Imperatriz (2017-em processo), que consiste em tomar de assalto o espaço museal vestida como uma rainha, que ela descreve em seguida, como “uma série em que utilizo os meus privilégios para abrir os espaços de poder e institucionais da arte, investigando o que chamo de ‘mecanismos de aceitação e rejeição’, que são: cor da pele, aparência europeia, classe social, comportamento normativo. E que investiga como as instituições recebem essa figura, mesmo ela sendo transexual, ao mesmo tempo que fala da história da humanidade, apontando para o fato de nunca ter havido uma soberana trans em nenhuma cultura no mundo todo”.

Moiras (2022), de Élle de Bernardini; abaixo, a artista realizando a performance Dance With Me no Museu de Arte do Rio, em 2018 [Foto: Cortesia da artista e galerias Portas Vilaseca e Marli Matsumoto]
Sobre Peludinhos (2022), ela diz: “É outra série de trabalhos que fala dos fetiches dos nossos corpos, de como a sociedade lida com os nossos corpos e os fetichiza. Nesse caso, eu transfiro o fetiche que nós recebemos para o objeto, fazendo a inversão sujeito-objeto, e sinalizando que o que deve ser fetichizado são os objetos e não os sujeitos e suas narrativas”.
A obra Genital Panic II (2015) “é uma fotoperformance d’eu sentada usando um jeans rasgado com meu escroto para fora em contraste com meu rosto feminino, apontando para o que se esconde e se mostra por meio das aparências e da questão da passabilidade do meu corpo na sociedade – que não o lê num primeiro momento como um corpo trans, pois ele foge à norma do que a sociedade está acostumada a ver como o corpo trans e travesti, justamente pela questão do estereótipo e da fetichização desses corpos entendidos somente como corpos do prazer e da prostituição”.

Élle de Bernardini continua: “A série dos ‘cortes’ nas telas é uma série baseada no livro A Arte Queer do Fracasso, em que o corte é pensado como o elemento central da feminilidade, seja para produzi-la (cirurgias), seja para negá-la (automutilação). Uma das obras se chama A Professora de Piano (2022) e alude ao livro (de Elfriede Jelinek) em que uma mulher automutila a vagina na tentativa de destruir essa mulheridade, essa feminilidade esperada pela sociedade, pois a personagem é severa, fria e rígida, longe do padrão feminino esperado”.

Também é de 2022, “a série Ensaio para Encontro do Rosa com o Azul, em que estou preocupada com a necessidade imposta pelo sistema, de sempre falar sobre questões de sexualidade e gênero, justamente tendo como centro a identidade pessoal para apresentar o debate. Será que o debate não pode ser apresentado em termos formais, por meio do uso de cores e formas geométricas, como fizeram os neoconcretistas? Será que, como artista trans, para falar sobre transexualidade e sobre a minha vida, preciso recorrer sempre à minha imagem? E será que isso é necessário, uma vez que a arte me oferta diversos mecanismos simbólicos para tratar dos assuntos sem necessariamente estar um rosto, um corpo, uma imagem pictórica presente? Será que arte sobre identidade é sempre em primeira pessoa, sempre figurativa, sempre com corpos à mostra? Uma vez que arte no seu mais primórdio entendimento é sobre o campo do simbólico”.

São muitos os trabalhos de Élle de Bernardini, todos estão conectados entre si. “Cada série, um argumento, uma questão desse caleidoscópio que é o debate sobre gênero e sexualidade. Não existe apenas um ponto, uma questão, mas várias, como algumas que mencionei acima: feminilidade, fetichização, relação sujeito-objeto, passabilidade, biopoder. A série das esculturas moles, por exemplo, em que cada obra recebe o nome de uma figura transexual importante para a nossa história. E nessas obras eu faço justamente o que me proponho na série Ensaio para Encontro do Rosa com o Azul: não trago a imagem de seus rostos e corpos, mas uma interpretação de suas personalidades materializada em formas de náilon, areia e outros objetos. É uma série que fiz com várias personagens: Claudia Wonder, Isabelita dos Patins, Luana Muniz… Porque temos de atentar para uma questão muito importante e perigosa, estamos no mercado da arte, essas obras são comercializadas, vendidas, compradas. E temos de ter um cuidado redobrado para não objetificar essas pessoas. Podemos estar cheias de boas intenções, mas, quando a obra é vendida, o dinheiro é meu e da galeria, não dessas pessoas ‘homenageadas’, ou melhor, resgatadas, que em sua maioria tiveram vidas sofridas e muito pobres. Quando digo que temos de resgatar essas figuras, devemos torná-las sujeito dentro dessa (re)construção da história. É quase um paradoxo, pois produzimos objetos. Mas a série Peludinhos tenta resolver esse problema. Ali o objeto se torna sujeito, e por ser objeto pode e é objetificado, mas o que está sendo objetificado são as questões sobre identidade e sexualidade, não as pessoas. Podemos ter boas intenções, mas acabar errando por objetificar os sujeitos que queremos enaltecer e resgatar, e torná-los mercadoria de compra e venda de uma classe dominante, rica, que é a classe que compra obras de arte.”

Uma semana se passou antes que conseguíssemos articular uma palavra sequer em resposta à resposta de Élle. Ela nos pôs a pensar na abordagem e no escopo que essa reportagem poderia ter, no impacto que um viés acarreta na mediação entre arte e público ou entre revista de arte e leitores. Ela nos fez rever a pauta, rever os temas contemplados pela matéria, rever os artistes, o conjunto de obras que considerávamos mobilizar para construir essa narrativa sobre arte em primeira pessoa. Mudou tudo, e aqui podemos compartilhar outro elemento fulcral dos bastidores do trabalho jornalístico: quando você sai da Redação com uma pauta (um assunto, uma lista de possíveis entrevistados, uma ideia de abordagem e algumas hipóteses acerca do tema) e retorna com a reportagem que você tinha imaginado fazer, você fez alguma coisa muito errada.