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Poesia concreta escrita no piso do MAC-Niterói dialoga com a situação de abandono a que chegou uma das mais famosas obras do arquiteto Oscar Niemeyer (Foto: Márion Strecker)
Postado em 22/01/2016 - 6:50
Comodato: problema ou solução?
A prefeitura só se mexeu depois que o MAC-Niterói fechou as portas em fevereiro e o dono da coleção, João Sattamini, cancelou o contrato de comodato. O icônico museu projetado por Oscar Niemeyer agora espera a reforma e planeja a programação de 2016, quando fará 20 anos
Márion Strecker

O Brasil é um país peculiar: tem museus sem acervos, acervos sem museus e museus com acervos e com portas fechadas, sem data certa para reabrir. Esse é o caso do MAC-Niterói, que foi criado por estímulo de um colecionador privado, economista, funcionário de carreira do Instituto Brasileiro do Café e depois empresário, chamado João Leão Sattamini. Ele descende de um Sattamini que chegou à América do Sul no século 19 com Giuseppe Garibaldi. Foi primo-irmão do fundador de uma importante galeria paulistana dos anos 1980, Subdistrito, chamado João Manoel Sattamini, que foi uma espécie de “olheiro” de sua coleção em São Paulo (“Você tem de ter um olheiro. Não adianta dizer ‘eu faço a coleção’. Não faz!”). Um dia, nos anos 1990, João Leão resolveu procurar o poder público de Niterói para sondar a possibilidade de cederem um edifício vazio para abrigar sua admirável coleção de arte contemporânea brasileira, que já lotava um triplex em Copacabana.

Deu mais do que certo. O prefeito quis logo um novo museu, que foi projetado de graça por Oscar Niemeyer numa das paisagens mais bonitas do mundo. “O museu custou US$ 5 milhões. Eu não tinha esses US$ 5 milhões. A coleção custou muito menos. Uma obra de Lygia Clark pode valer US$ 1 milhão hoje, mas na época valia US$ 3, 4 ou 5 mil”, diz o colecionador à seLecT.

O MAC-Niterói completa 20 anos em 2016, mas está fechado desde fevereiro de 2015, quando pifou o último dos quatro compressores de ar-condicionado. Parecia a crônica de uma morte anunciada. O acervo de 1.250 obras de arte é um comodato, que pode ser cancelado a qualquer momento. “Com o museu fechado, eu cancelei o comodato”, conta o colecionador. “Aí a prefeitura se mexeu. Eu acho que está gastando muito dinheiro para botar o museu para funcionar. Como a máquina pública é muito ruim e a de Niterói é pior ainda, eles decidiram, em março, tomar essas providências. Os editais saíram em setembro. A máquina é muito lenta, eles não sabem fazer licitação”, reclama.

Museu fechado, escândalo nos jornais, 15 mil visitantes desatendidos por mês. A prefeitura de Niterói, que usa o museu até como logotipo de papelaria oficial, resolveu trocar o ar-condicionado, o carpete (!), refazer a impermeabilização, a pintura, substituir as grades por vidro, a iluminação, e instalar elevador para o subsolo. Prometem também fazer uma reserva técnica comme il faut para a coleção de Sattamini, como prevê o contrato renovado.

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A vista exuberante da Baía de Guanabara contrasta com a falta de manutenção do prédio, cartão-postal que figura como logotipo de papelaria oficial da prefeitura da cidade fluminense (Foto: Márion Strecker)

Com isso, a coleção será doada para o poder público? “Nunca!”, responde o colecionador. “Meu plano é deixar para as minhas três filhas. Para a máquina pública eu não doo nada. Não sei como será mais lá para a frente, não é? Já tivemos prefeitos de Niterói que eram cretinos, por isso o MAC entrou em decadência física. Se elas quiserem desmembrar a coleção para vender, vão fazer burrice. Uma está começando a aprender agora. As outras vão fazer besteira. Vão se entregar nas mãos de marchands e os marchands vão roubar. Arte não tem muito parâmetro. Mas, se elas quiserem desmanchar, o que eu posso fazer? Estou morto mesmo! De repente vem um prefeito, em Niterói, que diz: agora não quero mais museu. Vou transformar isso numa pista de skate e pronto, acabou.”

O atual diretor do museu, Luiz Guilherme Vergara, elogiado pelo colecionador, conta que, pela primeira vez na história do MAC-Niterói, haverá previsão de orçamento para a programação. “O museu sempre funcionou na base do ‘venha a nós o vosso reino’. O que significa que, se você me traz uma exposição com os patrocínios, nós fazemos.” Essa prática é conhecida no sistema de arte como “balcão”.

Virada de mesa
Vergara engajou-se no museu desde os anos 1990 e fez até doutorado sobre o MAC-Niterói. “A missão do museu, eu escrevi em 2006, é acolher, estudar e conservar a coleção João Sattamini”, diz Vergara à seLecT. “E aí eu acrescentei: e atualizar as interfaces entre arte e sociedade”, conta, enumerando o que considera as “vocações” do MAC-Niterói: ambiental (“Niemeyer faz com que você olhe para fora o tempo todo; olhar para fora é estar engajado com as questões da paisagem”); arquitetura-templo (“museu-monumento: por ser Niemeyer, tem relação com templo grego”); fórum de debates (“ágora”); espetáculo (“museu-oráculo”); agenciamento (“provocador de conectividade, de colaborações”).

“O que é singular neste lugar é que todas as facetas de um museu em debate no século 21 estão presentes”, diz o diretor, para quem o MAC-Niterói é fruto da Constituição de 1988, quando os recursos de impostos municipais passaram a ser retidos pelas prefeituras. “Foi uma guinada na nossa paisagem cultural. Todos os municípios do Rio fizeram revisões fantásticas nas suas políticas culturais. É também dessa época o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Há um contraponto entre centros culturais e um ocaso de museus. O MAM entra em declínio. O cara vai ser um mantenedor do CCBB. Os patrocinadores não vão investir num lugar que é de uma prefeitura. Os centros culturais criam um desequilíbrio e um desconforto para a função museu”, diz o diretor do Mac-Niterói.

Com a quebra do quarto compressor de ar-condicionado, em fevereiro passado, o museu foi fechado e esvaziado; a prefeitura de Niterói planeja a reforma para poder reabrir o museu (Foto: Márion Strecker)
Com a quebra do quarto compressor de ar-condicionado, em fevereiro passado, o museu foi fechado e esvaziado; a prefeitura de Niterói planeja a reforma para poder reabrir o museu (Foto: Márion Strecker)

“Se o Sattamini estivesse nos EUA, teria de construir seu próprio museu. O desejo dele é botar a coleção com vida pública. A sociedade pode muito bem passar sem ver arte. Pode ver só televisão, futebol. Nosso compromisso é oferecer isso para ser parte da formação, de um gosto. Nesses anos tivemos oferecimentos de doações e outros acervos que possam vir a ser acolhidos. Ricardo Basbaum está oferecendo a obra. A coleção dele (Sattamini) foi projetada internacionalmente por este museu. O acervo dele, que todo mundo sabe como estava antes, em condições extremamente precárias, é um acervo que vai se inchando, como acervo vivo. Hoje mesmo tive notícia de que ele comprou mais um trabalho. Os acervos de artistas com valores históricos estão se perdendo. E aí a gente tem de recuperar a função museu. A gente precisa reinaugurar este museu com o afeto da cidade.”

No início de 2015, em ação orquestrada por espaço independente paulistano, três pinturas em papel kraft de artistas da Casa 7, pertencentes à coleção Sattamini, foram restauradas e devolvidas ao MAC-Niterói. As obras estavam com os suportes danificados e foram restauradas para a exposição Casa 7 no Pivô, em junho. “O restauro entrou como contrapartida para a negociação de empréstimo. Foi um bom negócio para todos. Por estarmos usando verba pública, via Lei Rouanet, os frutos da exposição deveriam ser mais duradouros”, diz Fernanda Brenner, diretora do Pivô.

Na reinauguração do MAC-Niterói, Iemanjá, Mazu (a deusa chinesa do oceano) e Afrodite estarão presentes, bem como os pintores históricos das paisagens de Niterói, do Grupo Grimm, além de Hélio Oiticica (que cunhou o conceito de Programa Ambiental), Lygia Clark e artistas estrangeiros atuais, como o britânico Isaac Julien. Também em 2016, artistas serão convidados a se engajar e trabalhar em residência em colônia de pescadores ameaçada no fundo da Baía de Guanabara. “A ajuda que a gente está tendo é quase extraterrena”, diz Vergara.