Gantois. Nome de um terreno antes pertencente a um traficante de pessoas escravizadas que o arrendou ao casal de africanos libertos Maria Júlia da Conceição Nazareth e Francisco Nazaré, que depois o compraram com o dinheiro que conquistaram trabalhando nas ruas de Salvador.
Francisco era músico e barbeiro (o que, à época, significava ser responsável por uma série de cuidados em relação ao corpo) e Maria Júlia trabalhava também como ganhadeira. Em 1849, pelas mãos de Maria Júlia, o terreno tornou-se o Ilê Ilé Iyá Omi Àse Iyamasé, hoje na boca do mundo como Terreiro do Gantois. Oxóssi, orixá da caça e do sustento, veio a se tornar o “dono” do Gantois, muito embora Xangô seja considerado o patrono do terreiro, porque “ele é o grande orixá da justiça; e fazer justiça ao povo negro é manter e preservar esse culto”, nas palavras de Tanira Fontoura, Egbomi de Iemanjá no Gantois e historiadora, em conversa com a seLecT_ceLesTe. Percebe-se, desde a fundação do Ilê, uma postura esguia de encontrar brechas para acolher as pessoas recém-libertas que foram expulsas do tecido social brasileiro. O terreiro constrói-se como espaço onde se tecem relações, a fim de restabelecer o bem-estar material, psicológico, emocional, físico e espiritual através de marcas culturais que cultivam o pertencimento ao mundo e reconstroem o mesmo. Esta, característica comum às instituições/iniciativas culturais visitadas pela reportagem em Salvador.
Comecemos por Mestre Didi, figura cuja descrição, qualquer que seja, resulta inevitavelmente em uma incabível redução, porque um mestre só se compreende como mestre. Dos seus feitos artísticos, filosóficos e políticos todos, talvez o maior: fundar o Ilé Axé Asìpá, localizado em Piatã, em Salvador. Se parece inusitado um artista ter fundado um terreiro, saiba que, segundo o Alàgbà do Asìpá, Genaldo Novaes, “aquilo que se faz, por exemplo, num assentamento aqui no Brasil, na Nigéria ou em Cuba, aquilo é arte. Agora, aquilo é uma arte sagrada. É arte porque, para fazer aquilo, é preciso saber, é preciso muita noção do que se está fazendo… Tem milhares de anos que milhões de pessoas, através dessa arte, entregam sua energia. E energia é mc2 (massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado). É matéria”, diz ele, em entrevista à seLecT_ceLesTe, e conclui: “O lugar da arte é a preservação. Através da arte, você preserva. A arte é a maneira de preservar as coisas”.
FOTOGRAFAR PARA O FUTURO
Lázaro Roberto, no início de sua exímia carreira de fotógrafo, percebeu que seria o outro fotografando o outro. Um homem negro e da periferia com câmera na mão quando esta costumava ser apenas uma “arma branca”. Assim como Roberto percebeu a importância de registrar a efervescência cultural de uma época, descobriu que o faria para o futuro. Isso porque, naquele presente, não havia interesse dos veículos e instituições baianas em acolher a sua produção (nisso, pouco mudamos). Sendo assim, em 1990, após atravessar a ditadura, Lázaro Roberto juntou-se aos amigos Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, para fundar o que hoje é o ZUMVI Acervo Afro Fotográfico. Atualmente formado apenas por Roberto e José Carlos Ferreira, seu sobrinho e historiador, o ZUMVI é referência magistral presente em documentários, livros, jornais e, claro, exposições, como Brasil Futuro: As Formas da Democracia, Dos Brasis e 35ª Bienal de São Paulo, para citar as que estão em cartaz no momento (Leia a entrevista com Igor Simões e a crítica da exposição Dos Brasis, ambas na seLecT_ceLesTe #59).
Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos também têm respondido bem às demandas de outras instituições museais. Juntos fundaram o Acervo da Laje, um museu-casa-escola localizado em Plataforma, bairro no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Ali, oficinas ocorrem, no mínimo, uma vez por semana, em meio a um acervo dividido em duas casas que abrigam obras que ecoam as imagens, narrativas e inteligências de artistas do Subúrbio. A casa serve como força motriz para aquilo que a escritora Ana Maria Gonçalves, em entrevista recente ao Roda Viva, descreveu como “arquivo de corpo”. O Acervo da Laje está presente num sem-fim de exposições, além de já ter ocupado o MAM Bahia, MAM Rio e o MAR. No entanto, seu sentido mais verdadeiro, profundo e fundador, é encontrado no bairro da Plataforma, onde se imagina haver barreiras para encontrar a Arte. Na verdade, o que se percebe ao visitar o Acervo da Laje é um deslocamento proposital em termos de territórios, conceitos, expressões artísticas e, claro, corporeidades.
Inclusive, os corpos curatoriais das exposições e instituições que perceberam a necessidade de receber obras do Acervo da Laje, em geral, foram até lá, caminharam da Travessa Sá Oliveira à primeira casa do Acervo, na Rua Nova Esperança. Segundo José Eduardo, o diálogo com tais instituições é sempre muito bom e “quase de igual para igual”.
Um exemplo disso é a exposição itinerante Brasil Futuro: As Formas da Democracia, que ocupa o Centro Cultural Solar do Ferrão, no Pelourinho, até 15/11. Com curadoria de Lilia Schwarcz, Márcio Tavares, Rogério Carvalho, Paulo Vieira, e curadoria-adjunta de Adriana Cravo, Daniel Rangel, Acervo da Laje e Arquivo ZUMVI. A proposta, sustentada por Schwarcz, é de exercício da horizontalidade. Assim, ZUMVI e Acervo da Laje decidiram, por exemplo, onde e como ficariam suas obras, mas não apenas. E devemos lembrar que curadoria também é uma função de recorte, criação de narrativa e validação de um discurso. Infelizmente, a horizontalidade adotada e defendida pelas partes envolvidas em Brasil Futuro não encontra eco na maioria das instituições. Aliás, como declarou a curadora Lesley Lokko, “nem todas as equipes são iguais”.
VISTO DE ALFORRIA
Lesley Lokko, nomeada diretora e curadora da 18ª Mostra Internacional de Arquitetura de Veneza, revelou em discurso aos patrocinadores e à equipe: “Mas nem todas as equipes são iguais. Para a equipe com sede em Acra (Gana), foram negados vistos para participar de uma exposição para a qual contribuíram com seu tempo, ideias e trabalho. Pela primeira vez na minha vida me faltam palavras. O documento de rejeição da Embaixada da Itália em Acra afirma: ‘Existem dúvidas razoáveis quanto à sua intenção de deixar o território do estado (Itália) antes da expiração do seu visto’. Nenhuma explicação foi dada sobre quais eram as dúvidas, fossem elas razoáveis ou não”. A própria Lokko é filha de um ganense com uma escocesa e cresceu entre a Escócia e Gana.
Diante desse fato denunciado, é difícil não pensar no visto como uma espécie de carta de alforria. Sua negação transmite o recado de que só interessa a existência mediante a prestação de serviços. E mais: independentemente da importância ou volume do serviço prestado, estaremos à mercê da selvageria letrada, de forma que a mesma sempre reafirme sobre nós a posição, na qual ela mesma não se enxerga, que (considera ela) devemos ocupar. Mas e a Bahia?
Obras das Tecelãs do Alaká, do Ilê Axé Opô Afonjá estavam na mostra brasileira Terra, premiada com o Golden Lion de Melhor Exposição Nacional da Bienal de Veneza. Mas como as tecelãs seriam recebidas e tratadas se, criadoras das obras, fossem à Bienal, a Veneza, à Itália?
Sobre a nomeação de Lesley Lokko, Roberto Cicutto, presidente da Bienal, declarou que a posição de curadora “toma como ponto de partida sua própria experiência imersa em um continente que se torna cada vez mais um laboratório de experimentação e propostas para todo o mundo contemporâneo”. “Laboratório”? De quê? Para quem?
É notável o crescente interesse de algumas instituições em se tornarem aparentemente mais democráticas através da incorporação de representações antes mais ou menos explicitamente desprezadas. No entanto, vale destacar que esse esforço não se dá por benevolência, e sim por necessidade de acompanhar movimentos intensos das sociedades e criar uma contraposição ao sabidamente excludente Capital ou Estado. Muito embora, como percebemos, as sobreposições se revelem na indisposição e incapacidade de ambas, Museu, Capital e Estado, de romper com a lógica de contratar um serviço e tratá-lo como sendo apenas isso. Pior, eles o fazem oferecendo uma fraca contrapartida. Em geral, somos deslocados, seja para Veneza, seja para o Sudeste, para atender a uma demanda de instituições que não nos enxergam enquanto instituições também demandantes e inteiras e igualmente dignas de apoio para um pleno e autônomo funcionamento. O que persiste é uma queixa recorrente por parte, em especial, do ZUMVI e do Acervo da Laje: sem financiamento constante continuaremos à mercê do interesse externo (seja nacional, seja internacional) e a serviço dele.
Sobre financiamento, José Eduardo revela o que parece ser a chave tão temida e escondida: “A gente tá participando do Museus Futuros, projeto do Goethe de África do Sul, que está ajudando a pensar o futuro do Acervo da Laje durante um ano”, afirma em conversa com a seLecT_ceLesTe, e conclui com a chave: “O futuro vem de África, de onde a gente veio.
É a África que tá cuidando da gente, por isso a gente é livre! Quem nos pariu está nos embalando. Axé pra vida toda!”
E, nas palavras do Alàgbà Genaldo, encontrei a melhor definição de “axé”: “a”, nós, “xé”, fazemos.