Não é a primeira vez que Laura Lima trabalha com animais. Em 2004, “Galinhas de Gala” expôs aves com extensões de plumas coloridas feitas com a técnica do mega-hair, em gaiolas especialmente desenhadas. Em 2005, preparou um banquete para faisões e pavões, com frutas, vegetais e pães. Em 2008, transformou a galeria A Gentil Carioca, no Rio, em um viveiro para dezenas de passarinhos, criando uma rota para uma hipotética “Fuga”, título da obra. Agora, em sua segunda individual na galeria Luisa Strina, em São Paulo, em cartaz a partir de quarta feira 5, Laura Lima volta a trabalhar com animais. Neste caso, gatos, que não são mais matéria prima, mas sim “colaboradores” do trabalho.
Em “Ágrafo”, os gatos não se dão a ver, assim como tampouco são visíveis os elementos que compõem as esculturas e objetos em exposição, todos embalados. Os gatos não se dão a ver porque não mais estão. Eles habitaram o espaço da galeria durante os cinco dias de montagem da exposição. Interagiram – ou não – com os tecidos, as cordas, os nós e liames produzidos pela artista para atar e obstruir as obras. Deixaram, em alguns casos, alguns rastros, indiscerníveis.
Com a aparência de revoltosas “camas de gatos”, emaranhadas, suspensas e espalhadas de forma rizomática pelo espaço da galeria, as obras oferecem às vistas mais afoitas a experiência tátil-visual de volumes sugestivos, pontudos e angulosos, que escondem seu real conteúdo e identidade. Em comentário do artista Thiago Honório, “são objetos que dilatam a curiosidade” do espectador.
São, portanto, objetos sem grafia, “ágrafos”: que não tem escrita, que não apresentam sinais gráficos. “As obras não tem título porque não dá para nominar o que não tem imagem”, diz Laura Lima, que paradoxalmente tem em seu repertório um extenso glossário de palavras, usadas para nomear e interpretar suas estratégias de trabalho.
Em texto crítico, Marta Mestre coloca o Ágrafo de Laura Lima na genealogia do “território surrealizante, pragmático e disruptivo” do escritor Raymond Roussel (1877-1933). Uma associação verdadeiramente fascinante. Mas quando atravessa a fronteira entre a imagem e a não-imagem, e supera qualquer convenção que possa limitar os trânsitos entre linguagens – o cinema, o teatro, a literatura, a festa, a performance, as artes visuais – Laura Lima também poderia estar em conexão com as pesquisas de Jean-Luc Godard, que em um dos textos grafados de seu último longa-metragem, “Adeus à Linguagem”, indaga: “Resta saber se o não-pensamento contamina o pensamento”.
Escrever sobre uma exposição àgrafa é, afinal, um contrassenso.
Serviço
Ágrafo – Laura Lima, de 5/8 a 10/9, Galeria Luisa Strina, Rua Padre João Manuel 755, São Paulo