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Simulação: “Parallel IV”, de Farocki, aborda o estatuto das imagens do século 21
Postado em 14/03/2016 - 2:36
Como vai a saúde da cultura
Tão estarrecedor quanto os últimos filmes de Harun Farocki, em exposição no Paço das Artes, é esta importante instituição de 45 anos não ter até hoje uma sede própria

Tempos sombrios. Quase mais assustador que enfrentar o aumento diário das estatísticas de uma tríplice epidemia associada ao mosquito Aedes aegypti, é constatar que as políticas básicas de saúde pública são sempre medidas de emergência, decretadas em última instância. Em São Paulo, a declaração de guerra ao mosquito não apenas mobiliza 12 Secretarias Estaduais, Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Exército e Defesa Civil, como também envolve medidas de impacto que incluem a destituição de uma importante instituição cultural de sua sede, o Paço das Artes, para dar lugar a uma fabrica de vacina da dengue.

O Paço das Artes existe há 45 anos em sedes provisórias, vivendo “de favor” em instituições como a Pinacoteca do Estado e o Museu da Imagem e do Som, para onde será levado de volta em abril próximo, quando tiver que devolver para o Instituto Butantã o edifício que ocupa há 22 anos na Cidade Universitária. “Entendemos isso como algo temporário: meu movimento tem sido no sentido de defender uma sede própria para que possamos manter a proposta da instituição”, diz Priscila Arantes, diretora do Paço.

Durante o tempo em que ocupou o prédio inacabado da USP, projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim, a instituição amargou um compasso de espera, mas nunca se resignou e desenvolveu um trabalho de excelência que a consagrou como um dos espaços culturais de maior solidez e relevância no contexto brasileiro e, necessário acrescentar, latino-americano. Artistas de projeção nacional e internacional como André Komatsu, Lia Chaia, Sara Ramo, Henrique Oliveira, Nino Cais, entre tantas dezenas, tiveram suas primeiras exposições promovidas pelas Temporadas de Projetos que anualmente abrem espaço para a produção artística emergente por meio de seleção pública. Investindo na produção de conhecimento, também é um celeiro para críticos em começo de carreira.

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A cor do som: “Imagem-Frase”, de Alexandre Colchete, desafia a fala

Lá começou, por exemplo, Cauê Alves, co-curador do Pavilhão Brasil na 56ª Bienal de Veneza, em 2015. O acesso ao melhor da arte contemporânea internacional tem sido garantido em mostras de artistas de calibre como o britânico Francis Bacon, a suíça Pipilotti Rist, o chinês Yang Fudong e, atualmente em cartaz, Harun Farocki, importante artista e cineasta alemão falecido em 2014. “Programando o Visível”, com curadoria de Jane de Almeida, a última exposição montada na sede da Cidade Universitária tem a peculiaridade – e a oportunidade, dada a situação de incerteza vivida pela instituição – de apresentar os últimos trabalhos realizados por Farocki, que criam um panorama de alta-tensão a respeito da produção de imagens no século 21 e das relações entre homem e máquina.

São assustadoras as sequências fílmicas de brigas de rua, perseguições e ameaças à mão armada, montadas com fragmentos de games. “O herói não teve pais, nem professores. Teve que aprender por si mesmo quais são as regras válidas”, diz uma voz off. O espectador só respira aliviado ao assistir, na sala ao lado, ao vídeo “Frases de Impacto, Imagens de Impacto: Uma Conversa com Vilém Flusser” (1986), em que Farocki entrevista o filósofo das mídias, que viveu no Brasil entre 1940 e 1972, dando aulas na USP. Realizada décadas antes da série de filmes sobre games, a conversa com o professor oferece respostas para muitas inquietações contemporâneas.

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Silêncio: “Monumento à Democracia”, de Colchete, é um ruído incômodo

No exercício minucioso de leitura das relações subliminares entre texto e imagem na primeira página de um tabloide sensacionalista alemão, vislumbramos as estratégias do jornal para transformar imagens em slogans e em discursos demagógicos. Interessante notar como as indagações de Farocki e de Flusser rebatem em cheio do outro lado do espaço expositivo, na mostra “Jogo de Forças”, projeto do jovem curador Philipe F. Augusto, selecionado via edital. Com o “Monumento à Democracia” (2014), composto por um microfone inacessível ao orador, por exemplo, o curador e o artista Alexandre Colchete parecem estar respondendo às provocações lançadas pelo professor e pelo cineasta.
Aqui, o microfone inacessível emite um incômodo ruído. Não podemos esquecer que, ao se colocar como uma plataforma de expressão para artistas e pensadores em atividade hoje no Brasil, o Paço das Artes é como uma praça pública. Cada exposição é um fórum; cada obra exposta, um debate. Seja no microfone silenciado, ou na aula sobre demagogia, Flusser e os artistas nos ensinam que a indiscutível necessidade de adequadas políticas de Saúde pública não justifica o silenciamento de uma instituição cultural. Espera-se, portanto, que o Paço das Artes comemore seu aniversário de 50 anos em sua sede definitiva.

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