Protagonistas de crimes que se tornaram midiáticos e espetaculares, eles ativam o voyeur-perverso-mórbido-adicto-negativo que habita cada um de nós
Foto:Carol Guedes / Folha Imagem
Do todo, as partes; de tudo, um pouco. Fragmentos concretos, mas de um corpo não mais inteiro – e,portanto ,um do todo, as partes; de tudo, um pouco. Fragmentos concretos, mas de um corpo não mais inteiro – e, portanto, um corpo não mais real –, foram chegando ao Instituto Médico Legal da cidade pa ulista de Cotia: uma perna, um braço, outra perna e outro braço, o tronco , a cabeça – e com ela o reconhecimento do corpo do empresário Marcos Matsunaga, assassinado e esquartejado por sua mulher, a ex-garota de programa Elize Araújo Matsunaga.
Na mesa inclinada do IML a intimidade do corpo e daquilo que ocorreu com ele é registrada por filmadora e câmera fotográfica da perícia médica: de tudo que foi o corpo, um pouco do que agora forma o corpo é desnudado e, no patamar simbólico, novamente fragmentado. As fotos voam para a internet. As imagens de Elize descendo pelo elevador de seu prédio com três malas de rodinhas, que agora se sabe escondiam as partes do cadáver picado, alcançam imediata e repetitivamente as telas da tevê.
É a cortina se abrindo. E tomemos coragem e respiremos fundo, porque são também as nossas cortinas interiores começando a mostrar que, dentro de nós, o cenário não é dos mais desejáveis. Os telespectadores, olhos vitrificados, fixos e ávidos, veem e reveem tais imagens, as emissoras as passam e repassam, e pronto, o crime se transformou em crime-espetáculo: de tudo que foi o crime assistimos a um pouco do que foi o crime. Mas o assistimos excessivamente. Não se perde um capítulo, embora eles se repitam, pois exibem sempre a mesma cena.
Foto:Rubens Cavallari / Folhapress
Por que isso nos seduz, aqui e em qualquer canto do planeta? Por que a mídia atua dessa maneira? Responde a advogada civilista Maristela Bacco: “A expressão de-tudo-um-pouco explica essa sedução e paixão. Os que fazem a mídia são seres da mesma espécie humana à qual nós, telespectadores, pertencemos. E todo ser humano traz em si uma porção perversa. Esse é o fio invisível que une criminoso-crime-mídia-público.
O fascínio é perverso. Existe uma voz, na emoção de cada telespectador, que lhe sussurra: olha como a vida do outro é ruim e a minha vida é melhor. Há um voyeur perverso em nossa alma”. Assim como o crime de Elize, outros tantos se tornaram midiáticos e espetaculares, todos eles a despertar e a atiçar o nosso “voyeur mórbido”, na designação da artista plástica Mariana Pimenta Cama, mestre em comunicação e semiótica, autora de O Crime-Espetáculo na Tela – Entre a Realidade e a Ficção.
São exemplos emblemáticos a morte da garotinha de 5 anos Isabella Nardoni, em São Paulo, o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, e o cárcere privado seguido de morte da jovem Eloá Pimentel, em Santo André, no ABC paulista. E quando ligamos a televisão ou navegamos em sites para ver tragédias como essas, o voyeurismo é o traço comum. Vale aqui destacar que 98,2% da população brasileira, conforme pesquisa CNT/Sensus, acompanhou o caso Isabella. Trata-se, então, do nosso lado “voyeur-mórbido-perverso”, e tal lado se alicerça em um movimento psíquico projetivo. Como já se disse, nosso cenário é nebuloso. Explica-se: se o criminoso, em sua personalidade transtornada, faz-se um ser que se comporta em essência por meio da projeção, nós também projetamos nele e no crime o que há de ruim em nós – ruindade que preferimos pensar que temos do que sentir que possuímos.
“É como se o mal estivesse fora da gente”, diz Mariana. “O que alimenta essa ciranda do crime-espetáculo é o egoísmo. Saber que o drama está fora nos dá enorme sensação de alívio. E o nosso voyeurismo funciona como droga, por isso sempre queremos mais e mais, porque o efeito do prazer dura pouco”, explica a psiquiatra, psicoterapeuta e psicodramaticista Therezinha Esteves. “Onde existem regras existirá, na mesma proporção, a vontade de transgredi-las. E aquele que burlou a lei conseguiu concretizar o desejo natural reprimido. Sublimamos nossos instintos, afinal o inferno são os outros”, afirma a advogada penal Flávia Guimarães Leardine. O mais renomado penalista do País, com doutorado em Coimbra, Roberto Podval, que atuou no caso Isabella Nardoni, fecha a teoria do circuito desse “sentimento de atração pelo crime-show”.
A humanidade é voyeur pela perversidade (como afirma Maristela Bacco); é voyeur pela morbidez (como quer Mariana Pimenta); voyeur adicta (na palavra de Therezinha); e, agora também pela explicação de Podval, a humanidade é dona de “uma dose de voyeurismo negativo”. Tem-se então o voyeur-perverso-mórbido-adicto-negativo. Assim somos nós, histriônicos a “espetacularizar a tragédia”, quer como ativos agentes da mídia, quer como passivos assistentes dela. E, novamente, chega-se ao conceito inicial: de tudo, um pouco, e no voyeurismo como um todo existe um mínimo de cada espécie do próprio voyeurismo. É por isso que o crime-espetáculo agrada a tantos olhos.
Foto:Ana Carolina Fernandes / Folhapress
É por isso que coloca todos diante de suas cenas. Existe o crime-espetáculo frio: cenas gravadas que a televisão repisa. Existe também o crime-espetáculo quente: aquele que tem transmissão ao vivo e em cores. São exemplos maiores desse último tipo o sequestro do ônibus 174 e o fatal cárcere privado da jovem Eloá. Sandro, o moço que escapou da morte no massacre da Candelária, também no Rio, e que tantos anos depois tomou um ônibus para assaltar, acabou sequestrando quando se viu cercado pelas tropas do Bope e por outra tropa, a da mídia. Em dado momento, como diz Mariana, ele passa a dirigir o seu teatro, pede para que as passageiras gritem histéricas, já não negocia o sequestro olhando
para a polícia, mas, isso sim, para as câmeras de tevê.
O moço transtornado de paixão, Lindemberg, que mantém Eloá sob a mira de seu revólver, percebe-se um ator sem volta à realidade quando apresentadores da televisão começam a entrevistá-lo por telefone enquanto o rapto se desenrola. Tanto Sandro quanto Lindemberg se tornaram atores de si próprios. E a plateia? “O público, o telespectador, poderá ‘viver’ tudo isso projetando impunemente no outro os seus sentimentos e desejos, enquanto, na vida real, aquele que faz parte efetiva da cena sofrerá consequências também reais de seus atos”, diz a professora de pós-graduação em perícias criminas Roselle Adriane Soglio. “Tudo isso se baseia no binômio projeção e julgamento. Ao acompanhar uma história criminosa como se fosse novela, o ser humano tem a possibilidade de julgar o seu par, de apontar o dedo para a culpa do outro, sem que ele mesmo seja julgado”, afirma Luiz Antonio Santos de Oliveira, assistente da Polícia Técnico Científica de São Paulo.
Foto:Luiz Bettencourt / Folhapress
Esse fenômeno, na verdade, não é novo, e tão somente se sofisticou na medida em que o mundo tecnológico também tornou-se mais sofisticado. Ao cobrir para a revista The New Yorker o julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, a genial filósofa Hannah Arendt, uma das mais profundas conhecedoras do egoísmo da alma humana, criou a expressão “banalidade do mal”. Se ela servia à época para o burocrata Eichmann, hoje também serve, guardadas as devidas proporções, para o olho voyeur do crime-espetáculo.
Assiste-se ao crime-espetáculo com a mesma naturalidade com que se toma um copo d’água. Muda-se de canal e da novela-crime-real passa-se tranquilamente para o futebol ou para a novela-ficcão. Quem são os personagens fictícios e quem são os de carne e osso? Essa distinção nossa mente já não processa. Sabe-se, isso sim, que nós somos os egoístas que gostam de ver, nós somos aqueles que “têm inveja e admiração por quem conseguiu concretizar alguma transgressão que a nossa noção de ‘ser social’ nos impede de realizar”, diz a psiquiatra Therezinha. Nós somos aqueles que estão à procura da próxima vilã de novela ou do próximo crime na mídia. Os olhos não param e, por isso, o show não pode parar.
Matéria publicada na edição 08, outubro de 2012