O nome vem do fato de o edifício ter sido construído nas proximidades de um curso d’água que ali corria e que teve destino semelhante a centenas de outros arroios, riachos e caudais da cidade, e do Pinheiros, rio de muitos afluentes: a canalização. A Usina Elevatória de Traição foi construída para elevar e inverter o sentido das águas do Pinheiros, inicialmente para aumentar a capacidade de geração de eletricidade da hidrelétrica instalada na base da Serra do Mar; hoje, acionada em situações de emergência, no controle de enchentes. Para esse edifício que vive entre os estados de dormência e insônia, que é despertado aos sobressaltos em meio a chuvas torrenciais, imaginamos um futuro.
E se, antes de ter parte de suas instalações convertidas em um hub de negócios e serviços, fruto de uma “inovadora” parceria entre o poder público e a especulação imobiliária, a usina fosse ocupada por projetos artísticos? A exemplo do que o museu Tate Modern faz há 25 anos, ou da Manifesta 15, a bienal europeia itinerante, que ano passado ocupou uma antiga hidrelétrica da zona metropolitana de Barcelona?

SE FOSSE CINEMA
Embora a monumental sala das turbinas fosse naturalmente adaptável para projeções cinemascope, onde a simulação do efeito tridimensional pudesse criar a ilusão de atores e objetos reais, o formato ideal para a ocupação do edifício seria o de filme-instalações imersivas multicanal. Dessa forma, conceitos e personagens dos filmes se espalhariam à vontade por câmaras, porões, corredores, escadarias, elevadores, torre e laje da Traição, em roteiros de invenção.
O fato de a Traição ter sido inaugurada em 1940, mesmo ano da publicação de A Invenção de Morel, em Buenos Aires, talvez fosse um motivo para o comissionamento de uma adaptação de O Ano Passado em Marienbad para o formato multicanal ou instalativo – muito embora o filme de Resnais esteja longe de alcançar a complexidade do romance de Casares. Assim, se a usina fosse convertida em cinema, talvez o clássico que melhor espelhasse aquele lugar fosse O Anjo Exterminador.
As cenas do filme seriam repetidas ad infinitum, em loop, produzindo no público um efeito encantatório, impedindo-o de sair da usina por dias, meses a fio. Os visitantes se esparramariam nos vertiginosos 30 mil metros quadrados do edifício, perseguindo as personagens que deslizariam como fantasmas entre os porões e as salas de turbinas. Desde a laje, contemplariam a cidade congestionada ao pôr do sol. Deitariam na relva das margens do rio, sem perceber o alarme da enchente soar. Seguiriam conversando, ouvindo música ou dançando, enquanto a tempestade de chuva e de vento arrancaria árvores. O público então permaneceria hospedado no Cine-traição por 15 longos dias, testemunharia várias enchentes, aprenderia a reparar os estragos das inundações, se habituaria aos sinais de emergência e dominaria um novo e abundante léxico de palavras hidrelétricas. Repousaria em subtensão, acordaria em excitação, entraria em potência reversa, avançaria em sobrecorrente e se entregaria sem resistência à Excitatriz nº 7, a heroína do filme, especialista na arte da traição.


AS TRÊS CHAMINÉS
Se fosse cinema, a Traição também teria em sua programação a projeção de The Eleventh Year, de Dziga Vertov, realizado na técnica kino-eye [cinema-olho], em 1928, para marcar o 11º aniversário da Revolução de Outubro. Um filme-propaganda para celebrar o salto da União Soviética para a modernidade, focando a construção da Estação Hidrelétrica de Dnipro (Dnipro HPS), um projeto de obras públicas em eletrificação na Ucrânia que atestou o poder de engenharia do império ditatorial.
SE FOSSE ESPAÇO DE PENSAMENTO
A Traição investiria em projetos de arte e literatura, a exemplo do que fez a artista Dominique Gonzalez-Foerster na Turbine Hall da Tate Modern, quando a seção central da hidrelétrica londrina se tornou espaço para esculturas em grandes dimensões e arte site-specific. TH.2058 (2008) imaginava o museu londrino em um futuro não muito longínquo, transformado em abrigo da população durante um dilúvio. As grandes obras da arte – como Maman (1999), a aranha gigante de Louise Bourgeois –, do cinema e da literatura mundial ganharam a guarda do museu e os 35 metros de altura e 152 metros de comprimento da sala de turbinas foram inteiramente varridos por beliches, réplicas de esculturas e livros de JG Ballard, Philip K Dick, Roberto Bolaño, G.W. Sebald, Virginia Woolf, Vladimir Nabokov, Walter Benjamin, Enrique Vila-Matas, entre outros. Posteriormente, Gonzalez-Foerster tornou-se a protagonista fictícia de Vila-Matas no romance Marienbad Électrique.
Se fosse um espaço de arte, a Usina Elevatória de Traição se prestaria a pensar sobre as utopias alcançadas via desenvolvimento industrial e sobre todas as outras que ficaram soterradas junto aos rios urbanos. Este seria o eixo central do argumento curatorial de uma primeira exposição concebida para o espaço. Ela se intitularia A Reta É o Desvio.


Tudo começa com o desvio. O desvio, a sinuosidade e a impermanência que são inerentes às coisas. E tudo prossegue com o desvio desse curso natural das coisas.
No início, havia a corredeira do Rio Jurubatuba – em tupi-guarani “lugar onde há muitas palmeiras jerivás” –, que se dava em sinuosidade, desviando de pedras, morros, pequenos acidentes de percurso. O desvio da natureza do Jurubatuba começa quando lhe mudam o nome. É lá por 1556, quando suas terras foram invadidas por jesuítas, que não tinham olhos para os jerivás – nem para as culturas locais –, mas para outras árvores que também abundavam ali, as araucárias, popularmente chamadas de pinheiros-do-paraná.
A operação calculada de desvio do agora Pinheiros se intensifica com a industrialização da cidade, e se consolida com a sua retificação, que ocorre coordenada a uma série de obras de barragens, represas, usinas hidrelétricas e elevatórias que começam nos primeiros anos do século passado (leia no box). É quando o rio é convertido em canal, o uso múltiplo das águas da cidade é desviado para a “monocultura” da geração de energia, e a equação da contradição se estabelece: retirada de curvas + matas ciliares = acentuação das inundações.
A curadoria A Reta É o Desvio se estruturaria sobre três pilares – ou vazamentos do imaginário industrial na arte. O primeiro, uma das pedras fundamentais da arte contemporânea, seria um dos readymades retificados de Marcel Duchamp, esses objetos industriais que não são simplesmente encontrados e desviados de seu uso comum para o espaço da arte, mas que, ao serem articulados a outros objetos apropriados (readymades), são ajustados, corrigidos, retificados. Exemplo: a roda de bicicleta sobre o banquinho de madeira. Um segundo pilar desviante se erigiria a partir das serigrafias da série Metros (1977-1992), de Cildo Meireles, em que esses instrumentos de medição são privados de sua função técnica para se converter em ícones da imensurabilidade.
Na Traição, os fatores já determinantes do trabalho – cálculo, incerteza, risco, confronto, choque, impacto, violência, atração, tensão, desconforto – seriam hiperpotencializados pela experiência hidrelétrica. A estética do choque produzida pela obra viria a consolidar os movimentos de demolição do castelo de ilusões da sociedade tecnocapitalista para formatar outro léxico de utopias socioenergéticas, quando o seguinte roteiro de ação se aplicaria:
Com o tempo de partida excedido, Excitatriz nº 7, a identidade pós-industrial de Paula Garcia, se desmaterializaria, perderia suas carcaças de proteção atuada, caminharia em direção ao carro, giraria a ignição, subiria os níveis de velocidade com excitação em sobrecarga e, num lapso de tempo não controlado, acionaria a potência reversa.
