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Frame de Bárbara Balaclava (2016), de Thiago Martins de Melo (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 23/04/2021 - 10:53
Bárbara Balaclava, de Thiago Martins de Melo
Composto por mais de 4 mil pinturas, vídeo do artista maranhense conecta violência colonial, sexual e política

Discutir o trabalho de Thiago Martins de Melo é de saída um problema duplo: suas pinturas e vídeos mobilizam referências muito distintas, abordadas de maneira sincrética, ao mesmo tempo em que o apelo sensorial dessas obras envolve uma relação imediata, como se o trauma descrito nas imagens acontecesse no momento mesmo de nossa experiência com elas. 

Há alguns anos, o artista tem produzido animações de curta duração feitas a partir de milhares de pinturas, que são fotografadas e editadas em narrativas sincopadas. A primeira dessas, Bárbara Balaclava (2016), intercala imagens com grossas camadas de tinta óleo a outras feitas em aquarela ou canetinha. A narrativa geral, intui-se, é de uma escravizada que atravessa o tempo e devolve a violência sofrida a seus violadores. 

A maneira convulsiva como as pinturas são construídas e a forma descontínua como as sequências são criadas operam no vídeo de modo análogo ao do fluxo da consciência. A narrativa sobre temas tão diversos e inter-relacionados como sexualidade, violência, escravidão, capitalismo e tarô não discerne passado, presente e futuro, ou imaginário e realidade material, mas indica as conexões entre essas dimensões. 

O título personifica a obra e associa diferentes figuras marginais ao longo da história: os bárbaros, aqueles que, segundo o poder, não são civilizados, e as máscaras que escondem a identidade dos black blocs, grupos que se unem anonimamente para protestar contra o establishment. A aliteração em Bárbara Balaclava, além de soar como um nome e sobrenome, mostra a fusão e a entropia como os modos de ação do artista, ampliando a reflexão sobre o contexto brasileiro. 

Excesso e erotismo
Produzido a partir de mais de 4 mil pinturas, o vídeo opera por montagens abruptas, por vezes toscas, refletindo uma urgência da execução, mas também algo da violência de temas como a escravidão, o assassinato e o abuso sexual. 

Entre passagens sutis de diferentes tonalidades das mesmas cores e contrastes agressivos de cores complementares, o trabalho de Martins de Melo enfatiza a matéria da tinta na formação da imagem. Por vezes, no vídeo, vemos o processo de construção e desconstrução da pintura acontecer na sequência de imagens, em movimento constante de expansão, cobertura e recobertura. A matéria informe da tinta e suas possibilidades infinitas parecem descrever o estado dos problemas tratados ao longo da narrativa, algo entre a iminência de tornar uma forma estável e o limite de se desfazer. 

A dimensão temporal da pintura, sua construção lenta e a possibilidade de alternância entre o detalhe e a percepção do todo, indicam por si só uma experiência de simultaneidade que interessa discutir no trabalho de Martins de Melo. No vídeo, no entanto, ainda que a estrutura quebre sequências lógicas, há um começo e um fim. 

A relativa linearidade de Bárbara Balaclava é, inclusive, mantida pela trilha sonora — a música como uma linguagem que, ainda que cheia de texturas e camadas, é sequencial—, mais do que pela associação entre as imagens, que se contradizem e se dissolvem umas nas outras. A passagem de uma cena a outra não se dá por procedimentos de analogia ou continuidade, mas por uma metamorfose absurda, que atravessa histórias, tempos e cosmogonias diversas, em que botos, orixás e pajelança se conectam a policiais, militares, banqueiros, madeireiros, entre outros extrativistas. 

A personagem principal sofre violências reiteradas: religiosa (é crucificada), colonial (é açoitada), sexual (é estuprada) e policial (é atingida por um tiro). Por fim, é afogada, desmembrada, devorada por um tubarão e, ainda assim, renasce na praia onde encontra seu amor e se conecta com uma entidade onça que é sua parceira no contra-ataque ao colonizador. 

Bárbara Balaclava tem um final feliz, no qual a escravizada pode renascer, devolver a violência sofrida e seguir com seu parceiro transmutada em outra forma, que já não é nem mais humana. A presença mais marcante ao longo do vídeo, no entanto, é a da imagem lamacenta, de forma inconstante e entrópica. Marcado pelo excesso de cores, texturas, imagens e narrativas, o trabalho marca o potencial de vitalidade e resistência do sincretismo e a iminência do colapso em uma sociedade de estruturas amorfas. 

Ainda que encontre momentos de síntese, a obra de Martins de Melo opera pela descompressão das narrativas, sejam elas pessoais, políticas, históricas ou religiosas, gerando um fluxo catártico e contínuo. Se há um interesse recorrente em Bárbara Balaclava por descrever materiais como água, esperma, sangue e vômito, análogos ao estado viscoso da tinta, essa informalidade parece dizer algo da realidade social e política do contexto brasileiro, em que as coisas ganham forma por um instante, para no próximo se desfazerem novamente.