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Para Lembrar dos Tempos Sem Cerca: Mandioca e Inhame (2020), da artista mineira Walla Capelobo (Foto: Reprodução / Cortesia da artista)
Postado em 28/09/2023 - 4:34
Artistas da terra
Nos trabalhos de Land Art criados por artistas feministas, corpo e terra estão ligados de forma mais urgente

“Eu uso a terra como tela e minha alma como instrumento”
(Ana Mendieta)

Sobre um solo plano e arenoso, a artista Walla Capelobo risca a terra com uma pedra a partir de uma muda de inhame. O traço reproduz a forma do ramo, depois se transforma em uma espiral, intercepta um ramo de mandioca e prossegue para então refazer o caminho, reencontrando o inhame. Com movimentos nas direções centrífuga e centrípeta, o sulco fica mais profundo e a espiral, mais visível. A performance registrada em vídeo se intitula Para Lembrar dos Tempos sem Cerca: Mandioca e Inhame (2020). 

A mandioca é cultivada há milênios por povos ameríndios. O inhame, por sua vez, cujo cultivo também data de milênios na África, na Ásia e na Oceania, foi introduzido no Brasil durante a colonização. A forma traçada na terra por Capelobo corresponde a inúmeros exemplos de arte rupestre e, ainda que não conheçamos o seu significado, sabemos que fazia parte de “um meio de comunicação na sociedade deles”, conforme a arqueóloga Niède Guidon, “um código que eles tinham para passar conhecimento de uma geração à outra”. 

A espiral pode estar associada a certas características de conchas, plantas e animais, assim como a conhecimentos matemáticos e astronômicos que diversos povos pré-históricos detinham e partilhavam. Os sentidos misteriosos das espirais rupestres são ressignificados pela artista nascida em Congonhas (MG). As interseções da linha com as plantas ligam culturas indígenas ameríndias e afrodiaspóricas em resistência conjunta contra a continuada violência da colonização. O corpo da artista faz parte do trabalho. Walla Capelobo se apresenta como “afrotransfeminista e anticolonial”. A conexão entre América e África, então, brota do corpo que executa o gesto. A deportação brutal da diáspora, o processo da transição de gênero, o movimento de “voltar e apanhar o que ficou para trás” designado pelas espirais da adinkra Sankofa, são devires materializados nos gestos, ora suaves, ora exasperados. O movimento que religa o inhame africano à mandioca ameríndia é consistente com a espiral rupestre, como se fosse possível ao mesmo tempo lembrar e prefigurar a coexistência entre diversas formas sociais e as fluidas transições entre elas, que as linhas perfazem.

Tornar-se mulher faz parte desse movimento em busca de formas de vida menos aprisionadas, uma vez que na maioria dos povos indígenas são as mulheres que cultivam a terra. O traço brota do corpo, mas se trata do corpo que este traço exige. Um corpo que é também o território onde se travam lutas, onde memórias são inscritas, onde se semeia.

La Vivificación de la Carne: el Laberinto de Venus Series (1982), de Ana Mendieta [Foto: cortesia Galerie Lelong & Co./Christie's]
O TRAÇO BROTA DO CORPO, MAS SE TRATA DO CORPO QUE ESTE TRAÇO EXIGE. UM CORPO QUE É TAMBÉM O TERRITÓRIO ONDE SE TRAVAM LUTAS, ONDE MEMÓRIAS SÃO INSCRITAS, ONDE SE SEMEIA
Sem Título, da série Silueta (1979), de Ana Mendieta, obra atualmente exposta no Sesc Pompeia, em São Paulo [Foto: cortesia Galerie Lelong & Co. / © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC / Artist Rights Society, New York / AUTVIS]

TERRITÓRIO-CORPO
O corpo da mulher é um “território-corpo-terra”, como diz diz Lorena Cabnal, feminista comunitária xinka-maya. A ativista afirma que a disjunção corpo/terra é uma dicotomia colonialista, de modo que não faz sentido defender o território-terra sem defender o território-corpo. Se a categoria indígena guatemalteca caracteriza formas de luta política, então pode ser útil também para caracterizar certos trabalhos de land art criados por artistas feministas, uma vez que, neles, corpo e terra estão ligados de modo mais urgente do que em paradigmas da land art, como, por exemplo, Spiral Jetty (1970), de Robert Smithson, o “píer espiral”.

Com sua companheira Nancy Holt, autora dos Sun Tunnels (1976), que, assim como o monumento neolítico de Stonehenge, emolduram o sol nos solstícios, Smithson se interessava pelas intervenções dos povos pré-históricos sobre a paisagem, de modo que sua espiral também pode ser vista em diálogo com as espirais rupestres. Mas as milhares de toneladas de terra, pedra e cristais de sal que compõem o trabalho no lago salgado de Utah (EUA) foram transportadas e instaladas sob a supervisão do artista e não por ele mesmo. Isso não desqualifica o trabalho de arte, mas evidencia uma diferença importante. A artista afrobrasileira pratica uma ação que não existe sem o corpo dela. Seu aspecto material é precário porque é vivo e ao vivo. O sentido antigo da palavra “precário”, por sinal, é “relativo ao agricultor”. Posteriormente surgiram usos como “instável” e “delicado”.

A precariedade do trabalho de Walla Capelobo em comparação com a solidez do trabalho de Robert Smithson revelaria algo sobre uma land art feminista? A categoria decolonial do “território-corpo-terra” seria esclarecedora nesse contexto? Pouco depois da trágica morte de Smithson em 1973 (o artista sofreu um acidente aéreo enquanto fotografava um trabalho), a jovem professora do ensino médio em Iowa, Ana Mendieta, inicia a série Siluetas. Segundo a artista, residente nos EUA desde os 14 anos, seus trabalhos são “esculturas terra-corpo”. 

Em 1975, no México, Mendieta começa a criar marcas do seu corpo no chão com musgo, troncos, pedras, galhos, folhas e flores, por vezes incendiados com pólvora, contornados com fogos de artifício, ou encharcados com tinta vermelha. A silhueta, desenho obtido pela sombra, aparece com os braços sobre a cabeça, com braços esticados e pernas juntas, ou flutuando sobre a água, sempre em diálogo com a paisagem para restabelecer laços com o universo em “regresso à fonte materna”, ao ventre do qual a artista, em suas palavras, sentia-se “expelida” por ter sido arrancada de sua terra natal. 

Usar a terra como tela e a alma como instrumento não é apenas um modo de se contrapor ao ambiente controlado das galerias, aos quais a land art sempre retorna em forma de registros, vestígios ou desdobramentos. É também uma recusa do conceito de progresso fundado na técnica. Com seus trabalhos rústicos e vivos, as artistas da terra afirmam que o conceito de progresso deve ser fundado na catástrofe e que a arte pode realizar uma “técnica emancipada” ou “segunda técnica”, segundo formulação de Walter Benjamin. 

Em 1978, Ana Mendieta muda-se para Nova York e as Siluetas dão lugar a figuras de divindades femininas de areia e argila. Em 1981, em visita a Cuba, a artista encontra no calcário das florestas montanhosas de Jaruco o material perfeito para o seu trabalho. Conforme Petra Barreras del Rio, Ana Mendieta criou “imagens inspiradas por representações pré-históricas de fertilidade e por símbolos pré-colombianos”, sendo todos os títulos desses trabalhos, palavras da língua dos índios Taíno de Cuba. Uma vez que a comparação entre Walla Capelobo e Robert Smithson foi sugerida pela forma espiral, é notável que a artista cubana, que também faleceu tragicamente (Ana Mendieta caiu de 34 andares do apartamento onde vivia com Carl Andre, que foi julgado por homicídio e inocentado por falta de provas), tenha se interessado pela mesma forma em O Labirinto da Vida (1982) e Arquétipos da Terra (1984).

USAR A TERRA COMO TELA E A ALMA COMO INSTRUMENTO NÃO É APENAS UM MODO DE SE CONTRAPOR AO AMBIENTE CONTROLADO DAS GALERIAS, AOS QUAIS A LAND ART SEMPRE RETORNA. É TAMBÉM UMA RECUSA DO CONCEITO DE PROGRESSO FUNDADO NA TÉCNICA
Sun Tunnels, (1973-76), de Nancy Holt, intervenção no Great Basin Desert, Utah [Foto: ZCZ Films / James Fox / cortesia Dia Art Foundation / © Holt/Smithson Foundation and Dia Art Foundation/ VAGA at Artists Rights Society (ARS), New York]
Spiral Jetty (1970), de Robert Smithson [Foto: © Holt/Smithson Foundation and Dia Art Foundation / Artists Rights Society, New York]
Ser Sutura (2020), de Millena Lízia [Foto: Renata Figueiredo/ cortesia da artista]

A terra que as artistas cultivam não é uma categoria metafísica, mas pode abrir caminho para uma “fuga para dentro” quando o trabalho faz “perder o chão”, conforme depoimento de Walla Capelobo e Millena Lízia sobre o grupo de estudos Composteiras, que promoveu encontros e cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage nos anos de 2021 e 2022. Em Ser Sutura (2020), Lízia costura com um fio de cabelo sobre papel vegetal. O desenho da costura se emaranha aos contornos azuis da evaporação de água sobre o papel. A artista chama de “experiências epidérmicas” um amplo “conjunto de fricções” que seu corpo produz no mundo. 

A epiderme é uma parte da pele, o maior órgão do corpo humano, responsável pelas trocas com o ambiente. Haveria, a partir dos trabalhos e textos de Millena Lízia, uma profunda semelhança entre terra e corpo, uma vez que a pele está para o corpo assim como a terra está para a Terra (o planeta). Seus trabalhos são e não são performances, conforme pondera em sua dissertação de mestrado. A pele negra feminina cria situações de enfrentamento ao racismo e ao sexismo por meio de interações com o mundo e os outros. Na experiência epidérmica de Ser Sutura, o trabalho de arte é o vestígio do encontro entre duas superfícies que respiram, pele e terra. 

BOMBAS DE SEMENTES
Nesse ambiente introspectivo, germina a experiência relacional do projeto Composteiras. Em encontros online e presenciais, inspiradas e informadas por ideias da ativista e pensadora Beatriz Nascimento, sob as ameaças da pandemia e do bolsonarismo, Walla Capelobo e Millena Lízia buscaram “fortalecer redes de proteção, de acolhimento e o aprendizado de ferramentas que dessem torque nas teimosias do bem-viver”. Entre os frutos do projeto, as artistas destacam a oficina de bombas de sementes ministrada por Lohana Montelo, artista da terra envolvida com a construção de agroflorestas. Em Plantio de Liberdade / Ferramenta de Artista (2022), cultiva um “canteiro agroecológico nas dimensões da silhueta” de seu corpo, reformulando o legado de Ana Mendieta.

A escritora Ursula K. Le Guin propõe uma conexão entre a narrativa, a bolsa e o corpo feminino: “narrativa concebida como bolsa/ventre/casa transportadora”. No atual estado de guerra entre o “território-corpo-terra” e a exploração desenfreada dos recursos humanos e naturais, a bolsa-bomba apresentada por Montelo para o projeto Composteiras potencializa um gesto tão combativo quanto afetivo, que sincroniza a urgência do protesto com a duração do crescimento das plantas, tempos do corpo e da terra. A bolsa como “primeiro instrumento criado pela humanidade”, conforme Mônica Coster, também é a referência de Terral (2021), trabalho criado por Licida Vidal para a mostra Dizer Não, do Ateliê 397, em São Paulo. A artista criou bolsões de argila e pano com terra semeada. Os brotos de feijão, maracujá, abóbora, tomate, jabuticaba, milho e juçara germinaram ao longo da exposição nesse solo suspenso, irrigado por baixo a partir de uma superfície de barro e água.

 

Detalhes de Escultura Viva em Paisagem Específica (2020-), de Lohana Montelo; a intervenção integra a Série Agroflorestar Solos de Pedra [Fotos: cortesia da artista]

Uma complementaridade entre introspecção e compartilhamento também ocorre em Terra Afefé. A partir de memórias e desenhos de infância, Rose Afefé cuida, desde 2018, de uma “microcidade” construída com barro na Chapada Diamantina, próxima a Ibicoara (BA). O professor Ricardo Fabbrini explica que “é possível estabelecer uma analogia entre a Cidade Radiosa [de Le Corbusier] e a República de Platão”, ambas “cidades tecnocráticas, pois fundamentam a ordem social na especialização das funções”. Terra Afefé inscreve-se entre as críticas a esse “projeto moderno de viés funcionalista”.

 

Terra Afefé (2023), uma microcidade construída a partir das memórias e desenhos da infância da artista Rose Afefé em Ibicoara, na Chapada Diamantina (BA) (Foto: Cortesia da artista / Ícaro Moreno)

 

A repetição modular e serial das fachadas ironicamente recorda a arquitetura moderna, mas a utilização de materiais de construção populares, a técnica do adobe, os “fragmentos de memória” inerentes aos projetos e pinturas se contrapõem à fundação de uma “Cidade Ideal com base em um grau zero”. No projeto feito a mão se lê a composição da cidade afetiva: ateliê, estúdio, bar, biblioteca, teatro, refeitório. O trabalho de Rose Afefé na Chapada Diamantina produz desdobramentos em forma de esculturas e pinturas , mas também recebe os “que por lá passam”, oferece imersões e residências artísticas e “de tempos em tempos é habitado por grupos diferentes”.

CATÁSTROFE MINERADORA
A singela paisagem urbana de Terra Afefé é indissociável do relevo característico da Chapada Diamantina, região que presta testemunho da exploração de ouro no século 18 e de diamante no 19. A magnitude da atual indústria mineradora aparece em toda a sua dimensão catastrófica nos trabalhos de Júlia Pontés. Neste momento, a artista, ativista e pesquisadora atravessa os EUA de carro com sua filha e sua tia documentando o impacto sócio-ambiental da mineração. 

Essa viagem começou em 2014 com investigações a partir da cidade de Belo Horizonte, onde nasceu, e das “montanhas verdes” mineiras pelas quais é tão apaixonada que as tatuou no braço, conforme revela em Veias Minerais (2021), vídeo-performance que compara a modesta escala do garimpo artesanal de ouro, ainda existente em certas regiões do estado de Minas Gerais como complementação de renda, com os danos causados a casas e nascentes pela construção de um mineroduto, as evacuações causadas pelas construções de barragens, o declínio da atividade turística e o “conflito hídrico”. 

O vídeo é pontuado por trechos de um documentário realizado em 1949 pelo governo dos EUA, que apresenta a exploração de minério no estado brasileiro. Sobre um tapete de cordas digno dos mais clássicos contos de fada de Walt Disney, a voz masculina do narrador exalta os “mais de 100 milhões de toneladas de hematita” do Pico do Cauê, que surge imponente sobre as ruas de Itabira, “literalmente feitas de ferro”. O som original silencia e o painel de luz branca de Júlia Pontés cobre parte das imagens do documentário. A artista aparece de costas afixando mapas e fotografias enquanto cita o poema de Drummond, “Itabira é apenas uma fotografia na parede”, e narra, com serenidade e indignação, como a montanha de 1.370 metros foi reduzida a um morro de 150 e como as barragens ao redor da cidade-natal do poeta mineiro envenenaram o ambiente com rejeitos e ameaçam moradores com o que a artista e sua equipe passaram a chamar de “terrorismo de barragens” desde que, em 2015 e 2019, ocorreram, respectivamente, “o maior desastre ambiental e o maior acidente de trabalho ampliado da história do país”, referindo-se às “tragédias-crimes” praticados pelos dirigentes da indústria de mineração em Mariana e Brumadinho, crimes contra o “território-corpo-terra”.

A exploração de hematita, substância usada há milênios para obter a coloração vermelha das pinturas rupestres, conforme Anita Ekman, deixa marcas catastróficas que Pontés tem registrado tanto na escala do corpo, com entrevistas com pessoas afetadas, fotografias de objetos abandonados e casas destruídas, quanto na escala da terra, com fotografias aéreas perturbadoras. Produzidas por vezes com câmeras analógicas adaptadas para amplos formatos, suas fotos causam a estranha sensação de beleza na catástrofe por se parecerem à primeira vista com paisagens naturais ou mesmo com pinturas abstratas. Depois da primeira impressão, o espectador confronta sua própria corresponsabilidade, como membro da sociedade de consumo, pelas agressões à terra e às comunidades, que as imagens testemunham. 

As fotografias aéreas de Júlia Pontés mostram os efeitos do desastre em uma escala geológica na qual a presença humana já não é visível. Algo da Terra permanece, ainda que o atual modelo econômico prejudique tanto o meio-ambiente para a nossa e outras espécies que ela se pareça mais com outro planeta. Em Luz do Norte (2007-2010), no extremo norte da Noruega, a artista alemã Kati Gausmann registra sombras do seu próprio corpo e de objetos encontrados em campo, nas quais se evidencia a rotação da Terra. Em Deriva (desde 2013), na Islândia, ela trabalha com vestígios de falhas geológicas que remontam a 800 anos atrás, chegou a presenciar uma erupção vulcânica e a trabalhar com a rocha recém-formada. Para expressar a ideia de que “o chão onde eu piso se move”, a artista cria moldes de montanhas, desenha o curso de um rio sobre as ruas da cidade, cria desenhos a partir da impressão do papel sobre solos rochosos.

UMUARAMA
Há poucas gerações, boa parte das pessoas saberia se localizar no espaço e no tempo observando a luz do sol e as estrelas. Lâmpadas elétricas alteraram o sono, os corpos foram adestrados pelo apito da fábrica, pelo cronograma da empresa e por notificações de aplicativos. A arte feminista do território-corpo-terra combate a perda do mundo explicitando vínculos entre terra e comunidade. O Museu de Arte da Pampulha pertence ao importante complexo arquitetônico considerado por vezes como a obra-prima de Oscar Niemeyer. Há anos o poder público protela a construção de um anexo do museu sobre um terreno vazio, onde a artista goiana Sallisa Rosa criou Horta de Mandioca (2019). A ação valeu-se de contatos com o Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas, que mobilizou participantes voluntários para o plantio de manivas, ramas de mandioca e para o preparo de “um almoço regado a peixe tambaqui, milho, batata e pajuaru, bebida fermentada de mandioca”.

 

Obra Sem título da série Planeta A (2013), da alemã Kati Gaussmann,
que trabalha diretamente na costa atlântica; nesta obra, partes de um sistema de rift em Reykjanes (2013), na Islândia (Foto: Reprodução / Cortesia da artista)

 

A palavra tupi “umuarama”, que significa “lugar ensolarado onde os amigos se encontram”, gravada sobre uma placa de madeira, anunciou a ação e demarcou um espaço de contraposição no complexo da Pampulha. Nesse espaço, os saberes reprimidos pela colonialidade se apresentaram como formas de vida mais dignas. A manipulação da terra, a preparação e a partilha do alimento reatam terra e povo. 

Sallisa Rosa produz esculturas de barro que emulam formas de objetos tradicionais, como potes e urnas, em torno dos quais a comunidade se forma, seja para refeições comunitárias ou ritos funerários. A ligação da comunidade com a terra foi também o tema das pinturas e esculturas de Kelton Campos Fausto em Quando Tudo Terra Era (2023). Rostos feitos de barro, seres espirituais e terrenos surgindo e submergindo na luz e na sombra, moradias de barro capazes de abrigar todo um povo, formas abstratas, são alguns dos elementos que compõem as obras apresentadas pelo artista na galeria Hoa, em São Paulo, com um círculo de terra no centro. Nesses trabalhos, predominam referências a odus e orixás. 

Mônica Ventura também busca referências religiosas para reconfigurar os vínculos entre corpo, terra e comunidade. Em De Amanhã para Ontem (2021), a artista cria uma instalação nos jardins do CCSP inspirada nos festivais dos Egunguns, “almas dos mortos ancestrais que voltam à Terra em determinadas cerimônias”, segundo Cacciatore. A morte já era uma referência para a artista na performance realizada no Morro da Babilônia, Òwórin Meji (2016), o 11º odu do Ifá, que em ioruba significa “união da vida e da morte”. 

A existência de comunidades pressupõe uma memória coletiva para a qual os comportamentos em face da morte e do morrer são cruciais. Somente a mentalidade pós-iluminista pretende abolir todo simbolismo para considerar apenas biologicamente o nascimento e a morte. Por isso a sociedade “moderna” é menos eficiente para vivenciar o luto. Ao acender velas, traçar espaços de culto sobre a terra, manipular plantas votivas, promover conversas espirituais, reconstituir trajes cerimoniais, erguer postes ritualísticos e transformar terrenos em terreiros, Ventura faz do trabalho de arte uma forma coletiva de reconexão com a ancestralidade.

 

Obra Sem título da série Planeta A (2013), da alemã Kati Gaussmann, que trabalha diretamente na costa atlântica; nesta obra, partes de um sistema de rift em Reykjanes (2013), na Islândia (Foto: Reprodução / Cortesia da artista)

 

As fotografias de cemitérios feitas em 1967 por Nancy Holt, precursora dos trabalhos de land art, mostram o abandono dos túmulos em espaços ermos e secos (Stonehenge, referencial de Sun Tunnels, foi possivelmente um monumento funerário). Western Graveyards (1967) seria a forma negativa de interação entre terra, morte e comunidade, da qual Mônica Ventura cria experimentos vivos e pulsantes. A artista participa do Programa Abdias Nascimento, do Ipeafro no Inhotim, com A Noite Suspensa ou o Que Posso Aprender com o Silêncio (2023), instalação que conecta espiritualidades africanas e ameríndias.

LEVANTE SEM SACRIFÍCIO
Travestindo-se com partes de animais, enterrando-se nu e abraçado a um bode, ou cavando um buraco do tamanho do seu corpo com uma colher, Rodrigo Braga realiza performances que tencionam o corpo e criam imagens tão fortes de interação com a terra que seu trabalho conta entre os levantes contra os abusos do território-corpo-terra que reunimos. Em Ponto Zero (2019), o artista percorre paisagens rochosas na França, em Portugal e no Brasil, criando contrastes entre formas e cores de cal, carvão, terra, rocha e do seu corpo. Os trabalhos apresentados na galeria Zipper em 2022 obtinham a enérgica interação com a terra sem a violência sacrificial dos trabalhos anteriores.

A arte do território-corpo-terra pressupõe uma “segunda técnica”, uma vez que “a primeira tinha no centro o ser humano e o próprio sacrifício humano”, segundo Seligmann-Silva. Sem ser um recuo, a transição de Rodrigo Braga para um trabalho sem sacrifício assinala a possibilidade do estado de jogo que as artistas feministas já praticam.

 

PONTO ZERO #10, (2019), do artista manauara Rodrigo Braga, que usa o próprio corpo para intervir em seu entorno, estabelecendo uma relação com a natureza (Foto: Cortesia do artista)

 

 

Referências

AFEFÉ, Rose. Portfólio, s.d.
BITTENCOURT, Juliana. A recuperação do corpo como território de defesa. Revista Geni n.º 26, 2015.
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
CAPELOBO, Walla; Lízia, Millena. Compostar o “Composteiras”: autoformações e co-formações em grupo de estudo com Beatriz Nascimento. La Escuela, 02/06/2023.
COSTER, Mônica. Terral e Tenebroso. Dizer não, s.d.
DEL RIO, Petra Barreras; Perrault, John. Ana Mendieta – A Retrospective. The New Museum of Contemporary Art, 1987.
FABBRINI, R.N. Outros espaços nas artes visuais. Gragoatá, Niterói, v.26, n.54, p. 462-489, 2021.
GAUSMANN, Kati. Planet A. Hamburgo: Textem Verlag, 2023.
GODELIER, Maurice (org.). Sobre a morte. São Paulo: Sesc, 2017.
GRAEBER, David; Wengrow, David. O despertar de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
JAXUCA, Anita Ekman. Ocre: a origem do mundo. Revista Select, 28/04/2022.
LE GUIN, Ursula K. A teoria da ficção como bolsa transportadora. Cuadernos materialistas, 2020.
LÍZIA, Millena. Faço faxina: bases contraontológicas para um começo de conversa sobre uma experiência epidérmica imunda. Dissertação de Mestrado para o Programa de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal Fluminense, 2018.
PONTÉS, Júlia et alt. “Uma bomba feita para explodir”: o terrorismo de barragem na MG-129. Observatório da mineração, 14/06/2023.
QUINTELLA, Pollyana. Sallisa Rosa: caminhar bem, caminhar junto. Revista Continente, 04/03/2020.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Walter Benjamin e a fotografia como segunda técnica. Revista Maracanan, vol. 12, n. 14. Rio de Janeiro: UERJ, 2016.

Detalhe de A Noite Suspensa ou o Que Posso Aprender com o Silêncio (2023), de Mônica Ventura, em exibição na Galeria Praça, no Inhotim (Foto: Cortesia da artista / Ícaro Moreno)