A revisão da história hegemônica do Brasil adquire densidade reflexiva na arte contemporânea e ilumina as obras de matriz afrodescendente que abordam conceitualmente as novas diásporas do século 21. Ícaro Lira, Moisés Patrício, Daniel Lima e Jaime Lauriano são apenas quatro desses artistas que têm como locus de ação a hipercomplexidade urbana. O resgate da memória cultural, a recuperação das nossas raízes afro e a denúncia da escravidão no Brasil são agora abordados de forma direta, colocando o dedo nas feridas de nosso passado e presente.
Ponto de chegada de crescentes fluxos migratórios, a metrópole paulistana anuncia um novo processo de mediações. A presença de imigrantes africanos, coreanos, bolivianos, paraguaios e sírio-libaneses no Brasil – particularmente em São Paulo – aporta entrelaçamentos culturais com a criação de locais de encontro dessas comunidades, como bares, restaurantes e salões de dança, que promovem manifestações artísticas, musicais e gastronômicas.

O brasileiro Ícaro Lira reside no Bom Retiro, em São Paulo, para conviver com imigrantes coreanos, bolivianos e judeus lá instalados. Artista e pesquisador, ele vem do cinema e da literatura. Montagem e narrativa caracterizam a sua obra, na qual revela processos de branqueamento de imigrantes e de racismo, a partir da coleta de objetos, depoimentos, vídeos, fotos e recortes de jornal.
Ao construir uma arqueologia de dispositivos de memória, Lira resgata a história oficial soterrada pelo Estado brasileiro. Em 2015, exibiu a instalação Campo Geral (2012-2015), cartografia que trata das migrações forçadas de nordestinos para a Amazônia e para Fortaleza, no início do século 19, composta de dois eixos. O primeiro eixo, Soldados da Borracha, foca na imigração de cearenses que trabalhavam na indústria do látex. Na modernização da Região Norte, feita com o capital da borracha, o governo incentivou migrações e colonizou a Amazônia com uma mão de obra farta e barata. O segundo, Campos de Concentração, mostra acampamentos montados pelo governo, entre 1915 e 1932, que consistiam em verdadeiros “currais” de confinamento de 100 mil sertanejos, mestiços e pobres. A ideia era manter essa população afastada de Fortaleza e longe do olhar, como forma de “higienizar” a metrópole a ser modernizada.
“Foi assim com as remoções para a Copa do Mundo de 2014. Como na favela do Pirambu, em Fortaleza, que as autoridades tentaram transformar em lugar turístico, sem sucesso, porque a comunidade lá é organizada. Esses processos violentos se repetem até hoje”, diz Ícaro Lira à seLecT.
Lira acaba de integrar a Residência Artística Cambridge dentro da Ocupação Hotel Cambridge, onde realizou um censo e ações como oficinas, palestras e cineclube. O artista conviveu com africanos, árabes e haitianos músicos, artistas visuais e atores no Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (Grist), que atuam dentro da ocupação para reivindicar melhores condições de moradia em São Paulo. “O trabalho do artista imigrante é precário e restrito. Quando é convidado, é na condição de imigrante-refugiado, sem lugar institucional. Ele trabalha na construção civil ou como ambulante e chegou ao Brasil muitas vezes a partir da migração forçada. O trabalho de arte fica inviabilizado”, diz.

Oferenda poética e política
Moisés Patrício residiu na favela do Jardim Edite, na Avenida Eng. Luís Carlos Berrini, e passou por uma remoção para a Vila Industrial, situada entre São Paulo e Santo André. Ao migrar, o artista descobriu uma série de galpões abandonados, antigas fábricas falidas de cal, tijolos, cerâmica, cimento, adubos e fertilizantes. Lá trabalhou sozinho e, posteriormente, convocou artistas e coletivos para 12 ocupações e ações entre 2010 e 2013, que resultaram em três vídeos da série Movimento Artístico de Ocupação Urbana (M.A.O.U).

A última ocupação artística reuniu 400 participantes, em um parque abandonado das Indústrias Matarazzo: havia caminhões, ambulâncias, farmácias e documentos. Lá, a polícia treinava paintball. A fábrica foi ocupada às 8 horas da manhã por artistas grafiteiros e negros, vindos da periferia e do interior de São Paulo. Quando a polícia chegou, seus materiais foram confiscados e a ocupação foi dissipada.
Patrício convidou esses mesmos artistas a frequentar vernissages em galerias de arte paulistas, em 2014. Em sua listagem elencou as galerias de maior potência econômica com a intenção de dar àqueles artistas acesso ao sistema da arte – o que gerou consciência sobre as suas ausências nesses lugares. Em continuidade, o grupo tem se encontrado em estúdios de artistas e em espaços públicos, como o Museu Afro, além de manter comunicação pela internet.
Em maio, Moisés Patrício participou da Bienal de Dacar, no Senegal, a convite do Vídeobrasil com Aceita? (2013), série fotográfica em progresso. Mãos abertas são fotografadas por celular para a emissão de mensagens no Facebook e no Instagram; a obra articula relações de trabalho, escravidão, política e magia, como reação a um sistema social que limita o trabalho dos negros a afazeres braçais. “Na minha profissão, ser negro está no meu gesto, no meu código, no meu corpo, na forma como eu me projeto e oferto a minha arte”, diz Moisés Patrício à seLecT.

Daniel Lima produziu inúmeros trabalhos coletivos. Ele assume o gesto poético e político diante da arte afrodiaspórica há mais de uma década. Artista, editor, cineasta e curador, realiza intervenções midiáticas que incidem sobre o tecido urbano ao mesclar tecnologia e informação. Em 2003, realizou a intervenção Sem Saída, na Bienal de Havana. A ação consistiu em trancar policiais com cadeados em uma praça guardada por eles, denunciando truculência e controle das autoridades por meio de vídeo.

Em 2005, com o coletivo Frente 3 de Fevereiro, coordenou a ação artística do espetáculo multimídia Futebol, registrando em vídeo performances de bandeiras erguidas em estádios lotados, na hora do gol, com dizeres em escala monumental: “Onde estão os negros?” A realização da performance em Berlim conferiu reverberações internacionais ao projeto.
“’Democracia racial’ é um mito a ser desconstruído no Brasil, onde existe um ideal de democracia racial. Ao mesmo tempo que existe o ideal de harmonizar – durante o carnaval e o futebol, onde todos se abraçam na hora do gol, por tempo determinado – coloca-se cada um em seu lugar, pois essa democracia não é praticada no dia a dia. A pergunta é: onde estão os negros, que lugar eles ocupam na arte contemporânea?”, questiona.
Daniel Lima e Tulio Tavares organizaram a exposição Zona de Poesia Árida, no Museu de Arte do Rio (MAR), em 2015, com o projeto de formar uma coleção de obras de coletivos. “Formou-se uma coleção sobre coletivos de São Paulo única no mundo, cujo maior valor está no seu poder de gerar sentido. Colocamos a coleção inteira, com mais de 50 obras, em um museu sem intermediação de galerias”, conta o artista, que atualmente trabalha com imigrantes haitianos em ações subsidiadas pelo Instituto Goethe.
Um dos artistas mais conhecidos da afrodiáspora é Jaime Lauriano. Com a aquisição da obra Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá (2015), pela Pinacoteca do Estado, ele ingressa na história da arte oficial e espera que sua obra esteja necessariamente alocada em espaços de domínio público.
Lauriano trabalha com desenhos, objetos, vídeos e é curador. Representa os primeiros mapas do Brasil – o primeiro da série é Terra Brasilis (2015) – com pemba branca, giz utilizado na Umbanda. Atua no campo da educação, pensando a história do Brasil por meio do confronto de narrativas, em espaços culturais e escolas da periferia. Processos de gentrificação, etnocídio, democracia racial e história não oficial estão em seu repertório.

Em 2015, participa da Bienal de Bamako, no Mali, e, incomodado com o fluxo reparatório intenso da agenda do continente europeu que promove o turismo cultural para o continente africano, denuncia as novas formas de escravidão do movimento diaspórico.
“As migrações atuais são novamente originárias de atos forçados – não o sequestro, mas a fuga –, em consequência da exploração europeia. Como evitar a repetição de procedimentos de séculos atrás, que promovem a manutenção de um ultracapitalismo?”, questiona. Além do vídeo Genocídio 3 (2015), apresentado em Bamako, o artista criou uma performance de rua, assinalando seu percurso entre a Bienal e um bar da cidade. “Busquei a ligação museu-espaço público. Durante quatro dias, eu fazia e repetia um desenho com cal e um espanador improvisado que virou pincel, refazendo a rota”, conta.
Lauriano integra a Residência Artística Cambridge dentro da Ocupação Cambridge, neste segundo semestre, e lá tomará contato com a produção de artistas. Aposta na troca potente entre visões diferentes e convergentes, o que lhe permitirá pensar melhor a sua própria obra e indaga: “Como lidaremos com a nova diáspora que acontece aqui?”
A visão estética eurocêntrica começa a dar sinais de hibridização entre nós e a pertinência dessas questões ecoa em obras de muitos outros artistas e curadores. Em tempo, essas pesquisas, os trabalhos artísticos e a dedicação dos que se têm debruçado sobre a revisão histórica contribuem para a gradativa inserção dos trabalhos de matriz afro no sistema das artes.