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ON AIR (2024), de Astrid Ardagh [Fotos: Paula Alzugaray]
Postado em 30/09/2024 - 4:49
Como adiar o fim do mundo
Tradições e tecnologias de comunicação em lugares extremos são conceitos de ignição da mais antiga bienal de arte da Escandinávia

Skrei é o verbo norueguês para migrar, deslocar-se em velocidade. Foi a economia do Skrei, o peixe migratório do Oceano Ártico – e todo o perigo e a dificuldade envolvidos em sua pesca –, que impulsionou o avanço precoce das telecomunicações sem fio no arquipélago de Lofoten, Norte da Noruega, no final do século 19. O sistema de telegrafia que permitiu que as comunidades pesqueiras locais agilizassem a comunicação para tentar alcançar a velocidade do peixe é a centelha de ignição da atual edição do Lofoten International Art Festival (LIAF), a bienal mais longeva da Escandinávia.

A curadoria de Kjersti Solbakken situa a base conceitual do LIAF: SPARKS [faíscas, fagulhas, centelhas, descargas elétricas] na casa que abrigou a Traadløs telegrafstation [estação telegráfico sem fio], hoje convertida em um museu que conta a história do Sørvågen Radio e dos 170 kms de cabeamento marítimo e terrestre da Lofoten Line. No museu, cujo edifício foi notadamente desenhado pela primeira arquiteta mulher norueguesa, Georgine (Lilla) Hansen (1872-1962), essa história é contada do ponto de vista de telégrafos e engenheiros homens. Várias gerações deles estão bem representados em fotografias creditadas e enquadradas nas paredes, mas a fotografia que serve de ícone para esta edição da bienal mostra uma mulher que está sentada de costas para a câmera, cercada pela parafernália tecnológica do rádio, mas não tem rosto nem identidade discerníveis.

No texto curatorial, Solbakken relaciona a malha da telegrafia nórdica ao formato da exposição, expandido por vários “pontos de ancoragem”, em colaboração com outros festivais e espaços de arte. “Percorrendo muitos quilômetros de fios elétricos, entrelaçados para criar cordões e cabos, há letras temporariamente camufladas como pontos e traços em uma linguagem codificada”, escreve, referindo-se ao Código Morse como uma linguagem subliminar ao conceito curatorial. Porém, é preciso apontar que tanto o formato descentralizado de uma exposição de arte, quanto a constituição de um networking de vozes de diferentes disciplinas e gerações, não são características específicas deste projeto. Em sua história, a própria bienal escandinava, hoje em seu 32º aniversário, se define como um festival nômade. A edição de 2022, por exemplo, intitulada Fantasmagoriana, buscou compor uma arqueologia da região ártica como paisagem da literatura gótica, estabelecendo como um dos “pontos de ancoragem”, a vila de Kabelvåg, onde Kurt Schwitters se refugiou durante a ocupação nazista da Noruega.

A proposta encontra de fato expressão em alguns fortes trabalhos artísticos selecionados. Especialmente naqueles que investigam as comunicações ou exploram formas de contar uma história. Por exemplo nas videocartas de Valentina Alvarado Matos; na performance musical de Elise Macmillan transmitida pela rádio local; nas leituras que a escritora Cuthwulf Eileen Myles fez diariamente de páginas de seu romance em processo All my Loves + discussão de política global; nos videoretratos de Dávvet Brunn-Solbakk; nas apropriação da linguagem política e comercial para uma contrapropaganda subversiva, pelo projeto NORDTING – The Northern Assembly; no filme ON AIR (2024), de Astrid Ardagh, que situa o rádio amador no contexto dos ataques cibernéticos contemporâneos.

Cartão postal da telegrafista anônima, uma das imagens ícone do LIAF 2024
Antiga casa da estação telegráfica

No ar

Hoje comi bacalhau. Hoje vi um veleiro holandês. Além disso, a velha rotina. ON AIR começa com a interação matinal entre os integrantes do grupo de operadores de radio amador Ishavsringen (The Arctic Ocean Group), prevendo mais um dia sem grandes novidades. Telégrafos aposentados de uma estação metereológica, eles mantêm contato diário por rádio e Código Morse. Mas aquele não era um dia como outro qualquer. Era 23 de fevereiro de 2022. A diretora documenta o momento em que um operador assiste aos breaking news pela televisão: a Rússia invade a Ucrânia. Como estratégia de guerra, um ataque cibernético tira do ar os sites do governo ucraniano e instituições financeiras. A mais de 3 mil quilômetros de distância de Kiev, os moradores das ilhas de Bjørnøya e Hopen, na Noruega, sentem o impacto da guerra, no corte súbito de suas conexões via satélite. As remotas regiões nórdicas ficam incomunicáveis por duas semanas, sem internet, tevê, rádio e telefone.

Será a terceira guerra mundial? Se perguntam operadores de trenós, filmados nas grandes planícies azuis geladas. Quando finalmente o instituto metereológico de Tromsø descobre o bug causado pela sabotagem russa, os aposentados do Arctic Ocean Group se oferecem para estabelecer um serviço de comunicação de emergência. Eles usam, para isso, um sistema de e-mails baseado em rádio, para restabelecer a comunicação em duas vias entre ilhas e continente. E sucedem.

O filme da jovem artista e cineasta norueguesa Astrid Ardagh é uma declaração contundente de que obsolescência e etarismo são de fato, conceitos programados pela lógica voraz capitalista, e que, nestes tempos de guerras, ameaça atômica, tempestades solares e caos climático, devem e são facilmente desmontáveis. Isso envolve rever nossas noções de descarte, desperdício, resíduo e lixo eletrônico que, segundo a ONU, teve aumento recorde entre 2010 e 2022. Um filme sobre a vida útil das tecnologias e dos hábitos de outras gerações torna-se, mais que um alerta, uma bandeira ambiental.

Lofoten Internasjonale Kunsfestival – LIAF

Em vários locais do arquipélago de Lofoten e da costa norueguesa

Até 20/10

ON AIR (2024), de Astrid Ardagh