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Apresentação: Ruku, individual de Jaider Esbell na Galeria Millan (Foto: Paula Alzugaray)
Postado em 22/06/2021 - 11:25
Arte indígena. Como expor?
Museus e galerias reveêm seus modos expositivos na apresentação de arte indígena

Na entrevista Pensamento Descolonial: poéticas ameríndias, o antropólogo Pedro Cesarino nos alerta para a diferença entre objetos indígenas tradicionais e arte indígena contemporânea. Em geral, os objetos produzidos pelos diferentes povos indígenas têm função prática ou simbólica e não são destinados à simples exibição. Já a produção indígena contemporânea, ainda que se valha de questões ancestrais, é feita por indivíduos que têm liberdade de se inserir nas dinâmicas e linguagens do mundo, digamos, ocidental, com adesão ou pensamento crítico. Se os legados da civilização indígena têm muito a oferecer para o mundo atualmente em colapso, também fica a pergunta sobre como não reproduzir a lógica colonial ao apresentar essa produção nos contextos institucionais.

“Os povos indígenas entendem guardar e preservar como aprisionamentos. O museu guarda um objeto, ele é colocado em exposição e descrito em uma legenda. Às vezes é puramente descritivo em termos materiais, é técnico, mas tem coisas que estão no objeto que ultrapassam sua forma”, diz o artista Denilson Baniwa à seLecT. “Os cestos baniwa são objetos que guardam coisas, mas também representam um conhecimento ancestral que diz de qual povo ou família ele é e que história conta. É um objeto e um símbolo de uma cosmogonia, que narra o início do mundo ou de um clã. Não é possível descrever em uma legenda.”

Baniwa alerta também para objetos que são feitos para ocasiões efêmeras e que devem ser destruídos após o uso, já que podem trazer má sorte se ultrapassarem seu ciclo de vida. Há ainda aqueles que não podem ser vistos por determinados grupos sociais, pois atendem a demandas específicas, como a entrada na puberdade, a manutenção da fertilidade ou da força.

“A própria ideia de algo feito para ser exposto já é contraditória com os usos funcionais e simbólicos desses objetos em suas comunidades, pois, para o indígena, tudo é arte, mas não no sentido de exposição”, continua o artista. “De maneira geral, o que o museu faz com as peças indígenas é igual o que Picasso fez com as máscaras africanas: É só a estética, sem o contexto e a função do objeto.”

Os grafismos indígenas são um exemplo da apresentação muitas vezes descontextualizada dessas peças. Para os indígenas, podem ser usados para proteção, para marcar um momento de transformação ou ainda para representar elementos da vida, como os animais e o cotidiano. De caráter coletivo e ancestral, são aplicados com pigmentos naturais sobre a pele ou cerâmicas, ou tramados em cestarias e tecidos. Ao serem mostrados no museu, não deveriam ser reduzidos a experimentações puramente formais.

Ao incorporar esses padrões, que são compartilhados por todos em suas produções individuais, os artistas indígenas contemporâneos também enfrentam novos dilemas. Em entrevista veiculada nos programas públicos da 34ª Bienal de São Paulo, o artista Jaider Esbell, de origem Makuxi, aponta que alguns artistas já foram criticados em suas comunidades por se apropriarem de um símbolo coletivo em sua produção autoral.

Vista da exposição Véxoa – Nós Sabemos. Panelas do povo Yudjá, vídeo de Olinda Muniz Tupinambá e máscaras e roupas do povo Waudja (Foto: Levi Fanan / cortesia Pinacoteca)

PALETA PRÓPRIA
Para evitar esse tipo de conflito, a artista Sãnipã, de origem Apurinã e Kamadeni (etnias estabelecidas nas margens do rio Purus), pede autorização para sua comunidade antes de aplicar as padronagens em suas pinturas e usa uma paleta própria, que não interfere nos sentidos simbólicos do uso do vermelho e preto tradicionais. “Eu trabalho com grafismos indígenas, quero representar isso porque os kamadeni já são poucos e a única historiadora que pesquisava sobre eles, Leonila Muniz de Souza Apurinã, ou Tuboá em sua língua natal, este ano se foi”, diz. “Posso não estar mais viva, mas a minha arte, esses grafismos e esses símbolos, vão seguir contando e compartilhando essa história.”

Sãnipã estudou técnicas de pintura com tinta acrílica no Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia, que atua há mais de 15 anos em Manaus com programas de formação a longo prazo (o curso tem duração de quatro anos) para os indígenas interessados nesse campo. Nascido no Piauí, o maestro Dirson Costa se estabeleceu em Manaus nos anos 1960, onde desenvolveu sua carreira. Inicialmente, a ideia do instituto era fomentar música, pela formação do idealizador, mas a família, após sua morte, ampliou para diversos segmentos, como artes visuais e teatro. Segundo Carlysson Sena, fundador da Manaus Amazonas Galeria de Arte, a capital amazonense foi escolhida como sede do instituto pela carência de políticas públicas na região e alta presença de indígenas desaldeados nas periferias da cidade. “A proposta do instituto é formar, fomentar e também colecionar arte indígena”, diz o galerista.

A Manaus Amazonas, que representa Sãnipã e outros seis artistas indígenas e não indígenas, mas com interesses visuais e simbólicos em comum, surgiu como um desdobramento do instituto, onde ficou encubada no início, em 2013. “Comecei a vender as obras desses artistas e percebi a possibilidade de fomentá-los pela comercialização de seus trabalhos. Hoje a galeria tem sustentabilidade econômica e nos tornamos uma empresa amiga do instituto, então invertemos o processo.”

Em paralelo, o instituto também está criando o Museu de Arte e Imaginário da Amazônia (MAIA), que está formalizado no Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), em fase de implantação, e já conta com mais de 2.500 peças em seu acervo.

Junto aos artistas Dhiani Pa’saro (Wanano), Duhigó (Tukano) e Yúpuri (Tukano), Sãnipã participou, em 2019, da exposição Nipetirã (todos, em Tukano), na Casa do Largo, em Manaus, com curadoria de Cristóvão Coutinho. “Alguns dos artistas já tem uma ansiedade comercial, mas na exposição quis que abandonassem isso e sugeri que cada um ocupasse uma parede inteira, lidando com o espaço”, conta o curador. “Eles usam marchetaria e tinta acrílica sobre tela, com os motivos de suas aldeias e clãs, mas nunca tinham feito trabalhos nessas dimensões, então foi um espaço de experimentação.” A mostra refletia sobre os 350 anos de Manaus – única capital brasileira com nome indígena – e sobre a baixa presença dessas comunidades nas discussões da cidade, sendo relegados às periferias.

Outras iniciativas recentes de exibição de arte indígena no contexto institucional são M’Bai, mostra regional – vandalizada em 2019 – que comemora a presença da aldeia M’Boy em Embu das Artes, e Véxoa: Nós Sabemos, em cartaz entre outubro de 2020 e março de 2021, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria de Naine Terena.

“O próximo passo que as instituições precisam dar é realizar individuais desses artistas e inclui-los em exposições que não sejam só destinadas a artistas indígenas, ocupando os espaços de um jeito não categorizado”, diz Naine Terena à seLecT. “Algumas instituições estão adquirindo obras de indígenas, o que reconfigura a história da arte do Brasil. A pesquisa também faz a instituição desmistificar as expectativas do tipo de produção indígena contemporânea. A gente abriu essa porta de que os indígenas podem falar sobre o que quiserem no mundo em que estão vivendo”, conclui.

Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), de Denilson Baniwa, na mostra Véxoa, na Pina (Foto: Levi Fanan / cortesia Pinacoteca)

PLANTAR NO ASFALTO
Exposições focadas em artistas indígenas – assim como de artistas negros, mulheres etc. – também evocam ambiguidades: de um lado são necessárias por expor a ausência desses grupos nas instituições e marcar sua presença, por outro, muitas vezes acabam ofuscando as singularidades de suas produções, resumidas à leitura a partir de uma ótica identitária. No caso das questões indígenas, as cosmovisões das diferentes etnias de onde vêm esses artistas parecem não ser aprofundadas em razão da categorização. Se reduzir a produção indígena contemporânea ao interesse antropológico acaba reiterando uma posição colonizadora, também não se pode ignorar as diferentes cosmovisões que estão na base da produção desses artistas, com o risco de apenas submeter a visualidade indígena às técnicas ocidentais. Como então tornar pública a arte indígena nos contextos do museu, da galeria ou mesmo da cidade?

Na exposição Vento, primeira de uma série da 34ª Bienal de São Paulo, os cantos Tikmũ’ũn ou Maxakali – de povos que ocupavam regiões entre a Bahia, Minas Gerais e o Espírito Santo e foram historicamente oprimidos, quase extintos nos anos 1940 – entoavam na arquitetura branca de Oscar Niemeyer através de caixas de som. Originalmente, os cantos têm um aspecto de cura e, na exposição, uma vitrine com traduções e notas, um breve texto introdutório e publicações feitas por pesquisadores e pajés contextualizavam esse sentido primordial. Segundo o curador Paulo Miyada, em depoimento em um dos programas públicos da instituição, a vitrine explicitava o contraste entre entoar os cantos coletivamente em uma aldeia e apresentá-los em uma exposição de arte. Tratava-se de uma tradução parcial que buscava tornar pública a cosmogonia indígena nesse contexto, reconhecendo os limites epistemológicos, simbólicos e rituais que uma exposição implica.

O artista Jaider Esbell, que participa desta edição da Bienal, também tem encontrado maneiras de ecoar as vozes e saberes indígenas a partir do contato crítico com os modos de pensar, fazer e compartilhar ocidentais. “Os Makuxi praticam arte dentro de seu sistema próprio sem precisar dessa palavra arte”, diz o artista à seLecT. “Nossas práticas e saberes estão aí desde o princípio, essa experiência está aplicada na praticidade da vida. Arte é um lugar de encontrar e analisar, não um lugar de estacionar, é esse o elemento de conexão e atravessamento de mundos. A gente está se apropriando dessa palavra para ampliar nossas ferramentas de alcance e dizer que as coisas são maiores.”

vista do núcleo expositivo de Vento, da 34a Bienal de São Paulo (Foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo)

Esbell, que entre fevereiro e março apresentou uma individual na Galeria Millan, em São Paulo, tem diversas frentes de atuação que lhe permitem um exercício de sua singularidade enquanto artista, ao mesmo tempo em que fomenta o debate em suas comunidades. Em 2013, depois do Encontro dos Povos – um evento que reunia as comunidades indígenas de Roraima para pensar sobre sua coletividade e as transformações que vinham vivendo – fundou a Galeria Jaider Esbell. O artista também defende a ideia de uma arte indígena contemporânea que faça contraponto à arte com parâmetros europeus enquanto categoria universal.

“Minha última exposição foi uma parceria da Galeria Jaider Esbell com a Millan, mas não me interessa que os artistas indígenas sejam representados por essas galerias dominantes nos formatos já dados, mas que as galerias coloquem suas listas de contatos a serviço dos artistas indígenas, fazendo pontes entre esses universos”, diz o artista e galerista.

A individual Apresentação: Ruku foi uma mostra em homenagem à árvore-pajé jenipapo, de onde se extrai pigmento para pintura corporal e em tecidos. Entre raladores, pinturas e desenhos, a mostra reuniu no contexto expositivo, tecidos pintados e suspensos pelo espaço que dinamizavam as convenções da galeria, onde normalmente as pinturas estão nas paredes à altura do olhar.

Como Esbell, Denilson Baniwa também tem criado ações e trabalhos que não apenas exibem a visualidade indígena, mas propõem um outro modo de operar dentro das instituições a partir de sua experiência e história.

Durante a 33ª Bienal de São Paulo, Baniwa “invadiu” a instituição para realizar uma versão de sua performance Pajé-Onça (2018). Nesta edição, a artista e curadora Sofia Borges apresentou uma série de esculturas, pinturas e fotografias dos mais variados contextos – de imagens de esculturas gregas a obras do Museu do Inconsciente e imagens do povo Selk’nam, capturadas pelo jesuíta Martin Gusinde – com o intuito de criar uma colagem trágica, como diz em seu texto curatorial. Em relação às referências indígenas, no entanto, de acordo com a antropóloga Ilana Goldstein, no catálogo de Véxoa, as imagens não tinham identificação correta e não mencionavam o fato de que os Selk’nam foram exterminados – o que se confirma com a legenda puramente técnica da lista de obras da Bienal. Em resposta à curadoria, Baniwa entrou na instituição com uma máscara de onça, lendo e rasgando as páginas do livro Uma Breve História da Arte enquanto se deslocava pelo espaço expositivo. “A performance começou no Monumento às Bandeiras e eu fui descendo. Os seguranças da Bienal ficaram em choque porque não sabiam se era arte ou vandalismo. Não fui convidado, invadi a instituição e eles não sabiam como reagir”, diz.

Já em Véxoa, na Pinacoteca, Baniwa apresentou Nada que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), trabalho que está exposto logo na entrada da instituição. Escapando da hegemonia da visualidade – e dos modos de expor com heranças moderna e etnográfica –, o trabalho consistia em um jardim, que necessitava de cultivo e cuidado. As espécies plantadas ali eram curativas para o corpo, para o espírito ou para a subjetividade. Entre o dentro e o fora do prédio, a obra também impedia o funcionamento do estacionamento, em uma crítica implícita ao automóvel e seus usos individuais. A ação de plantar nas frestas dos paralelepípedos, por si só, já era altamente polissêmica e poética. “Hilo é fresta, a cicatriz da semente por onde brotam as plantas”, diz o artista. “Somos essas plantas tentando sobreviver nesse solo árido que é o Brasil e o próprio sistema de arte.” Sem recorrer a imagens dos Baniwa, Denilson evoca a ética e a experiência de seu povo, envolvendo a instituição para a criação de uma temporalidade própria, para além da pura exposição de objetos. Retoma as práticas de plantio dos povos indígenas e introduz vida em espaços destinados à contemplação, refazendo o sentido de movimento, presente nas pinturas e objetos indígenas ancestrais.

Intervenção de Denilson Baniwa sobre exposição de Sofia Borges para a 33a Bienal de São Paulo, em 2018 (Foto: José Moreau)