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Por la vida, de Sandy Gutkowski [Foto: Corporación Cultural SACO]
Postado em 11/09/2023 - 12:35
Bienal de Arte Contemporânea Saco 1.1 Golpe
Memória política latino-americana e caribenha vem à tona em Bienal que vai até 14/9 no Chile

O cais da antiga companhia salitrera Melbourne Clark é uma estrutura em escala portuária que liga a costa de Antofagasta ao Oceano Pacífico, uma das poucas construções da era do salitre que restam na cidade. A edificação de aço e madeira, datada de 1872, começou a ser utilizada a partir de 1880 como ponto de carga e passageiros. Foi palco em 1879 da disputa do território de Antofagasta com a Bolívia no conflito conhecido como Guerra do Pacífico, tornando-se parte integrante do Chile. O pier, Monumento Histórico Nacional, mede 1.900 m2, tem quase 200 m de comprimento por 15 m de largura e está aproximadamente 3 m acima do nível do mar.

Em memória dos 50 anos do golpe civil-militar contra o governo de Salvador Allende e da Unidade Popular em 1973, o monumento abriga a exposição resultante da convocatória internacional da Bienal SACO 1.1 Golpe. A exposição é composta majoritariamente por artistas mulheres latino-americanas, reafirmando a noção de que esta região é uma terra de múltiplos golpes.

PAŦRIA de Fernando Foglino, em colaboração com Paula Carmona e Nicolás Cox do Coletivo Poética de la Urgencia [Foto: Corporación Cultural SACO]
Do pavimento exterior da avenida costeira, PAŦRIA de Fernando Foglino, em colaboração com Paula Carmona e Nicolás Cox do Coletivo Poética de la Urgencia, dá as boas-vindas ao público da bienal. É a primeira obra vista ao longo do percurso expositivo. Embora PAŦRIA não faça parte das obras selecionadas pelo edital internacional, por uma sensata disposição curatorial, optou-se pela decisão expográfica de ter a sua montagem realizada neste local juntamente com as demais obras da exposição. Segundo o próprio artista, PAŦRIA é um antimonumento que se recusa a formalizar discursos de violência, desconstruindo assim seu poder. Com uma imponente, mas delicada estrutura metálica, onde aparece o condor preso dentro deste novo monumento, e o huemul (um cervo ameaçado de extinção) pastando livremente no chão, ambos símbolos do brasão de armas chileno, Foglino rearticula o significado histórico de um determinado obelisco criado no início da década de 1940 pelo arquiteto nortenho Jorge Tarbuskovic (1907 – 1985). O monumento que o trabalho busca reinterpretar está situado bem em frente ao Governo Marítimo de Antofagasta, até hoje está inscrito na placa de bronze “Honra à Pátria”, acompanhado de “Setembro de 1810 – 1973″, no sentido de celebrar o golpe de estado civil-militar de 1973, como uma nova libertação, ao nível da independência do Chile em 1810. Bastante sensível à proposta artística de Foglino, uma das mediadoras da exposição no cais evocou a prosa de Gabriela Mistral, Menos cóndor y más huemul, publicada no El Mercurio de Santiago em 11 de julho de 1925: “O condor, para ser belo, tem que planar alto, libertando-se inteiramente do vale; o huemul é perfeito apenas com o pescoço dobrado sobre a água ou com o pescoço erguido, espiando um barulho”. Houve uma aproximação com o Coletivo Poética de la Urgencia devido aos acontecimentos surgidos após o “estallido social” chileno de 2019 para esta exposição, partindo da intenção que Foglino teve desde o início, de que o pavilhão fosse desenhado por artistas chilenos e não a partir de seu olhar estrangeiro. A referência ao poema visual Patria (1973) do artista uruguaio Jorge Caraballo (1941 – 2014) está presente desde a gestação do antimonumento. Movido pela ligação entre a história do Uruguai e do Chile, através dos golpes de estado de 1973 em ambos os países, e com a ação da Operação Condor atuante no cone sul naquele período ditatorial, foi exibida também uma versão fonética extra na voz de uma referência da poesia experimental, o artista sonoro uruguaio Juan Ángel Italiano (1965), que pode ser ouvido no vídeo exposto no Museu Regional de Antofagasta. Pela ausência de uma letra caída, percebemos graficamente o título da obra, a evidência de um jogo de palavras entre pátria e pária.

Celeste Gómiz, com Golpe Blando, aborda aspectos latentes da matéria densa, por exemplo, quando a violência rompe ilogicamente a linha orgânica da vida. Como se fossem fragmentos de um manto de feltro de fibra animal, a mais antiga técnica têxtil, a artista apresentou no pier um conjunto de quatro rochas de tamanho médio, revestidas com lã natural de ovelha, com efeitos de erosão pela água do mar. Sem dúvida, um trabalho feito com gestos ternos e lentos na manipulação das pedras e da lã, como um tempo de cura. A força contrária entre os materiais escolhidos reflete a constelação do Cruzeiro do Sul, faz alusão territorial e astronômica como um guia simbólico e celestial para a visão de mundo dos povos indígenas do extremo sul-americano. A artista menciona que um golpe suave é como areia nos olhos de um povo, golpes tornam-se enraizados no cotidiano coletivo, um trauma (in)visível, preso no centro da cultura, reverberando nos órgãos de cada nação.

Golpe blando, de Celeste Gómiz [Foto: Celeste Gómiz]
Com mais de uma centena de bandeiras brancas, alinhadas cartesianamente lado a lado para tremular ao vento na lateral norte do cais, a instalação Sin Tregua de Milagros Bedoya, irrompe no espaço como uma enciclopédia eletrizante, compilando e narrando golpes e tentativas de golpe de estado que ocorreram na região da América Latina e do Caribe desde os processos históricos de independência do século XIX até os dias atuais. Na primeira bandeira lemos: “Chile, 1823. Golpe de Estado civil-militar. O Chefe do Exército do Sul, Ramón Freire, marchou com suas tropas em direção a Santiago para derrubar Bernardo O’Higgins, Diretor Supremo do Chile. O’Higgins abdica do cargo e Freire é eleito Diretor Supremo Provisório”. E no último verbete temos: “Peru, 2022. Golpe de Estado do Parlamento com apoio das Forças Armadas contra o presidente Pedro Castillo. O Congresso, majoritariamente de oposição, bloqueou o exercício do Poder Executivo desde o início do governo e ameaçou continuamente o presidente de seu cargo. O golpe foi consumado quando Castillo foi destituído pelo Congresso e assume o cargo a vice-presidenta, Dina Boluarte, que defendia os interesses dos golpistas.” A exibição das bandeiras se aproxima das notas de rodapé de um livro, cada uma traz uma impressão indicando o país, o ano, quem a hasteia, contra quem e o ato final do golpe. Cada um destes fatos faz parte dos registros oficiais da história de nossas sociedades, das intenções dos governos e das suas supostas identidades. A artista procura explicitar a constante ameaça social e política que existe entre os povos latino-americanos. As tomadas agressivas de poder e o fato de as nossas democracias serem tão frágeis face aos atuais modelos de golpes jurídicos, parlamentares, administrativos e midiáticos.

Sin tregua, de Milagros Bedoya [Foto: Corporación Cultural SACO]

Por la Vida de Sandy Gutkowski é uma impressão fotográfica em tecido de 25 metros quadrados, instalada entre dois guindastes portuários. Junto à imagem autorreferencial de um grito pela vida, estão dispostas lenços individuais para que cada visitante possa vivenciar a ação performativa de vendar os olhos e, se assim o desejar, gritar a sua mensagem ao mar e/ou à cidade. A obra convoca o público para um gesto voluntário, um movimento corporal participativo. A artista demonstra sua experiência e formação em atuação, encenação, direção de atores, peças e performances. Por la Vida discorre sobre as marcas do peso, dor, luto e memória que estão tatuadas num espectro geracional latino-americano. Sandy comentou que a imagem é um testemunho e também uma homenagem a milhares de vozes e gargantas que reagiram individual e/ou coletivamente contra o terrorismo de estado. Seu trabalho é um convite para continuarmos no caminho dos nossos melhores ideais.

Por la vida, de Sandy Gutkowski [Foto: Corporación Cultural SACO]
El Shock, de Daniela Avelar [Foto: Corporación Cultural SACO]

El Shock de Daniela Avelar é composto escultoricamente por uma frase que ocupa uma área de 17 metros lineares de comprimento, 30 cm de profundidade e 10 cm de altura, onde se lê em letras brancas expostas contra o piso de madeira do pier: “Suas mentes são como quadros em branco sobre os quais podemos escrever.” El Shock é uma pausa para reflexão baseada na história política recente da América Latina em diálogo com o pensamento de Naomi Klein (1970), escritora e ativista canadense, autora de “The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism” (2007). A frase citada foi retirada de uma declaração dos médicos Cyril J.C. Kennedy e David Anchel sobre os supostos “benefícios” da terapia de eletrochoque aplicada indiscriminadamente na psiquiatria a partir da década de 1940. O choque é posteriormente adotado como método perverso de tortura, tanto pela CIA como pelos regimes ditatoriais da América Latina no final do século XX. Como escreveu Klein: “É assim que funciona a doutrina do choque: o desastre original – golpe de estado, ataque terrorista, colapso do mercado, guerra, tsunami ou furacão – impulsiona a população de um país num estado de choque coletivo”. Descreve como as empresas se aproveitam de momentos de choque cultural para expandir a macropolítica econômica neoliberal, gerando o empobrecimento da população e o enriquecimento de uma minoria de rentistas. Klein cita Chile, Brasil e Argentina durante suas ditaduras civil-militares como exemplos de sua tese. O que interessa à artista é a relação entre o apagado e o esquecido, que sempre nos leva a repetir histórias semelhantes entre a lembrança e a realidade já vividas em vez de seguirmos novos caminhos. A disputa narrativa parece consolidar a ausência de memória do vivenciado durante as ditaduras, bem como das lutas por justiça, verdade e igualdade na América Latina. Não podemos esquecer que há uma música da era dos conflitos enérgicos do movimento estudantil secundarista chileno de 2011, da rapper de Santiago, Ana Tijoux, que justamente tem o título de Shock

Medrosidad de Iván Cáceres consiste numa peça circular com aproximadamente 3 m de circunferência, coberta com alcatrão junto a uma escada tubular metálica, instalação que aparentemente se aproxima da forma de uma piscina escura de espelhos. A obra é um simulador do medo refletido nos seres vivos, que nos convoca a mergulhar (ou não) nela. Sem disposição afetiva, o artista investiga o percurso e o limbo, o piscar de olhos na linguagem dos sonhos, o túnel percorrido ao mover-nos entre estados, como quando sentimos pânico ao ingressar em um sonho. Por ser tão espontânea, essa admissão é caótica, traz prazer (ou não), para que possamos nos aproximar de uma libertação existencial ou de uma possibilidade subjetiva de um mundo mais cálido. Mergulhar nestas águas turvas como se a piscina fosse um ponto metafísico, recolhendo todas as nossas incertezas e nos mostrando as perspectivas correspondentes. A obra trata do medo incontrolável da sociedade diante de mudanças bruscas, um espelho que circunstancialmente deixa fluir reflexos desagradáveis. No filme La Nación Clandestina (1989), do cineasta boliviano Jorge Sanjinés (1936), Mamani retorna à sua comunidade de origem aimará, da qual foi expulso, usando a máscara da morte, para dançar ancestralmente até morrer, como maneira de renascer em sua identidade cultural perdida. Somente as pessoas e as cidades que assumem a sua identidade podem voltar a ser elas mesmas.

Medrosidad, de Iván Cáceres [Foto: Corporación Cultural SACO]
Antes de assar os 300 pães de Cubrir tapar esconder, Catalina Huala criou uma composição de massa de pão com farinha, água e fermento para a coleta de rostos de diferentes pessoas, com peças copiadas a partir de moldes de gesso. Como um rastro de fogo, o grau de torra do pão muda a cor de cada um dos rostos. A artista subverte o sistema de identificação pelo reconhecimento facial seguro, para o difuso obtido por retratos feitos de um material frágil e comestível, transformando-os primeiro em algo entre a vida e a morte: deformados, desgastados e destruídos pela queima. Sabendo desde o início que este seria o seu maior valor, este é o trabalho que mais sofreu modificações enquanto esteve exposto. Independentemente do que aconteceu ontem, os pombos, as gaivotas, os cães e os transeuntes das imigrações de hoje e sempre tem contribuído cotidianamente para compactá-lo, porque ao fim e ao cabo, todos temos que comer. Se a história política recente foi visualmente construída com a utilização de inúmeros retratos de desaparecidos de diferentes países, a artista embaralha as cartas aqui e agora. Pela própria metabolização ambiental, sob o calor do sol, o frio da noite e a umidade marítima, Catalina Huala permite-se mostrar as necessidades, cicatrizes, dores, ausências e lutos dos fantasmas e das espécies de seres sencientes que se reúnem no espaço do píer do cais.

Cubrir tapar esconder, de Catalina Huala [Foto: Corporación Cultural SACO]