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J. (1991), de Catherine Opie, da série Being and Having [Foto: cortesia da artista e de Regen Projects, Los Angeles; Lehmann Maupin, Nova York, Hong Kong, Londres e Seul; Thomas Dane Gallery, Londres e Nápoles]
Postado em 19/09/2024 - 4:25
Catherine Opie e a história do futuro
Em conversa com a artista Catherine Opie e o cocurador do Masp Guilherme Giufrida, a redação da celeste discute os cânones que a exposição O Gênero do Retrato retoma e critica

A exposição O Gênero do Retrato é a primeira individual de Catherine Opie no Brasil. O Masp responde à enorme missão de trazer a artista para um público amplo com uma exposição que mobiliza o acervo em função de sua obra. Essa preocupação curatorial vai contra um tradicionalismo museológico de centrar-se no próprio acervo, comum aos museus históricos, como aqueles que atraem turistas na Europa. O Masp não deixa de ser um museu histórico, frisa Giufrida em sua conversa com a celeste: “Este museu foi construído por um casal de italianos nos anos 1940, com essa coleção enciclopédica europeia”. Isso significa que o acervo não será deixado de lado, mas ele existe como um dado histórico e é mobilizado para criar novos fatos históricos. Ainda que o museu seja, diz Giufrida, “um lugar onde as coisas são guardadas, onde a história, de alguma maneira, se materializa”, essa porosidade do Masp com o agora é uma forma de criar uma história para o futuro. A importância dessa discussão para a obra de Opie? Bem, podemos dizer que fazer a história do futuro com as imagens do passado é seu modus operandi.

Novos cânones
Desde os anos 1980, Catherine Opie cria séries fotográficas dedicadas a retratar, documentar e disseminar representações de sua comunidade, principalmente (mas não somente) LGBTQIA+, que acolheu a artista quando se mudou para a Califórnia, onde vive e trabalha. Na época, Opie se sentia compelida a produzir essa iconografia, e a celeste pergunta se a motivação inicial é pessoal ou política. Opie responde que não consegue fazer essa distinção em sua obra. “Meu corpo não era aceito, não era considerado normal, não estava representado na televisão, no cinema ou na propaganda, portanto cabia a mim produzir imagens da minha comunidade como uma declaração de existência, como testemunho de normalidade do meu e de tantos corpos não conformistas”, conta.

Para a forma desse testemunho, a artista dialeticamente se volta ao cânone representacional. A linguagem que ela escolhe para construir sua pesquisa não é da militância política: Opie utiliza todo o instrumental da estética fotográfica, com ênfase nos dispositivos da retratística ao longo da história da arte, para compor suas obras. Cada fotografia da artista mobiliza cuidadosamente um extenso acervo de gestos, iluminação, pose, símbolos, vestimentas, ângulos e contexto material e ideológico para situar seus retratados. A mostra do Masp trabalha isso através de relações elucidativas entre as imagens.

O poeta Henry Howard, conde de Surrey (c1542), de Hans Holbein [Foto: João Musa/ Reprodução]

Giufrida explica que a pesquisa curatorial não partiu do acervo, mas da iniciativa de trazer a individual de Catherine Opie, que se desenrolou em sobreposições. E elas estão tão formalmente presentes na obra da artista que “às vezes fica parecendo que ela fez um retrato comissionado pelo museu, porque o diálogo fica tão forte pela pose, pela cor, às vezes até pelo tamanho da obra”, ele diz. As preocupações formais se desdobram em pares formados, por exemplo, por uma pintura de uma Madonna segurando Jesus ao lado do retrato de Opie com seu filho no colo, ou pelo feliz encontro da pintura O Poeta Henry Howard, Conde de Surrey (1542), de Hans Holbein, o Jovem, com a obra JD, da série Girlfriends (2008). São deslocamentos da tradição do retrato da nobreza para a representação de, digamos, um jovem trans que, esteticamente, demanda igual dignidade.

JD (2008), de Catherine Opie, da série Girlfriends [Foto: cortesia da artista e de Regen Projects, Los Angeles; Lehmann Maupin, Nova York, Hong Kong, Londres e Seul; Thomas Dane Gallery, Londres e Nápoles]

Essa escolha pode até ser, a princípio, resquício das referências de formação de Opie como fotógrafa. Em mais de uma ocasião da entrevista ela comenta que é, sobretudo, uma formalista. Mas não é por acaso que sua obra tenha sido alçada à história do futuro, espelhando a história representacional do passado que comenta. É o formalismo dos seus retratos que os coloca politicamente com tanta contundência. O formalismo torna-se uma forma de exigência: a exigência de poder ser formalista, sendo uma mulher, uma lésbica, uma butch, uma mãe. O preciosismo formal não será apenas dos homens brancos, ricos, heterossexuais, e os sujeitos retratados exigem o mesmo apuro de serem alçados a um universalismo sem perderem nada de sua particularidade, como fez a nobreza antes deles.

Destruindo a família tradicional
Em séries como Girlfriends, Opie retrata suas amigas em situações e enquadramentos que desafiam as ideias binárias do masculino e feminino e que colocam as retratadas em posição de potência sexual e desinibição. Mas também fotografa essas mulheres interagindo, rindo e se divertindo com essas quebras de normas, abraçando as relações formadas em comunidades de mulheres. Não à toa o tema da comunidade é recorrente na crítica de seu trabalho: mesmo fotografando indivíduos, a sua obra está distante de uma ética individualista. Isso está nas fotografias de membros do BDSM, que carregam nas cenas simbologias e relações construídas coletivamente; ou em sua série Surfers (2019), na qual os sujeitos devem ser compreendidos à luz das fotos em que eles estão a distância no mar, tornando-se pontos indistintos em meio às ondas.

Autorretrato (c1542-3), de Hans Holbein, o Jovem [Foto: Stephanie Buck/ domínio público]
Flipper, Tanya, Chloe & Harriet, San Francisco, California (1995), da série Doméstico [Foto: cortesia da artista e de Regen Projects, Los Angeles; Lehmann Maupin, Nova York, Hong Kong, Londres e Seul; Thomas Dane Gallery, Londres e Nápoles]

Ao ser questionada pela celeste sobre o que é comunidade em sua obra, Opie responde com um relato pessoal. Conta que, em sua infância, as relações de cuidado existiam em lugares para além da família; que podia “amparar -se em um vizinho que lhe oferecesse uma refeição”, por exemplo. Mais tarde, ao se mudar de Ohio e construir relações na comunidade LGBTQIA+, ela percebeu que a ideia de família escolhida em oposição à família nuclear já era presente em sua vida. Em Domestic (1995), o desafio às ideias tradicionais de família se concretiza visualmente.

Assim, estabeleceu laços de amizade e amparo mútuo com amigos e amantes ao longo do tempo e construir uma família estendida foi especialmente importante nos primeiros anos da epidemia de HIV/Aids, quando perdeu muitas pessoas próximas. “Abordar o cotidiano de afeto e de luta por direitos das pessoas da comunidade LGBTQIA+ era uma forma de defesa de um mundo mais justo, igualitário e humano para todos”, afirma Opie.

Esse relato elucida por que a comunidade é o centro de pertencimento de Opie, mais do que a ideia de identidade. Até porque a identidade está fluida, em um jogo com a ideia moderna de individualidade e da história retratística (que andam em paralelo) e com a sociedade binária e patriarcal. Na série Being and Having (1991) questiona-se justamente o que compõe essa identidade (o ser e o ter) através de personagens fluidos, que não buscam totalmente a passabilidade masculina, mas sim a transformam em acessório caricato. A série é amplamente associada pela crítica como correlata à publicação, um ano antes, de Problemas de Gênero, por Judith Butler. Não porque uma responde diretamente à outra, mas porque estão teorizando as questões de performatividade e fluidez ao mesmo tempo, em linguagens diferentes.

Gênero, Masp e futuro poroso
Durante a entrevista, Giufrida reitera a tese presente em seu texto para o catálogo. A duplicidade de sentido da palavra gênero no título da mostra fortuitamente designa os jogos que Opie faz com o gênero do retrato e com o gênero binário socialmente construído. Ainda que essa duplicidade não esteja dada no inglês (que a desmembra nos termos genre e gender), ele argumenta que não é uma mera coincidência linguística – até porque, na obra de Opie, “mera coincidência” não existe. A tese é que “a história do retrato performou uma certa divisão binária dos gêneros. A própria ideia do masculino e do feminino, ela é performada, ela é atualizada pelo retrato”.

Mas não se propõe que a história da retratística seja jogada na lata do lixo da história, até porque Giufrida atribui a ela uma revolução: da representação do transcendente, do divino, para a representação do humano e material. E assim como o acervo dos museus históricos permanece sendo guardado e preservado para permitir que desdobramentos atuais revelem – e construam – uma nova história, os próprios museus devem se permitir essa revelação.

Ao ser questionado sobre o acervo do Masp e suas deficiências históricas, como a parcela minoritária de mulheres e pessoas não brancas compondo o acervo, o curador relembra que o Masp começou chancelando uma dominância cultural, e isso se coloca hoje como um desafio curatorial. Mas, curiosamente, não é a diversificação das equipes do museu que leva às novas iniciativas, mas o contrário. À medida que a programação responde ao cenário complexo e mutante das discussões sociais, “uma questão que nasce da programação acaba reverberando na própria diversificação do público e do próprio quadro de funcionários”. Ou seja, o movimento é orgânico e só ocorre quando se deixa atravessar pelo social. A missão que Opie relega, então, é se deixar atravessar pelo questionamento de gênero – em ambos os sentidos.

Colaborou Juliana Monachesi

Serviço
Catherine Opie: o gênero do retrato
MASP
Curadoria de Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida
Até 27/10