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Postado em 07/03/2023 - 4:19
Manifesto editorial ceLesTe
Leia o editorial da edição #57 da seLecT_ceLesTe, primeira do ano dedicada ao tema #real

Há um ano, decidimos que nossos editoriais seriam manifestos. Imersos na maior campanha ativista em que a revista jamais se engajara, voltada para a defesa da democracia e a retomada da arte e da vida como motores de uma sociedade saudável, intitulamos nossas edições com verbos propositivos de ações e transformamos os editoriais em manifestos.

O ano de 2023 começa com a mudança de governo no Brasil, o quase fim da pandemia, a virada testemunhal na arte, na literatura e na história, o fortalecimento das políticas identitárias, da autorrepresentação. A edição #57 trata dessa VIRADA. Celebramos também a virada de página da própria revista, que adota o nome espelhado seLecT_ceLesTe.

celeste, essa palavra que traz bons ventos de expansão, inclusão, cooperação, reflexividade, vibração, ressonância, já orbita nossos textos e imaginários há tempos. Em 2021, celeste surgiu como o podcast da revista seLecT e, ao longo das pesquisas para as edições da série Floresta, passeamos pelos conhecimentos indígenas sobre o céu. A escrita dos céus orienta a Redação da revista desde o princípio, quando o astrofísico Marcelo Gleiser nos brindou com um texto sobre a constelação do Cruzeiro do Sul, na segunda edição da seLecT, em 2011. Em fevereiro de 2016, na semana em que a existência do som do universo – contido em ondas gravitacionais – foi comprovada pela ciência, nos pusemos a escutar estrelas e a escrever sobre a instalação da artista Chiara Banfi sobre o som dos minerais e dos cometas.

Nesta #57, as artistas Igi Lola Ayedun, Sondra Perry e Vitória Cribb fazem a virada celeste, com suas tecnologias fabulativas para novas realidades pretas. A curadoria editorial de Leandro Muniz expõe trabalhos que dão outras visualidades aos mecanismos de representação do universo. A historiadora Bénédicte Savoy, entrevistada por Márcio Seligmann-Silva, relata a virada patrimonial que devolve obras de arte roubadas durante a era colonial às suas culturas de origem. E a virada testemunhal é aqui protagonizada por Annie Ernaux, em ensaio de Ricardo Lísias; Bruno Alves e Lucas Almeida, em reportagem de Eloisa Almeida; e a “arte em primeira pessoa” de Aline Motta, Vulkanica Pokaropa, Tadáskía e Élle de Bernardini.

E este editorial-manifesto continua a virar a noite, caçando sentidos da palavra celeste em textos, como o olho caça estrelas cadentes.

Até os confins do sistema solar há quatro horas- luz; até a estrela mais próxima, quatro anos-luz. Um desmedido oceano de vazio. Mas estamos realmente seguros de que só exista um vazio? Unicamente sabemos que neste espaço de luz não existem estrelas luminosas; se existissem, seriam visíveis? E se existissem corpos não luminosos ou escuros? Não poderia acontecer que nos mapas celestes, assim como nos mapas terrenos, este- jam indicadas as estrelas-cidades e omitidas as estrelas-aldeias? Escritores soviéticos de ficção científica arranhando-se no rosto à meia-noite. – Os infrassóis (Drummond diria os alegres com- panheiros proletários) (…) – Quem terá atraves- sado a cidade e por uma única música só terá ouvido os assobios de seus semelhantes, suas próprias palavras de assombro e raiva?
Do Manifesto Infrarrealista, de Roberto Bolaño, em texto de Ronaldo Bressane na seLecT #43

Afirmar que a Terra gira ao redor do Sol significa, também, negar a separação ontológica entre o espaço terrestre, humano, e o espaço celeste, não humano, e, portanto, transformar a própria ideia de céu. O céu não é mais uma atmosfera acidental que envolve o chão, é a única substância do universo, a natureza de tudo o que existe. O céu não é o que está no alto. O céu está em toda parte: é o espaço e a realidade da mistura e do movimento, o horizonte definitivo a partir do qual tudo deve se desenhar. Só há céu, por toda parte: e tudo, mesmo nosso planeta e o que ele alberga, não passa de uma porção condensada dessa matéria celeste infinita e universal. (…) Afirmar a continuidade material entre a Terra e o resto do universo significa alterar a própria ideia de Terra. A Terra é corpo celeste, e tudo é céu nela. O mundo humano não é a exceção de um universo não humano; nossa existência, nos- sos gestos, nossa cultura, nossa linguagem, nossas aparências são celestes de ponta a ponta.
Emanuele Coccia, A Vida das Plantas – uma Metafísica da Mistura

Minha vida onírica desenvolveu a potência de um romance de Ursula K. Le Guin. (…) Para os gregos, e para mim em meu sonho, Urano era o teto sólido do mundo, o limite da abóbada celeste. Em inúmeras invoca- ções rituais gregas, Urano é visto como a casa dos deuses ou, para seguir a semântica do sonho, o lugar distante e etéreo onde os deuses tinham seus apartamentos. (…) Das núpcias incestuosas e pouco heterossexuais entre o céu e a terra nasceu a primeira geração de titãs, entre os quais Oceano (a Água), Cronos (o Tempo) e Mnemosine (a Memória).
Paul B. Preciado, Um Apartamento em Urano

Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascen- tes dos rios muito antes de meus pais nascerem e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. (…) Sabemos que eles permanecem ao nosso lado na floresta e continuam mantendo o céu no lugar.
Davi Kopenawa e Bruce Albert, A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami

Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida.
Itamar Vieira Júnior, Torto Arado

ceLesTe está no ar.

Capa da edição 57 [Foto: Há Muito Que Venho Sonhando com Imagens Que Nunca Vi VIII (2022), de Igi Lola Ayedu]

 

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