A arte é como um catalisador de detalhes. Induz à reflexão individual e coletiva de acordo com suas densidades; aguça as sensações a ponto de fazer com que a memória se consolide enquanto meio e, ao mesmo tempo, mensagem; provoca “viradas de chave” por tocar em lugares muito específicos em cada um de nós. Em tempos como os que vivemos hoje, em que estamos impregnados de imediatismo, virtualidades e desinformação, fixar a atenção, mesmo que momentaneamente, em um trabalho artístico faz ressurgirem projetos de sociedade que questionam o sistema social e político no qual estamos inseridos.
Antes de se tornar física ou digital, a obra é intuição gerada por uma série de vivências que variam de acordo com a condição existencial de cada artista. Essa intuição é como o respiro, no contato com o mundo torna-se instrumento de transformação da realidade. Ao ser moldada, é como o barro, materializa caminhos estéticos e éticos entre artista e espectador. Seja através da memória, do impacto, da sutileza ou da denúncia, essa comunicação se torna uma busca em comum entre quem a compartilha e aquele a quem se apresenta. Como aterramento do que digo aqui e reverência aos mais velhos, trago Abdias do Nascimento e Stela do Patrocínio, dois pensadores que, diante da inconformidade que o racismo e suas nuances aplicaram sobre seus corpos, puderam registrar por meio de suas feituras outra visão de mundo. Automaticamente quebram com a linearidade do pensamento, colocando em xeque, também, as relações que temos com o passado, o presente e o futuro.
“Invocando estas leis
imploro-te Exu
plantares na minha boca
o teu axé verbal
restituindo-me a língua
que era minha
e me roubaram” – Padê de Exu Libertador, Abdias Nascimento
“Eu não tenho coragem de enfrentar nada
Eu tenho que enfrentar a violência
A brutalidade a grosseria
E ir à luta pelo pão de cada dia” – Stela do Patrocínio
Os processos de feitura artística são resultados de uma cosmovisão que está diretamente ligada ao direito político à existência. É preciso levar em consideração que, diante de uma sociedade racista, lgbtqia+fóbica, elitista, a diversidade mostra-se um mecanismo eficaz de comunicação, tomando proporções individuais e coletivas de transformação. Nesse caso, faz sentido dizer que o artista evoca e denuncia poeticamente, independentemente de qual linguagem decide adotar, o seu pertencimento ao mundo.
AMONTOADO DE IDEIAS
Materiais que interagem entre si na busca por alguma resposta. Acredito que o tempo que temos vivido nos obriga a estar alertas aos detalhes. Produzir tem sido transcrever esses detalhes e congelá-los. É o que também faz Leonardo Oscar Rack na obra Procedimento Brasileiro do Crescimento Social. O artista, nascido na Região Metropolitana do Rio, usa o acúmulo de referências do grafite, do picho, do fazer manual e da cultura hip-hop, articulando a sobreposição em diversos suportes como forma de entender a relação que seu corpo constrói com o território e as pessoas que circulam por ele. “Meu pai me ensinou a amarrar a madeira amarela com arame queimado: o andaime improvisado. Essa estrutura da construção civil serve de base para a construção do poder, que cria também a estrutura que é medida pela derme racial, procedimento brasileiro do crescimento social”, explica Rack. Reorganizar a estrutura do que é ser indivíduo, do que é ser mundo e estar em constante transformação. A arte transita através do tempo como forma de manter viva a nossa capacidade de recriar dispositivos de luta. Como o PerifaConnection, que surge em 2019 como uma plataforma de disputa de narrativas da periferia. Por meio de frentes como comunicação e cultura, formação e articulação, contribui com o impacto das periferias no debate público. Com uma rede de colaboradores espalhados por todo país, traz à tona reflexões sociopolíticas, que atravessam os muros das instituições e tomam conta das ruas.