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detalhe de admirable vortex arising fearlessly (2015), no Sesc Avenida Paulista (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 03/07/2023 - 4:56
ARTIFÍCIOS VORAZES ALTAMENTE FESTIVOS
Máscara, labirinto e cor no coletivo híbrido assume vivid astro focus são dispositivos de dissolução do espectador em obra de arte total

Esta é a história de um gato guerreiro que se desdobra em duas máscaras, que depois são plasmadas em uma colagem digital, que por sua vez é recortada e remixada na forma de papel de parede, cujo fragmento será novamente ampliado e remixado até o infinito e além, em pinturas, esculturas, decalques, tapeçarias, cortinas, vestimentas etc.

A história começa nas ruínas de uma construção onde, no século 4º a.C., existiram quatro templos romanos. Em um deles, o imperador Julius Caesar teria sido assassinado. Esse sítio arqueológico escavado no subterrâneo do Largo di Torre Argentina, em Roma, foi pela primeira vez aberto ao público na noite de 4 de julho de 2008, no vernissage de antonella varicella arabella fiorella (2008), ocupação de assume vivid astro focus (avaf) no projeto de arte pública Enel Contemporânea, com curadoria de Francesco Bonami.

Até pouco antes daquela noite, as ruínas eram conhecidas na cidade como um santuário de gatos. Quase um simulacro da infestada Ladeira da Memória, na São Paulo dos anos 1970 e 80. Entre os foliões da instalação-festa de avaf estava a jornalista Cathryn Drake, que escreveu para a ArtForum um relato de sua experiência, dizendo que “nenhum gato real foi visto naquela noite”. Em seu lugar, drags, travestis e miríades de jovens da alta burguesia se banqueteavam em torno de uma mesa que tinha nada menos que a extensão da praça, numa curiosa remissão ao histórico comportamento orgiástico da sociedade romana.

Todos vestiam máscaras do gato guerreiro, circulando entre colunas, altares sacrificiais, projeções, balões, bandeiras, néons e um labirinto de imagens montadas em tapumes de madeira de demolição, que formavam a instalação em estridente processo acumulativo. Basicamente, o público desta e das outras instalações que viriam a brotar em várias partes do planeta é formado por uma espécie humana hipercontemporânea capaz de absorver e digerir doses abissais de informação em alta velocidade.

O comportamento orgiástico é uma condição sine qua non da poética de avaf e a máscara é um elemento inaugural de suas ações. Já no começo dos anos 2000, quando surge o coletivo – formado por dois membros fixos e outros variáveis –, a máscara era usada para disfarçar a identidade de seus integrantes, evocando a atitude moderna de problematizar a função da autoria na arte, ou replicando a prática surrealista de formação de comunidades subterrâneas, secretas e clandestinas.

Com o tempo, a estratégia do disfarce foi ficando anacrônica e Eli Sudbrack e Christophe Hamaide-Pierson revelaram-se como membros fixos do coletivo. Nos últimos cinco anos, os dois artistas passaram a trabalhar independentemente sob o mesmo pseudônimo, embora ainda juntem forças em projetos específicos. A máscara é um denominador comum. O arquivo digital do gato guerreiro foi a gênese de todo um processo criativo, na medida em que se decompôs, remixou e se multiplicou em um novo corpo de conceitos. “Na verdade, a imagem é como um sítio arqueológico digital que avaf está vasculhando em busca de novas descobertas”, anotou o crítico e curador Glenn Adamson na Art in America.

detalhe de admirable vortex arising fearlessly (2015), no Sesc Avenida Paulista (Foto: Cortesia do artista)
O comportamento orgiástico é uma condição sine qua non da poética de avaf e a máscara é um elemento inaugural de suas ações

O PULO DO GATO
O procedimento que se repete como padrão na poética de avaf é o do zoom, que leva ao que Adamson bem definiu como uma “estética maximalista”. A imagem produzida pela ampliação de uma pequena área do desenho digital do gato guerreiro gerou o padrão do primeiro papel de parede – linguagem que começou a ser explorada como uma forma de ocupação de espaços expositivos e instalações imersivas –, que, por sua vez, é a origem das pinturas atuais.

“Não trabalho com padrões, mas com paisagens”, diz Eli Sudbrack à seLecT_ceLesTe, referindo-se à representação paisagística em seus papéis de parede que, diferentemente do tradicional formato de padronagem repetida, exige do espectador um tempo de contemplação similar ao da pintura. “Cor não é superfície, é profundidade.” Não que precisasse fazer sentido, mas faz. Afinal, cada metro quadrado dos ambientes instalativos e das pinturas em grande escala de avaf são fruto de um aprofundamento imersivo no detalhe.

Sad Cat (2008), máscara do gato guerreiro, de avaf (Foto: Cortesia do artista)

“A cor é uma forma de comunicação e energização”, continua o artista. A ampliação de fragmentos de desenhos realizados na tela do computador gerou uma paleta de cores luminescentes, atravessadas pela luz, que frequentemente produzem hiperestímulos sensoriais no espectador, provocando sensações como festividade, folia, excitação, prazer, êxtase. Até o fechamento desta edição havia 1.264 tons de cores hiperartificiais no pantone avaf. A lista cresce todos os dias.

“A cor é uma forma de comunicação e energização”
Tom Cruising #2 (2005), na mostra alterações vividas absolutamente fantasiosas, no Sesc Avenida Paulista (Foto: Cortesia do artista)

À NOITE TODO GATO É PARDO

Os princípios da multiplicação de tons e da expansão de imagens aplicam-se a todas as atividades do coletivo. A começar pelo pseudônimo, acrônimo formado pelas quatro iniciais a-v-a-f, que formam um infinito de palavras e frases (ou assinaturas, como eles chamam) em vários idiomas. Contempla-se uma mostra desse arquivo aberto e mutável, que pode ser lido como um dispositivo poético, no videopoema always vomit after formalities (2012). Outra coleção de assinaturas intitula muitas das obras expostas em alterações vividas absolutamente fantasiosas, mostra panorâmica com cerca de 30 papéis de parede produzidos nos últimos 20 anos, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, até 30/7.

Entre eles, antes vulgar agora fino (2011); artistiquement voué au feu (2010); admirable vórtex arising fearlessly (2015); axiomatic verve across fenestration, contagious (2015); altered visions accelerate frequency (2016); ayahuasca visual alucinante feérica (2018); acebolada vadia anabolizada fascinante (2014); abra vana alucinete fogo #1 (2006); a visually acceptable future (2011); adderall valium ativan focalin #1 e #2 (2014).

Em uma arquitetura labiríntica (outro elemento recorrente do trabalho, sendo o labirinto lugar de encontro entre o passado e o futuro), as paredes cobertas de papéis dividem o espaço com videoprojeções (espécies de versões animadas dos papéis), salas de peep show, com vídeos que podem ser assistidos através de buracos na parede, e obras de autoria de colaboradores e assistentes.

Com o intuito de criar uma gesamtkunstwerk (obra de arte total), avaf incorpora o espectador no funcionamento da obra, como peça central do mecanismo, promovendo estímulos vários para sua completa integração e dissolução no todo espacial. Entre eles estão a máscara, artifício milenar de incorporação da persona, e a cor, considerada pelo artista a grande força unificadora.

Dance, Dance, Dance (One More Time) (2023), acrílica sobre chapa duplex de papel kraft ondulado (Foto: Cortesia do artista)