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Usina Elevatória da Traição em fotografia de Victor Moriyama, residente da Arte Celeste #3 [Foto: Victor Moriyama]
Postado em 07/05/2025 - 8:01
Cine-traição
O que seria da Usina Elevatória de Traição se, antes de virar hub de negócios e serviços, fosse convertida em espaço de arte, experimentação e pensamento?

O nome vem do fato de o edifício ter sido construído nas proximidades de um curso d’água que ali corria e que teve destino semelhante a centenas de outros arroios, riachos e caudais da cidade, e do Pinheiros, rio de muitos afluentes: a canalização. A Usina Elevatória de Traição foi construída para elevar e inverter o sentido das águas do Pinheiros, inicialmente para aumentar a capacidade de geração de eletricidade da hidrelétrica instalada na base da Serra do Mar; hoje, acionada em situações de emergência, no controle de enchentes. Para esse edifício que vive entre os estados de dormência e insônia, que é despertado aos sobressaltos em meio a chuvas torrenciais, imaginamos um futuro.

E se, antes de ter parte de suas instalações convertidas em um hub de negócios e serviços, fruto de uma “inovadora” parceria entre o poder público e a especulação imobiliária, a usina fosse ocupada por projetos artísticos? A exemplo do que o museu Tate Modern faz há 25 anos, ou da Manifesta 15, a bienal europeia itinerante, que ano passado ocupou uma antiga hidrelétrica da zona metropolitana de Barcelona?

 

Projeção de The Eleventh Year (1928), de Dziga Vertov, na antiga hidrelétrica da região metropolitana de Barcelona, sede da Manifesta15 [© Dziga Vertov, © Manifesta 15 Barcelona Metropolitana, foto por Ivan Erofeev]

SE FOSSE CINEMA

Embora a monumental sala das turbinas fosse naturalmente adaptável para projeções cinemascope, onde a simulação do efeito tridimensional pudesse criar a ilusão de atores e objetos reais, o formato ideal para a ocupação do edifício seria o de filme-instalações imersivas multicanal. Dessa forma, conceitos e personagens dos filmes se espalhariam à vontade por câmaras, porões, corredores, escadarias, elevadores, torre e laje da Traição, em roteiros de invenção.

O fato de a Traição ter sido inaugurada em 1940, mesmo ano da publicação de A Invenção de Morel, em Buenos Aires, talvez fosse um motivo para o comissionamento de uma adaptação de O Ano Passado em Marienbad para o formato multicanal ou instalativo – muito embora o filme de Resnais esteja longe de alcançar a complexidade do romance de Casares. Assim, se a usina fosse convertida em cinema, talvez o clássico que melhor espelhasse aquele lugar fosse O Anjo Exterminador.

As cenas do filme seriam repetidas ad infinitum, em loop, produzindo no público um efeito encantatório, impedindo-o de sair da usina por dias, meses a fio. Os visitantes se esparramariam nos vertiginosos 30 mil metros quadrados do edifício, perseguindo as personagens que deslizariam como fantasmas entre os porões e as salas de turbinas. Desde a laje, contemplariam a cidade congestionada ao pôr do sol. Deitariam na relva das margens do rio, sem perceber o alarme da enchente soar. Seguiriam conversando, ouvindo música ou dançando, enquanto a tempestade de chuva e de vento arrancaria árvores. O público então permaneceria hospedado no Cine-traição por 15 longos dias, testemunharia várias enchentes, aprenderia a reparar os estragos das inundações, se habituaria aos sinais de emergência e dominaria um novo e abundante léxico de palavras hidrelétricas. Repousaria em subtensão, acordaria em excitação, entraria em potência reversa, avançaria em sobrecorrente e se entregaria sem resistência à Excitatriz nº 7, a heroína do filme, especialista na arte da traição.

AS CENAS EM LOOP PRODUZIRIAM NO PÚBLICO UM EFEITO ENCANTATÓRIO, IMPEDINDO-O DE SAIR DA USINA POR DIAS, MESES A FIO
Antiga hidrelétrica As Três Chaminés, em Barcelona [Foto: Arnau Rovira]

AS TRÊS CHAMINÉS

Se fosse cinema, a Traição também teria em sua programação a projeção de The Eleventh Year, de Dziga Vertov, realizado na técnica kino-eye [cinema-olho], em 1928, para marcar o 11º aniversário da Revolução de Outubro. Um filme-propaganda para celebrar o salto da União Soviética para a modernidade, focando a construção da Estação Hidrelétrica de Dnipro (Dnipro HPS), um projeto de obras públicas em eletrificação na Ucrânia que atestou o poder de engenharia do império ditatorial.

Fachada da Tate Modern, que por 25 anos ocupa uma antiga hidrelétrica na beira do rio Tâmisa, em Londres [Reprodução]
Em 2024, uma cópia restaurada de The Eleventh Year foi projetada na Manifesta15, que ocupou uma antiga hidrelétrica em Sant Adrià de Besòs. Como a Dnipro HPS, destruída na Segunda Guerra Mundial e posteriormente reconstruída, As Três Chaminés da zona metropolitana de Barcelona incorporaram um ideal industrial, econômico e social de futuro, quando foram erguidas, nos anos 1970, na margem do Rio Besòs. Outras 18 obras de arte contemporânea – trabalhos de Carolina Caycedo, Carlos Bunga, Kiluanji Kia Henda e Claire Fontaine, entre outros – foram instaladas na hidrelétrica desativada, dentro do programa Imagining Futures, servindo a reflexões sobre o atual estágio de transição do aparelhamento industrial dos rios para seus usos pós-industriais.

When Women Strike the World Stops (2020), de Claire Fontaine, na Manifesta15 [© Claire Fontaine, © Manifesta 15 Barcelona Metropolitana, foto por Ivan Erofeev]

SE FOSSE ESPAÇO DE PENSAMENTO

A Traição investiria em projetos de arte e literatura, a exemplo do que fez a artista Dominique Gonzalez-Foerster na Turbine Hall da Tate Modern, quando a seção central da hidrelétrica londrina se tornou espaço para esculturas em grandes dimensões e arte site-specific. TH.2058 (2008) imaginava o museu londrino em um futuro não muito longínquo, transformado em abrigo da população durante um dilúvio. As grandes obras da arte – como Maman (1999), a aranha gigante de Louise Bourgeois –, do cinema e da literatura mundial ganharam a guarda do museu e os 35 metros de altura e 152 metros de comprimento da sala de turbinas foram inteiramente varridos por beliches, réplicas de esculturas e livros de JG Ballard, Philip K Dick, Roberto Bolaño, G.W. Sebald, Virginia Woolf, Vladimir Nabokov, Walter Benjamin, Enrique Vila-Matas, entre outros. Posteriormente, Gonzalez-Foerster tornou-se a protagonista fictícia de Vila-Matas no romance Marienbad Électrique.

Se fosse um espaço de arte, a Usina Elevatória de Traição se prestaria a pensar sobre as utopias alcançadas via desenvolvimento industrial e sobre todas as outras que ficaram soterradas junto aos rios urbanos. Este seria o eixo central do argumento curatorial de uma primeira exposição concebida para o espaço. Ela se intitularia A Reta É o Desvio.

Detalhe de TH. 2058 (2008), de Dominique Gonzalez-Foerster, na Turbine Hall da Tate Modern [Foto: ©Dominique Gonzalez-Foerster, Jon Cartwright]

Tudo começa com o desvio. O desvio, a sinuosidade e a impermanência que são inerentes às coisas. E tudo prossegue com o desvio desse curso natural das coisas.

No início, havia a corredeira do Rio Jurubatuba – em tupi-guarani “lugar onde há muitas palmeiras jerivás” –, que se dava em sinuosidade, desviando de pedras, morros, pequenos acidentes de percurso. O desvio da natureza do Jurubatuba começa quando lhe mudam o nome. É lá por 1556, quando suas terras foram invadidas por jesuítas, que não tinham olhos para os jerivás – nem para as culturas locais –, mas para outras árvores que também abundavam ali, as araucárias, popularmente chamadas de pinheiros-do-paraná.
A operação calculada de desvio do agora Pinheiros se intensifica com a industrialização da cidade, e se consolida com a sua retificação, que ocorre coordenada a uma série de obras de barragens, represas, usinas hidrelétricas e elevatórias que começam nos primeiros anos do século passado (leia no box). É quando o rio é convertido em canal, o uso múltiplo das águas da cidade é desviado para a “monocultura” da geração de energia, e a equação da contradição se estabelece: retirada de curvas + matas ciliares = acentuação das inundações.

A curadoria A Reta É o Desvio se estruturaria sobre três pilares – ou vazamentos do imaginário industrial na arte. O primeiro, uma das pedras fundamentais da arte contemporânea, seria um dos readymades retificados de Marcel Duchamp, esses objetos industriais que não são simplesmente encontrados e desviados de seu uso comum para o espaço da arte, mas que, ao serem articulados a outros objetos apropriados (readymades), são ajustados, corrigidos, retificados. Exemplo: a roda de bicicleta sobre o banquinho de madeira. Um segundo pilar desviante se erigiria a partir das serigrafias da série Metros (1977-1992), de Cildo Meireles, em que esses instrumentos de medição são privados de sua função técnica para se converter em ícones da imensurabilidade.

CRU/RAW (2020-2025), de Paula Garcia [© Paula Garcia, foto por Edouard Fraipont]
Completaria o tripé de intervenções o comissionamento para uma versão da ação Cru (2020-2025), de Paula Garcia, especificamente concebida para a sala de turbinas da Traição. O projeto consiste na colisão frontal entre dois carros – um dirigido pela artista, o outro por um dublê profissional. Nesse acidente calculado, elabora-se fisicamente o impacto da violência programada sobre corpos humanos. O risco não é evitado, apenas potencializado pelo longo e meticuloso cálculo das condições técnicas de segurança. O corpo-máquina da artista, massa corpórea industrial, é convertido em peça cuja eficiência não é garantida. O sucesso é o erro.

Na Traição, os fatores já determinantes do trabalho – cálculo, incerteza, risco, confronto, choque, impacto, violência, atração, tensão, desconforto – seriam hiperpotencializados pela experiência hidrelétrica. A estética do choque produzida pela obra viria a consolidar os movimentos de demolição do castelo de ilusões da sociedade tecnocapitalista para formatar outro léxico de utopias socioenergéticas, quando o seguinte roteiro de ação se aplicaria:

Com o tempo de partida excedido, Excitatriz nº 7, a identidade pós-industrial de Paula Garcia, se desmaterializaria, perderia suas carcaças de proteção atuada, caminharia em direção ao carro, giraria a ignição, subiria os níveis de velocidade com excitação em sobrecarga e, num lapso de tempo não controlado, acionaria a potência reversa.

CRU/RAW (2020-2025), de Paula Garcia, com infiltração gráfica de Nina Lins [©Paula Garcia, foto por Edouard Fraipont]