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Entre-lugar (2023) na fachada da Pina Contemporânea, em São Paulo [Foto: Coletivo Coletores]
Postado em 20/05/2025 - 5:00
Coletores de memórias
Coletivo da Zona Leste de São Paulo tensiona apagamentos históricos de espaços públicos com arte e tecnologia

Um tecido retangular vermelho frequentemente utilizado como acessório. Versátil e maleável, feito de algodão ou seda, pode ser usado como adereço de cabeça ou ferramenta de afirmação de identidade e insurgência. Ao longo da história, a bandana tornou-se um símbolo indissociável de seu caráter político em movimentos sociais – pelos direitos civis, raciais, trabalhistas, feministas e LGBTQIA+. Na ocasião desta entrevista, realizada no ateliê dos artistas, ela está espalhada por todos os lados – repousa na cabeça de Toni, é pendurada na calça de Flávio e na parede da sala, no formato de uma serigrafia emoldurada. Sua estampa carrega alguns dos símbolos da tradicional padronagem gráfica kashmir – lágrimas em composições florais. Na série Bandanas (2022), o Coletivo Coletores apropria-se desse ícone para a criação de novas representações. Uma de suas bandanas coloca uma munição de arma de fogo e uma flecha em oposição direta; ao redor, caem lágrimas, e ainda é possível observar quatro crânios de caveiras nas laterais da peça – um símbolo de letalidade que também costuma estampar fardas de batalhões da Polícia Militar. Outra tem um alvo no centro, cercado por arame farpado e correntes de metal.

Enquanto coletivo da Zona Leste de São Paulo, os artistas multimídia Toni Baptiste e Flávio Camargo criam uma narrativa visual que ressignifica histórias e vivências de comunidades marginalizadas na atualidade, sobretudo no contexto da violência policial nas periferias da cidade. Os signos dessa violência aparecem em diversas obras dos Coletores, entre fotografia, video mapping, animações, performances e instalações multimídia. “O signo viaja pelo suporte, às vezes ele é uma bandana flamulando, em outro momento a gente pode mostrar isso em vídeo e projetar em um prédio histórico”, diz Flávio Camargo à celeste. Ou seja, a bala que estampa a bandana nasceu como uma animação, tornou-se uma joia – vestida por Toni em um colar no pescoço –, depois virou bandana e projeção em grande escala. Essa variação de suportes permite que o questionamento se amplie: quem é o alvo na cidade?

Tríptico da série Bandanas (2022) [Foto: Coletivo Coletores]
Estamos Vivxs (2023) no Museu Nacional da República, em Brasília, no contexto da exposição monográfica Signos de Resistência, Bordas da Memória [Foto: Coletivo Coletores]

NOMADISMO

Desde 2008, o coletivo se debruça na pesquisa sobre o resgate de memórias dos tecidos urbanos e sociais. Pensar a cidade como um suporte, usando linguagens visuais e tecnológicas, é uma tática para acender o debate público sobre o direito da cidade, as periferias urbanas, os apagamentos históricos e culturais e a necessidade de um planejamento urbano que promova a inclusão social. A dupla assimilou a lógica do nomadismo, um modo de vida baseado na mobilidade e coleta, para a ocupação de espaços públicos, visto que a ideia não se concretiza em um ambiente fixo. Somente no ano passado, firmaram o endereço do ateliê na Mooca, como um espaço para criação, processos formativos e encontros com artistas.

Retrato de Flávio Camargo e Toni Baptiste [Foto: Daniela Cordeiro]
“A nossa metodologia principal é a pesquisa-ação. Ou seja, é uma metodologia que se constrói enquanto a ação acontece, tornando-se um trabalho transversal e transdisciplinar. Envolve a parte bibliográfica, videográfica e iconográfica, mas também um olhar baseado nos diálogos e conversas”, diz Toni Baptiste. O pesquisador destaca que muitas vezes uma parte da pesquisa nasce antes de o trabalho existir, no sentido em que as temáticas já são assuntos que dialogam com a sua própria história de ocupação do território.

Pujança Editada (2020) é uma das obras históricas dos Coletores. Trata-se de um video mapping projetado sobre a estátua do Borba Gato, na Zona Sul da capital. A imagem do bandeirante – também gravada no brasão das armas da Polícia Militar de São Paulo – é inicialmente banhada a ouro, e sua face é intercalada com uma sobreposição da caveira, ícone tão vinculado ao grupo. No segundo momento, a obra faz alusão às estrelas que compõem o brasão da PM, com imagens de desaparecidos, mortos e presos políticos da ditadura militar brasileira. Por fim, é tomada pela reprodução de figuras do período colonial, como Anastácia, símbolo da resistência negra que foi santificada em Monumento à Voz de Anastácia (2019), do artista Yhuri Cruz. “Vários dos ícones arquitetônicos que a gente tem na cidade emulam uma conquista histórica do território que nunca existiu. […] Essa pujança ou esse vigor são editados, não existe nada de heroico”, acrescenta Baptiste.

PENSAR A CIDADE COMO SUPORTE, USANDO LINGUAGENS VISUAIS E TECNOLÓGICAS, É UMA TÁTICA PARA ACENDER O DEBATE PÚBLICO SOBRE O DIREITO DA CIDADE, AS PERIFERIAS URBANAS, OS APAGAMENTOS HISTÓRICOS E CULTURAIS E A NECESSIDADE DE UM PLANEJAMENTO URBANO QUE PROMOVA A INCLUSÃO SOCIAL
Pujança Editada (2020), intervenção na estátua de Borba Gato, em São Paulo [Foto: Coletivo Coletores]

URBANISMO CIDADÃO

Entrelaçamento de animações, textos, documentos históricos e trilha sonora, a poética não se dissocia da narrativa das projeções. Em AKOMA (2025), essa sensibilidade transcende da tela em movimento – a fachada do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, no Parque do Ibirapuera. A obra é uma nova leitura do video mapping que os Coletores exibem anualmente no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, mas, recentemente, o projeto foi feito em parceria com a instituição, em comemoração ao aniversário de São Paulo. O título, em homenagem a personalidades afro-latinas símbolos de resistência e luta pelos direitos humanos, como a líder quilombola Tereza de Benguela e a ativista Marielle Franco, é relativo ao ideograma ancestral africano Adinkra, em formato de coração. “A principal pesquisa dos Coletores é sobre a memória. E a projeção é um mecanismo que a gente usa para lançar luz sobre histórias apagadas”, diz Baptiste.


AKOMA (2025) na fachada do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, em São Paulo [Foto: Daniela Cordeiro]
O duo também participa do projeto Águas Abertas de proposições para o Rio Pinheiros, com Anamnesis – PI-IÊRÊ (2025). A instalação, concebida em dois módulos, faz um recorte histórico sobre a relação entre a geração de energia e escravidão. O primeiro será um memorial, intitulado Matriz Radicante, erguendo-se com uma arquitetura inspirada em um moinho de água, questionando o processo de violência contra corpos escravizados e a própria chegada da ferramenta no país, trazida por colonizadores europeus após a abolição da escravidão.

“A potencialidade de um rio vai muito além da tração para uma usina hidrelétrica. […] A água pode garantir a sobrevivência das pessoas, mas aqui a gente lida com um rio que é quase um empecilho”, comenta Camargo. O Coletivo também propõe no segundo módulo uma intervenção em grande escala na estrutura da passarela de pedestres e ciclistas da Ponte Laguna, que desafia as fronteiras físicas e simbólicas a partir da palavra. Borrar Fronteiras será gravado no painel para pensar nos limites impostos às comunidades do entorno do rio de uma vivência do curso d’água. A ideia é tentar borrar essas barreiras que obstruem a compreensão da cidade como um território afetivo. A anamnese do Pinheiros, ou o interrogatório sintomático de um rio retificado e revertido, retoma o contexto social das intervenções violentas, no sentido de contribuir para a construção de um urbanismo cidadão, para além das lógicas do mercado e da especulação.