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Postado em 29/08/2023 - 5:49
Brasil Futuro em Salvador
Com curadoria de Lilia Schwarcz, a exposição itinerante marca o ressurgimento do Solar do Ferrão, no Pelourinho

Concebida com o intuito de celebrar a democracia reconquistada com a vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a mostra Brasil Futuro: As Formas da Democracia elabora fluxos contraditórios e retroalimentáveis sem uma linearidade vertical. A reconquista da democracia no Brasil não é um acontecimento incomparável a uma gestação. É um processo que abrange todo o corpo de uma nação, para além de um recorte de espaço-tempo. Mas, numa exposição, o que isso significa? Poderia facilmente não significar nada de especial. Todavia, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz decidiu incorporar na coletiva as glórias e os desafios da democracia brasileira reafirmada recentemente. 

Vista de Brasil Futuro no Solar do Ferrão, em Salvador (BA) [Foto: Fernando Barbosa/Divulgação]
Podemos começar pela própria posição que Schwarcz ocupa na exposição. Como curadora, ela convida artistas e curadores das cidades por onde passa a mostra para trabalharem juntos. Em Brasil Futuro, aberta em 14/7 no Centro Cultural Ferrão, em Salvador, além de Lilia Schwarcz e dos curadores Márcio Tavares, Rogério Carvalho e Paulo Vieira, também participaram da curadoria adjunta Adriana Cravo, Daniel Rangel, José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos (Acervo da Laje), e Lázaro Roberto e José Carlos Ferreira (Arquivo ZUMVÍ), que decidiram onde suas obras ficariam, embora não só. Diminuir as distâncias e alargar as semelhanças é também permitir aflorar a autonomia. Só isso já é uma ação revolucionária. Não podemos esquecer que a curadoria também tem uma função de recorte, criação de narrativa e validação de um discurso. É um poder imenso quase sempre concentrado na mão de pessoas que não conseguem negociá-lo. E fazê-lo não quer dizer perdê-lo ou evitar expressá-lo. No caso da exposição em questão, a escuta perpassa tudo. E é essa a primeira marca da alteridade.

No Solar do Ferrão, as salas servem de galerias para os núcleos da exposição. São eles “Retomar os símbolos”, “Somos nós”, “Descolonizar” e o novo “Tudo é dádiva”, criado em razão de Salvador ser também salvadora. Juntos, os núcleos reúnem mais de 500 obras. Neles, o acolhimento é sentido por quem se vê nas contradições (claro, sem negá-las). 

NÃO PODEMOS ESQUECER QUE A CURADORIA TAMBÉM TEM UMA FUNÇÃO DE RECORTE, CRIAÇÃO DE NARRATIVA E VALIDAÇÃO DE UM DISCURSO

No núcleo Retomar os Símbolos temos a obra A República (2016), de Marilá Dardot. Um conjunto de três telas retangulares nas quais palavras formam e destacam um retângulo, um losango e um círculo, respectivamente. São os formatos da bandeira do Brasil com várias palavras e frases ditas na vexaminosa sessão de votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Destacam-se na obra as palavras “família”, “Deus” e a expressão “meus amigos”. Conceitos mais ou menos abstratos e absolutamente íntimos. Minha família, meu deus, meus amigos. É esse o jogo que forma nossa república. Trágico. No mesmo núcleo, temos Pro Futuro (2022), de Marlon Amaro. Mágico! E é assim que nos entendemos. Não é necessário mentir para gerar uma identificação. Na verdade, é afirmando saber das contradições e senti-las que geramos acolhimento. 

Artistas com diversas vocações, variadas técnicas e suportes, objetos e objetivos. Di Cavalcanti é tão melhor porque acompanhado de Yêdamaria e Rodrigo Bueno com sua Aquilombamentos (2022), uma instalação de madeira seguida pela obra em bronze de Flávio Cerqueira que serve de manobra para tudo isso: Tião (2017) que, baleado e amarrado, mira as portas e janelas do Solar do Ferrão que nos guiam aos entornos do Pelourinho, Centro Histórico. As obras de Zé Adário, no núcleo Tudo É Dádiva, junto a anjos católicos de madeira e ouro, ornam Orixás, de Djanira. Obra antes maltratada pela rataria que a despejou no porão do Palácio do Planalto. O quadro gerou tanta incompreensão que chegou a ser furado com uma caneta. Assim, a mostra encontra uma maneira de abolir a verticalidade proposta pelos recortes canônicos de suporte, região, movimento artístico, discurso e época. 

Pro Futuro (2022), de Marlon Amaro [Foto: Reprodução/ IG @_marlonamaro]

São obras, artistas e diálogos tecidos de forma, repito, que não busca negar os desafios e contradições. Não há razão para enganar a memória a fim de projetar um futuro utópico. Podemos finalmente olhar sem temer para o presente. Ver Orixás de Djanira agora no seu devido lugar não nos serve para esquecer nada. Não nos serve para esquecer as mazelas. Mas tampouco para limitar-nos a elas. Assim, temos um retrato do Brasil. Esse país tão símbolo de uma frase que certa vez foi dita por Gilberto Gil em entrevista ao programa da TV Cultura Roda Viva: “o mundo melhora e piora ao mesmo tempo”. No entanto, somos tão maiores do que tudo isso.

No nível da política explícita, mas sobretudo do afeto e das técnicas, vale ressaltar a obra Hakukãn (1998), de Ailton Krenak, rara pintura exposta do filósofo e líder indígena. No núcleo do Acervo da Laje há uma Iemanjá de autoria desconhecida (só se sabe que feita por um preso político) toda em couro, com texturas, cores e cheiro. Feliz saber que Yêdamaria retratou uma mulher preta digníssima, como se fosse uma rainha. Bom saber que, num dos bilhetes bordados para Lula na obra Linhas do Horizonte (2017), por Zula Aurélio e o coletivo Linhas do Horizonte, Geralda sabia que elegê-lo seria e é poder matar a fome. 

As cabeças dos homens negros perfuradas a balas da polícia (ou não) da série Cabeças (2005), de Caetano Dias, não mais despertam necessariamente a sensação de total apatia das autoridades máximas do país em relação ao genocídio das populações negras e periferias da nação. Sabemos que devemos ser melhores em muito, mas já podemos ser um pouco. Essa sensação de balança mas não cai parece mais como sendo um, mais uma vez do Gil, “o Brasil é tão grande que não cabe no abismo”. E voamos! E seguimos! Brasil Futuro é um alívio. Sem nos iludir ou poupar das tragédias, conflitos e contradições, é um alívio. Aliás, justamente por isso, é um alívio. No momento em que podemos acreditar no fim da fome, é um alívio. E melhor: muita gente pode, deve sentir e sentirá esse alívio.

Tião (2017), de Flávio Cerqueira [Foto: Fernando Barbosa]

Brasil Futuro no Solar do Ferrão é muito mais do que se imagina. Um Solar recebe esse nome por causa das janelas. Através delas as pessoas de fora veem dentro e, no caso, querem entrar. Com suas janelas abertas, o Solar do Ferrão se mostra aberto ao público, ao mundo e mais: tem a ousadia de insinuar que o que está fora não é menos valioso do que o que está dentro. Não destoa nem distrai. Ao contrário: dialoga. E é nesse diálogo entre cima e baixo, dentro e fora, direito e avesso que se destaca o sentido profundamente democrático de uma construção histórica no coração do Pelourinho. As janelas e portas do Solar do Ferrão devem continuar abertas para afirmar a sua vocação. Há também nisso o desdobramento da iluminação natural, que reduz a sensação de artificialidade e controle total do espaço sobre quem o adentra. 

Um outro ponto surpreende na arquitetura do local: as salas. Museus e galerias apostam em ambientes amplos e mais ou menos monitorados, nos quais se faz necessária quase uma performance diante de tantos olhos que podem estar observando quem observa as obras. É importante, sim, que haja monitores a fim de conversar sobre os cuidados que devemos ter. Afinal, ninguém é obrigado a saber lidar com obras de arte nesse contexto. No entanto, é mais importante estar à vontade. As pessoas devem se sentir convidadas a visitar e usufruir das suas belezas sem que impere o medo e o monitoramento a fim de evitar que a visitação possa danificá-las. E digo isso como um ato de fé de que assim seguirá o tratamento do Solar do Ferrão para/com quem visitá-lo: acolhedor. São elementos que parecem ínfimos e sutis, mas que devem ser levados em consideração para que o sentido da exposição, ecoar a democracia, seja preservado enquanto ocupar Salvador, na Bahia, no berço e coração daquilo que hoje consideramos ser alguns dos pilares fundamentais do Brasil. A Bahia que mais uma vez nos salvou quando da eleição de 2022.

Dificilmente Brasil Futuro: As Formas da Democracia encontrará um lar mais propício. No Pelourinho mesmo está sendo travada uma batalha silenciosa e traiçoeira pela permanência das ações culturais no local. Estado e Município apontam em sentidos opostos. Também sobre essa perspectiva podemos pensar a mostra Brasil Futuro como acolhedora e transformadora da/na contradição. Uma exposição que, em vários níveis, se realiza no sonho, na glória e no horror de ser tudo o que podemos ser e somos aqui e agora.